Ambientalidade, Co-existência e Sustentabilidade: Uma Gestalt em Movimento, Environmentality, Co-existence and Sustainability: A Gestalt in Motion , Ambientalidad, Co-existencia y Sostenibilidad: Una Gestalt en Movimiento
ARTIGOS
Ambientalidade, Co-existência e Sustentabilidade:
Uma Gestalt em Movimento
Environmentality, Co-existence and Sustainability: A Gestalt in
Motion
Ambientalidad, Co-existencia y Sostenibilidad: Una Gestalt en
Movimiento
Jorge Ponciano Ribeiro*
Universidade de Brasília - UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil
RESUMO
O artigo tem como objetivo propor e discutir a noção de ambientalidade,
colocando-a em diálogo com as noções de sustentabilidade e co-existência,
visando promover, no âmbito da Gestalt-Terapia, discussões acerca de
nossa implicação ética e existencial com o Planeta Terra. Ambientalidade é
um termo inexistente no dicionário e que está aqui proposto como derivação
da palavra ambiente para, juntamente com animalidade e racionalidade,
constituir a definição da estrutura de nossa essência humana. Animal-
racional, o ser humano tem sido definido, frequentemente, de uma maneira
inadequada, pois falta-lhe o terceiro existencial: ambientalidade, que estou
constituindo e definindo a partir dos modos de existência que constituem a
experiência humana de ser pessoa. Ambientalidade é uma dimensão da
essência humana, através da qual somos co-constituintes do universo,
somos partes fundantes consubstanciais de uma totalidade através da qual
tudo muda, tudo está ligado a tudo. Considerando a noção de Campo
organismo/ambiente da Gestalt-Terapia como um construto central na
abordagem, o desenvolvimento da noção de ambientalidade pode contribuir
para ampliar o escopo da perspectiva gestáltica na direção de discussões
que englobem de modo mais efetivo as relações das pessoas com o mundo e
coloquem em relevo sua implicação com a sustentabilidade do planeta.
Palavras-chave: ambientalidade, ambiente, campo, sustentabilidade,
ecologia profunda.
ABSTRACT
The article aims to propose and discuss the notion of environmentality,
placing it in dialogue with the notions of sustainability and co-existence,
aiming to promote discussions in the Gestalt Therapy field about our ethical
and existential implications with Planet Earth. Environmentality is a non-
existent term in the dictionary which is here proposed as a derivation of the
word environment to, together with animality and rationality, constitute the
definition of the structure of our human essence. Animal-rational, the human
being has often been defined in an inadequate way, for he lacks the third
existential: environmentality, which I am constituting and defining from the
modes of existence that constitute the human experience of being a person.
Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Rio de Janeiro v. 19 n. 4
p. 896-914
Dossiê
Gestalt-Terapia
Jorge Ponciano Ribeiro
Environmentality is a dimension of the human essence, through which we
are co-constituents of the universe, we are consubstantial founding parts of
a totality through which everything changes, everything is connected to
everything. Considering the notion of Field organism / environment field as a
central construct in the approach, the development of the notion of
environmentality can contribute to broaden the scope of the gestaltic
perspective towards discussions that more effectively encompass people's
relationships with the environment, highlighting their implication for the
sustainability of the planet.
Keywords: environmentality, environment, field, sustainability, deep
ecology.
RESUMEN
El artículo tiene como objetivo proponer y discutir la noción de
ambientalidad, colocándola en diálogo con las nociones de sostenibilidad y
coexistencia, para promover discusiones en el ambito de la Terapia Gestalt
sobre nuestras implicaciones éticas y existenciales con el Planeta Tierra. La
ambientalidad es un término que no existe en el diccionario y que se
propone aquí como una derivación de la palabra ambiente para, junto con la
animalidad y la racionalidad, constituir la definición de la estructura de
nuestra esencia humana. Animal-racional, el ser humano ha sido muchas
veces definido de manera inadecuada, ya que carece de la tercera
existencial: la ambientalidad, que estoy constituyendo y definiendo a partir
de los modos de existencia que constituyen la experiencia humana de ser
una persona. La ambientalidad es una dimensión de la esencia humana, a
través de la cual somos co-constituyentes del universo, somos partes
consustanciales fundadoras de una totalidad a través de la cual todo cambia,
todo está ligado a todo. Teniendo en cuenta la noción de campo organismo /
ambiente de la Terapia Gestalt como una construcción central en el enfoque,
el desarrollo de la noción de ambientalidad puede contribuir a ampliar el
alcance de la perspectiva gestáltica hacia discusiones que abarquen más
efectivamente las relaciones de las personas con el mundo y destacar su
implicación en la sostenibilidad del planeta.
Palabras clave: ambiental, ambiente, campo, sostenibilidad, ecología
profunda.
Ambientalidade, palavra inexistente nos dicionários e originária da
palavra ambiente, está aqui sendo usada, juntamente com
animalidade e racionalidade, para constituir e definir um modo
estrutural de ser de nossa essência humana. Frequentemente
definido como animal-racional, o ser humano vem, ao longo dos
séculos, sendo visto de maneira incompleta, fragmentada e dualista,
uma perspectiva que consideramos inadequada. Falta-lhe o terceiro
existencial: ambiental, do qual decorre o conceito ambientalidade que
estou definindo a partir dos modos de existência que constituem a
experiência humana.
Embora possa parecer metodologicamente prematura a utilização da
citação que se segue, na qual uso uma analogia conceitual para
especificar formalmente meu pensamento, utilizo-a porque desejo
deixar claro que, como Jan Smuts, ao longo de toda essa reflexão
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
897
Jorge Ponciano Ribeiro
adotamos uma perspectiva gestáltica, holística, sistêmica e de
campo, na qual o conceito de totalidade prevalece.
Uma das grandes lacunas do conhecimento foi ter separado
matéria, vida e mente como fenômenos isolados. Uma profunda
diferença e separação entre eles produz uma quebra no
conhecimento, separa o conhecimento em três reinos ou três
universos. De fato, eles são três mundos experienciais e não
podem ser vistos como alheios um ao outro e, ao contrário,
eles, de fato, se inter-relacionam e coexistem no ser humano, o
qual é feito de matéria, vida e mente. (Smuts, 1996, p. 2).
Smuts está falando, na citação acima, de matéria, vida e mente e,
pedindo vênia para usar esta mesma citação como uma analogia,
proponho substituir matéria, vida e mente por ambientalidade,
animalidade e racionalidade, que considero os três existenciais da
estrutura de essência humana. A substituição de um pelo outro torna
possível a analogia do que estou chamando de estrutura da
personalidade, ao definir o ser humano como ambiental-animal-
racional. Desse modo, a citação de Smuts poderia ser adaptada para
os fins desta discussão e ficaria assim: Uma das grandes lacunas do
conhecimento foi ter separado ambiental, animal, racional como
fenômenos isolados. Uma profunda diferença e separação entre eles
produz uma quebra no conhecimento, separa o conhecimento em três
reinos ou três universos. De fato, eles são três mundos experienciais
e não podem ser vistos como alheios um ao outro e, ao contrário,
eles, de fato, se inter-relacionam e coexistem no ser humano, o qual
é feito de ambientalidade-animalidade-racionalidade.
A Gestalt-Terapia considera que o ser humano é inseparável do
mundo e a noção de campo, na relação ambiente/organismo,
expressa claramente essa concepção que remete à totalidade.
Prosseguindo no diálogo com Smuts, podemos compreender que o
campo está para além dos contornos imediatos da experiência.
Eu devo agora acrescentar que por ‘Todo’ eu entendo o ‘todo’
mais o seu campo, seu campo não é algo diferente dele e
adicional a ele, mas uma continuação dele além de contornos
sensíveis da experiência. O ‘Todo’ está no tempo e no espaço.
(Smuts, 1996, p. 110).
Neste artigo, busco trazer como figura a dimensão ambientalidade,
lembrando que, assim como não podemos pensar o ambiente
separado do sujeito-organismo, não podemos pensar o sujeito sem
implicar o ambiente que o co-constitui. Ambientalidade é a dimensão
original deste trabalho, cujo conteúdo estou constituindo e
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
898
Jorge Ponciano Ribeiro
formulando como um conceito estritamente ontológico e como o
componente ignorado de nossa humanidade essencial.
Como afirma Bimbenet: “Nossa relação ao animal é postulada
segundo uma gradação em três termos: a pedra é ‘sem mundo’
(weltlos); a animalidade é ‘pobre de mundo’ (Weltarm); o homem é
‘configurador de mundo’ (Weltbildend).” (Bimbenet, 2011, p. 94).
Vivemos, assim, um profundo desencontro, dualidade e fragmentação
em nossa relação com o universo, apesar de sermos apenas um
pequeno grão de areia ante a infinitude do deserto.
A não-consciência do existencial ambientalidade, lembrado por Perls,
Hefferline e Goodman (1997, p. 42) com a expressão
“organismo/ambiente”, gera desequilíbrios e prejuízos enormes à
vida e ao planeta, com os quais não nos comprometemos,
permanecendo via de regra, indiferentes ao que acontece à mãe-terra
e ao universo no sentido mais amplo.
A consciência de que somos, estruturalmente, por essência e por
natureza, ambientais desperta em nós uma habilidade, uma
capacidade de nos condoermos com o sofrimento do planeta, como
uma dor que é nossa e um desejo de sermos guardiões da
substancial relação que nos liga à mãe-terra. É esta experiência que
estou chamando de ambientabilidade, um “proprium”, que decorre de
nossa dimensão Ambientalidade.
Ambientabilidade é uma vivência que decorre da awareness de nossa
umbilical relação com o meio-ambiente, do qual devemos cuidar
como cuidamos do nosso corpo e com o qual compartilhamos da
mesma carne.
Cuidar do meio ambiente e garantir sua sustentabilidade é cuidar de
nossa preservação, de nossa interação ambiente-corpo, é repetir o
mais perfeito ajustamento criador, pois somos co-criadores de nossa
própria existência no mundo. Temos vivido, ao contrário disso, um
dualismo, nós e o mundo, que nos dá a ilusão de sermos separados,
individualizados, fechados sobre nós mesmos, conduzindo-nos a uma
postura de dominação do planeta e do outro com o qual coexistimos.
A Gestalt-Terapia, como uma abordagem que nasce na passagem de
modernidade e pós-modernidade, traz no seu corpo conceitual e em
sua proposta de ação no mundo uma concepção holística, ecológica,
social, comunitária e política, que nos sinaliza para a integração ao
campo e ao pertencimento ao todo como fundamento ontológico do
cuidado, forma essencial do estar no mundo.
O campo é a força . . . que precisa ser utilizada para que
possamos ficar curados. Estamos conectados e envolvidos com
o nosso mundo, somos inseparáveis dele, e a nossa única
verdade fundamental é o nosso relacionamento com ele. O
campo, como Einstein certa vez o chamou sucintamente, é a
única realidade. (McTaggart, 2008, p. 16).
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
899
Jorge Ponciano Ribeiro
Nossa dimensão ambientalidade provoca em nós um processo de
conscientização, uma convocação a que nos sintamos, pensemos,
façamos e falemos de nossa ontológica conexão com o cosmo, de
nossa filiação, de nossa consanguinidade com a mãe-terra como uma
experiência de pensamento sistêmico, constituinte de nossa
humanidade.
De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de
um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que
nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das
relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas
quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em
elementos isolados. (Capra, 1996, p. 40).
Como dissemos, é da natureza de nossa abordagem ser clínica,
política, social e comunitária, pois, de maneira simples e real, isto é o
que chamamos de Gestalt, de configuração: um todo cujas partes
convivem como um cosmo ontologicamente um, em uma metafísica
co-existencial. Assim, tudo me diz respeito, sou um rio poluído, sou
uma pessoa que morre de frio numa noite gelada, sou uma floresta
pegando fogo, sou um lixão que “sustenta” pessoas famintas, sou
uma multidão que não sabe ler, somos pessoas amedrontadas pela
escalada da violência. Isto coexiste em mim tal como a água, o fogo,
o ar, a terra, elementos fundantes de nossa hominização.
O social, o político, o comunitário e o clínico nascem, portanto, do
fato de sermos uma configuração, uma totalidade onde tudo está
ligado a tudo, diz respeito a tudo e cujas partes nos lançam na dor do
mundo, não como uma abstração, mas como um ser em ação, filho
biológico de nossa dimensão original ambientalidade.
Temos muito pela frente. Como experienciar e vivenciar esta
realidade é o nosso mais radical aprendizado. Pretendemos aqui
colocar em cena no campo da abordagem gestáltica a dimensão da
ambientalidade, compreendendo que nossa abordagem tem uma
grande contribuição a dar a um pensamento psicológico que implique
de modo mais contundente sujeito e mundo, corpo e terra, numa
perspectiva ecológica e sustentável.
Ambientalidade: caminho de co-existência e sustentabilidade
Estamos diante de um conceito novo, estranho, original, que
constitui, junto com nossa animalidade e racionalidade, nossa
estrutura de personalidade pela natureza de seu conteúdo. Este
conceito, entretanto, pode parecer-nos familiar, dada sua relação e
semelhança com a palavra ambiente.
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
900
Jorge Ponciano Ribeiro
Neste contexto, ambientalidade é uma das dimensões estruturais que
compõe, com as dimensões animalidade e racionalidade, a essência
humana tal como discutimos. Seguindo a perspectiva da
espacialidade e da temporalidade, isto é, o aqui-agora humano, nossa
definição de humanos é: somos ambientais-animais-racionais. Esta é
a essência humana, consequentemente ambientalidade-animalidade-
racionalidade são os existenciais que compõem a estrutura
constituinte de nossa personalidade.
Entendo que estou trabalhando dentro de uma perspectiva de campo,
na perspectiva de Kurt Lewin (1973, 1975). Garcia-Roza (1974)
sintetiza a proposta de Lewin a partir de seis atributos que a
caracterizam:
a) a utilização de um método de construções e não de
classificações; b) um interesse pelos aspectos dinâmicos dos
acontecimentos; c) uma perspectiva psicológica e não física; d)
uma análise que começa com a situação como um todo; e) uma
distinção entre problemas sistemáticos e históricos; f) uma
representação matemática do campo. (Garcia-Roza, 1974, p.
20).
Estes atributos explicitam o que entendo por perspectiva de campo e
constituem-se em fundamentos da forma como estou elaborando,
neste trabalho, a constituição de um conceito a partir do qual
poderemos operacionalizar outros construtos.
Tudo aquilo que, ao ser retirado de um objeto, faz com que este
objeto desapareça, faz parte da essência deste objeto primeiro.
Quando, do ponto de vista essencial e/ou operacional, retiramos do
ser humano seu atributo (chamamos assim) animal ou racional, ele
simplesmente desaparece. Estes dois conceitos ou atributos,
portanto, fazem parte de nossa essência humana.
Ar, calor, minerais e água fazem parte da composição física dos
organismos vivos humanos. Quando retiramos de nossa estrutura, de
nosso ser, de nosso existir cotidiano o ar (respiramos 6 litros de ar
por minuto), o calor (somos 36% de fogo), a terra (somos 25%
minerais), a água (somos 75% água), componentes constitutivos
também do universo, desaparecemos da mesma maneira como
desapareceríamos, se de nós fossem retirados nossa animalidade e
racionalidade.
Podemos, portanto, afirmar que somos constituídos pelo meio-
ambiente, possuímos os mesmos elementos que o constituem, ar,
fogo, terra e água, e os mesmos elementos de que o cosmo é feito.
Entretanto, não nos parece estranho sermos animais-racionais, mas
nos parece estranho, sem jeito, se somos definidos como ambientais-
animais-racionais.
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
901
Jorge Ponciano Ribeiro
Essa estranheza decorre de um modo de pensar dicotômico
instaurado no pensamento moderno e que separou radicalmente o
orgânico e o espiritual, a substância material e pensante. Esse
pensamento conferiu ao pensamento abstrato a primazia absoluta
sobre a verdade do mundo e decretou, com isso, uma espécie de
apagamento do corpo e da dimensão animal. Tal como discute Hans
Jonas (2000), um filósofo do campo da bioética, esse momento
histórico, dado na modernidade filosófica, rompe com uma ontologia
universal da vida, onde prevalecia a comunidade ontológica de todos
os entes. Esse rompimento reflete uma “renuncia à inteligibilidade da
vida” (p. 41). Ele compreende que “O problema da vida, e com ele o
problema do corpo vivo, devem estar no centro da ontologia (e até
certo ponto também no da teoria do conhecimento).” (Jonas, 2000,
p. 41, tradução nossa).
Nós nos damos conta de sermos animais através das sensações
corporais, dos sentimentos, dos afetos, das emoções; nós nos damos
conta de que somos racionais através da memória, da vontade, da
inteligência, do pensamento, mas não nos damos conta de que somos
ambientais por causa da dicotomia, da fragmentação, de uma divisão
clássica de que eu sou eu e o mundo é o mundo, como se fôssemos
duas realidades distintas, fragmentadas, de um lado eu, do outro
lado o mundo, o meio ambiente. Funcionamos como se fôssemos
duas realidades: eu e o mundo, negação ontológica de nossa
estrutura humana. Este é o erro histórico, ontológico, cultural,
operacional que nos tem separado ou criado uma falsa identidade e
uma separação total entre o ser humano e o meio ambiente.
Daí surge um universo real: físico, biológico, psíquico ou
mental. Esta conexão é baseada nos fatos da existência e da
experiência e não em pensamento. Estes três (matéria, vida e
mente) [grifo do autor] não são alheios um ao outro, ou
irreconhecíveis, existe um ponto cósmico que os une [grifo do
autor], do contrário teríamos de admitir que a experiência
humana é uma caótica mistura de elementos desconectados.
(Smuts, 1996, p. 3).
Nesse trecho, Smuts, anos antes de McTaggart (2008), está falando
do conceito de Totalidade como síntese metafísica da co-existência de
matéria, vida e mente e que, por extensão, aplico ao tema da
ambientalidade-animalidade-racionalidade que ora está sendo
apresentado, por entender que o fundo teórico que nos sustenta é o
mesmo. Ao discutir elementos da física quântica, McTaggart (2008)
traz outro ponto de vista sobre a mesma questão, a da interligação e
da totalidade.
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
902
Jorge Ponciano Ribeiro
Vários deles repensaram algumas equações que sempre haviam
sido descartadas na física quântica. Essas equações
correspondiam ao ‘campo de ponto zero’, um oceano de
vibrações microscópicas no espaço entre as coisas. Eles
perceberam que se o campo de ponto zero fosse incluído em
nossa concepção da natureza mais fundamental da matéria, o
suporte do Universo seria um agitado mar de energia, um vasto
campo quântico. Se isso fosse verdade, tudo estaria interligado
por algo como uma teia invisível [grifo nosso]. (McTaggart,
2008, p. 20).
Nós caminhamos, vemos o mundo fora de nós, ele está lá e nós aqui,
e isto nos dá a firme sensação de que somos dois. Na verdade,
somos um só: eu sou o mundo, o mundo sou eu, sou ambiente, o
ambiente sou eu, sou a natureza, a natureza sou eu. Assim como
uma árvore nasce do mundo, da terra, nós também, sendo ar, fogo,
terra e água, elementos de que o mundo é feito, também nascemos
do mundo, e, como uma planta, somos através de um longo processo
evolutivo, filhos legítimos do ar, do fogo, da terra, da água.
Não somos dois, somos um só. Somos constituídos dos mesmos
elementos de que o planeta é feito. Somos, portanto, ambientais-
animais-racionais e qualquer uma destas dimensões que forem
retiradas do ser humano, provocará o nosso desaparecimento.
Ambientalidade é a matriz de nossa hominização. Do mesmo modo,
no mesmo sentido, nas mesmas circunstâncias em que somos
animais, em que somos racionais, somos também ambientais,
embora não façamos atenção a esta dimensão, talvez pela nossa
necessidade de ter controle sobre tudo aquilo que pensamos, como
desconexão de nossa realidade ambiente-organismo. O homem
queima, corta, suja, polui o meio ambiente, sem se dar conta de que
isso é um autoextermínio, um “ecocídio”, sem se dar conta de que a
sustentabilidade do planeta passa pela satisfação das mesmas
necessidades do ser humano.
Somos uma só realidade, nós-mundo, somos a mesma carne, o
mesmo sangue, nascemos do ventre, da barriga do universo, só nos
falta o mesmo espírito, porque agimos como se fôssemos donos do
mundo, dualidade responsável por todo o estrago da não consciência
de que qualquer ofensa ao meio ambiente é ferida causada a cada
um de nós, porque somos um só corpo, um só espírito com o
universo. Falta-nos a experiência de uma awareness corporal, de uma
consciência corporal de que a terra é um campo de presença, de que
a terra é um ser vivo, gera seres vivos, e de que vivemos uma
fraternidade com vegetais e animais, com outros humanos com os
quais coexistimos.
Perdemos a dimensão de que somos uma Gestalt, uma configuração,
um todo cujas partes estão organizadas e articuladas para
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
903
Jorge Ponciano Ribeiro
funcionarem como uma unidade ontológica, de que tudo está ligado a
tudo, de que somos um só corpo, de que tocar em uma parte é tocar
em tudo e no todo, perdemos a dimensão de que tudo muda, de que
tudo está em movimento e, não obstante, Tudo é Um.
Ambientalidade-animalidade-racionalidade são dimensões ontológicas
da essência humana, a qual é uma totalidade existencial que brota,
que nasce da totalidade maior, o Universo. Não existem o universo e
nós. Somos partes fundantes, constituintes do universo. A totalidade-
universo se revela, se faz visível através da pedra, das plantas, dos
animais, do ser humano, numa consubstancialidade metafísica,
ontológica. Assim, também não existem corpo e alma, existe eu,
totalidade inteiramente-alma-inteiramente-corpo. Não existem eu e o
mundo, ambos coexistimos como uma unidade consubstancial,
estrutural, ontologicamente um ser que se faz visível através de
entes e, consequentemente, da percepção visual, ilusória, de que são
duas realidades distintas. O ser humano é totalmente ambiental,
totalmente animal, totalmente racional, três naturezas na unidade de
um ser, a pessoa humana, e nele não existe uma prioridade, se quer
ontológica, de uma característica com relação à outra, pois estes três
atributos são ontologicamente Um.
Três naturezas, a ambiental, a animal e a racional numa
consubstancialidade humana chamada ser humano. Elas se
distinguem uma da outra, mas co-existem intrinsecamente sem
nenhuma antecedência espaço-temporal na sua essencialidade. Estou
dizendo que nossa dimensão ambientalidade, que nasce de nossa
unidade ambiente-corpo, foi esquecida, não sabida, devido ao fato de
estarmos no mundo aparentemente como realidades separadas,
ambiente e corpo.
Não existe uma dualidade ‘eu’ e ‘não-eu’ do nosso corpo em
relação ao Universo, mas apenas um único campo fundamental
de energia. Este campo é responsável pelas funções superiores
de nossa mente, a fonte de informação que orienta o
crescimento do nosso corpo. Ele é o nosso cérebro, o nosso
coração, a nossa memória - na verdade, ele é um projeto do
mundo para toda a eternidade. (McTaggart, 2008, p. 15).
Proponho definir “ambientalidade” como: “Dimensão humana que,
juntamente com as dimensões animal e racional definem a pessoa
como ambiental, isto é, parte igualmente constituinte da essência
humana e que se expressa na relação mundo-corpo”.
É a ambientalidade que nos permite pensar em co-existência e
também em sustentabilidade, visto que é a consciência de ser
ambiental e de estar em relação de co-existência que permite aos
sujeitos um tipo de ação que seja sustentável. Do ponto de vista do
desenvolvimento conceitual é importante distinguir ambientalidade de
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
904
Jorge Ponciano Ribeiro
meio-ambiente e de sustentabilidade ambiental e ecológica, como
desenvolveremos a seguir. São três dimensões diferenciadas, do
ponto de vista ontológico, embora próximas do ponto de vista
operacional.
Ambientalidade, ambientabilidade e sustentabilidade: noções
fundamentais para pensar uma perspectiva ontológica da
totalidade
Distingo ambientalidade, que é uma dimensão da essência humana,
de ambientabilidade, que é a capacidade, a habilidade de lidar com o
ambiente como uma consequência direta que procede de nossa
dimensão ambientalidade. Proponho definir “Ambientabilidade” como:
“Dimensão que decorre do existencial ambientalidade e através da
qual me percebo como um dos guardiões do universo, ser capaz de
cuidar do planeta como cuido de mim mesmo através de ações
eficazes de proteção e de preservação”.
Nesse sentido, somos ambientais e podemos, se nos percebemos
como tal, sentirmo-nos responsáveis pelo cuidado do meio ambiente
como parte de nós. Fiorillo (2008) distingue o meio ambiente natural
e físico do meio ambiente artificial. O primeiro é composto por solo,
água, ar, flora e fauna; o segundo pelo patrimônio histórico, artístico,
arqueológico, paisagístico e turístico; compondo o espaço urbano.
Compreendemos “Meio ambiente” como o conjunto de fatores
naturais e artificiais, físicos, biológicos, químicos que afetam a vida
humana, bem como a outros ecossistemas existentes e que são
também afetados por eles.
O tema da sustentabilidade implica o modo como nos relacionamos
com o meio ambiente. Ramos (2010) discute o problema a partir de
uma reflexão sobre as diferentes concepções filosóficas de natureza.
Descreve a influência do dualismo cartesiano e do mecanicismo no
desenvolvimento de uma perspectiva a partir da qual sujeito e
natureza se separam e se distanciam, e onde a razão tem primazia e
domínio sobre a natureza. O mecanicismo é, segundo a autora, uma
revolução da razão que objetifica a natureza.
Uma característica fundamental da revolução mecanicista foi
atribuir à razão humana um poder nunca antes pensado. E,
desse modo, o domínio sobre a natureza ganhou força na
medida em que esta deixa de ser um objeto mítico ou uma
realidade metafísica para a contemplação teórica. Uma vez
desvendado o mecanismo da natureza, ela pode ser dominada,
manipulada e usada em proveito dos seres humanos. Com os
modernos, a natureza se transforma em objeto de explicação
prática do conhecimento humano que, associando as leis da
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
905
Jorge Ponciano Ribeiro
ciência a uma aplicação técnica, se traduz em poder
tecnológico. (Ramos, 2010, p. 81).
Atualmente, lidamos com uma situação que parece não ter alterado o
problema da dominação do homem sobre a natureza. O modo de agir
técnico dos sujeitos na sociedade ocidental foi objeto das discussões
do filósofo Martin Heidegger (2002). Tal como discute Critelli (2002)
a técnica é a modificação de um modo de fazer humano, uma nova
forma de agir e de olhar o mundo.
Como olhamos para o mundo e para o existir desde essa ótica
técnica, tudo o que faz parte do mundo fica subordinado a ela.
Os elementos naturais, por exemplo, ficam compreendidos e
disponibilizados para esse tipo de agir. Assim, uma floresta
perde a sua condição primordial de floresta e se restringe a ser
reserva de madeira para a indústria; as plantas ficam
disponibilizadas como reserva para a produção de remédios; os
rios tornam-se reservas para o uso das hidroelétricas e a
produção de energia, e assim por diante. (Critelli, 2002, p. 85).
Vivemos uma crise política e ética onde não assumimos nossa parte e
responsabilidade na administração e gestão dos recursos naturais. E
cuja essência envolve o rompimento de nossa unidade com a
natureza, levando à possibilidade de destruição do planeta.
Busco, neste trabalho, resgatar a ambientalidade como essência do
humano e pensar a ambientabilidade como capacidade que deve e
pode ser resgatada para que o planeta seja salvo da destruição.
Como discutirei adiante, a Gestalt-Terapia tem ferramentas para
contribuir com a formação dos sujeitos e com uma reflexão que
permita transformar esse estado de crise planetária que pode ser
conotado como uma espécie de suicídio, movimento de
autodestruição que envolve a negação da unidade do humano com a
natureza.
Corroboro a compreensão de Ramos (2010) de que:
O grande desafio para a humanidade nos dias atuais é a
construção de um novo conceito de natureza, o que significa
buscar novas formas de relação entre a sociedade e a natureza
e dos homens entre si. Uma natureza em que os seres
humanos se reconheçam como parte integrante dela e, por
isso, como responsáveis por ela. (p. 82).
Proponho definir “Sustentabilidade Ambiental e Ecológica” como:
“Processo de cuidar dos recursos naturais, antecipando-se às
necessidades futuras, de modo que a vida possa se manifestar no
fluxo de uma consciência ética e amorosa, para que o planeta possa
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
906
Jorge Ponciano Ribeiro
se tornar auto-sustentável, baseando-se no fato de que, por natureza
e por essência, somos mundo, somos com e através do outro.”
Somente uma coexistência real e afetiva entre ambientabilidade e
sustentabilidade nos permitirá uma era de uma ecologia profunda,
duradoura e sustentável para nosso planeta.
Dentro do contexto de ecologia profunda, a visão segundo a
qual esses valores são inerentes a toda natureza viva está
alicerçada na experiência profunda, ecológica e espiritual de
que a natureza e o eu são um só. Esta expansão do eu até a
identificação com a natureza é a instrução básica da ecologia
profunda. (Capra , 1996, p. 28).
A natureza sou eu, eu sou a natureza, o ambiente sou eu, eu sou o
ambiente, não somos duas realidades, somos uma só, meu corpo sou
eu, eu sou meu corpo. Sou um corpo-pessoa e nele coexistem minha
ambientalidade-minha-animalidade-minha-racionalidade, constituindo
uma totalidade de carne e osso, chamada pessoa-humana e cujas
partes estão intra ligadas, intra conectadas de uma maneira
ontologicamente inseparável.
Esta definição, este posicionamento revela uma ética holística e
ecológica de dimensões e consequências novas e originais. Esta visão
introduz a unidade, a cumplicidade, a co-responsabilidade de se
sentir guardião do universo.
Percebermo-nos como seres ambientais-animais-racionais e, nos
sentirmos como tais, cria uma profunda sensação de pertencimento,
de aconchego, de carinho e de cuidados mútuos entre nós e o
universo, e nos retira do sentimento de solidão tão comum hoje em
que, muitas vezes, os aparelhos eletrônicos, físicos, químicos, sem
vida, se tornaram a companhia substitutiva e fria de grande parte da
humanidade.
Estamos dizendo que a natureza, o meio-ambiente são partes
constituintes e constitutivas da estrutura da personalidade humana.
Experienciar o sentir, o pensar, o fazer-agir, como ambientais-
animais-racionais, é uma com-vocação de todo o nosso ser para
experimentar e vivenciar a mais harmoniosa relação corpo-ambiente,
em ação, no mundo. Estamos falando de um ajustamento criativo,
quiçá, criador na relação pessoa-mundo, como uma harmoniosa
forma de contato pela experiência de se sentir em total imersão com
o mundo à nossa volta.
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
907
Jorge Ponciano Ribeiro
Ambientalidade: Gestalt-Terapia, totalidade e ecologia como
caminho de espiritualidade
Ambientalidade é o terceiro elemento existencial humano por meio do
qual nos tornamos, necessariamente, seres de relação, em relação,
seres no mundo, do mundo e para o mundo. Prestamos pouca
atenção a esse existencial, sem nos dar conta de que estamos
imersos no ar, no calor, na atmosfera, elementos sem os quais nossa
vida seria impossível. Tal como o peixe que não pode viver fora
d`água, seria igualmente impossível ao ser humano viver sem as
condições básicas que o meio ambiente lhe proporciona.
A vida corpóreo-mental é fruto do que nossa ambientalidade nos
oferece, pois estamos sujeitos, imediatamente e sempre, à sua
influência. O meio ambiente é nosso habitat e é por meio dele que
conseguimos fazer da existência o locus que nos move, que nos nutre
e que torna a vida possível e humana.
Assim como a Gestalt-Terapia, também os conceitos de ecologia e de
ambientalidade estão centrados no conceito de campo e de
totalidade. Somos seres no mundo e do mundo, e cuidar do mundo é
cuidar de nós mesmos. Cuidar do mundo é cuidar de nossas
dimensões básicas. Na maioria das vezes, em nossa relação com o
mundo, vemo-nos numa posição dentro e fora; contudo, na
realidade, nossa posição real é dentro-fora, uma vez que, seres de
encontro e de cuidado, não nos é claro o que é de dentro e o que é
de fora ou o que é dentro e o que é fora.
O conceito de ambientalidade implica, obrigatoriamente, não apenas
em estar atento à nossa relação com o mundo, mas em se
experienciar como mundo, como do mundo, como pertencente ao
mundo, assim como um rio ou uma árvore pertencem ao mundo. Sou
mundo, o mundo sou eu, sou propriedade sua, sem ele eu seria
impensável. Assim, é por intermédio do conceito ambientalidade que
a Gestalt-Terapia, como expressão harmoniosa de nossa totalidade
humana, faz-se, consequentemente, ecológica.
Ser substancialmente ambiental significa que sou o ambiente e o
ambiente sou eu. Nenhuma fragmentação, somos um. Ser espírito-
matéria, ou matéria-espírito nasce naturalmente da nossa dimensão
primeira, ambientalidade, que, por uma coexistência ontológica,
revela em nós a existência de uma dupla dimensão coexistente em
nós a matéria/materialidade e o espírito/espiritualidade. Assim,
somos corpo-matéria-materialidade, espírito-psique-espiritualidade.
Duas dimensões absolutamente humanas, inseparáveis.
Corporeidade nos dá uma sutil experiência de espacialidade e de
materialidade, o que a coloca sutilmente no mundo da quantidade, ao
passo que espiritualidade nos dá uma sutil experiência de
temporalidade e de imaterialidade, o que a coloca sutilmente no
mundo da qualidade. A relação figura-fundo cabe perfeitamente na
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
908
Jorge Ponciano Ribeiro
relação espiritualidade-ambientalidade ou ambientalidade-
espiritualidade, dependendo do olhar ontológico a partir do qual
poderíamos pensar uma antecedência metafísica entre estas duas
realidades.
Nossa dimensão ambientalidade está diretamente ligada a uma
relação espaço-temporal. Enquanto uma dimensão que convive com o
dentro-e-fora, ela é ontologicamente dentro e, cronologicamente
fora, através dos elementos que compõem o universo. Vivemos uma
absoluta coexistência, sendo, ao mesmo tempo, espacialmente corpo,
quantidade, materialidade e temporalmente espírito, qualidade,
espiritualidade. Espiritualidade é uma dimensão, um “proprium”
humano. Somos espirituais, porque somos humanos, somos
humanos, porque somos espirituais.
A Gestalt-Terapia, como uma configuração, gera um campo de
espiritualidade que se sustenta, que se alimenta de conceitos como
contato, awareness, ajustamento criativo, homeostase, pregnância,
mudança paradoxal. A Gestalt-Terapia operacionaliza estes conceitos,
enquanto geradora de caminhos de espiritualidade, de uma
temporalidade a ser vivida na corporalidade da busca de opções para
melhor experienciar nossa humanidade, nosso encantamento por nós
e pelo mundo.
Quando nos encantamos com uma noite estrelada, com a majestade
das montanhas, com a força misteriosa do mar, com a suavidade do
canto dos pássaros, estamos experienciando nossa ambientalidade, o
mágico processo evolutivo que nos trouxe até aqui, encantando-nos
conosco, porque somos partes constituintes de tudo isso e tudo isso é
parte fundante de nós mesmos; afinal, somos isso também. Tudo isso
é como uma orquestra da qual somos um dos instrumentos, cujas
notas, se retiradas, desafinarão toda a melodia. Esta conexão entre
você e o outro humano ou não e através da qual você transcende a
simples objetividade da coisa através da ressignificação de um novo
sentido, é o que constitui a natureza da espiritualidade. Um constitui
o outro ultrapassando seu sentido anterior. O encantamento por um
pôr do sol, atribuindo-lhe um olhar que vai além do fato material do
pôr do sol, é a percepção da totalidade que chega até nós como a
arte suprema do universo. Estamos, aí, no reino da espiritualidade.
A totalidade precede ontologicamente suas partes, por isso estes três
elementos, animalidade que se expressa fundamentalmente pelo
nosso corpo, racionalidade, que se expressa fundamentalmente pelo
nosso pensamento, e ambientalidade que se expressa
fundamentalmente como meio-ambiente, se juntam, constituindo-se
numa totalidade essencial, encarnada na pessoa humana. Devemos
pensar esses três componentes como Todos e constituí-los numa
única essência, sem cair nas armadilhas do mecanicismo, que
reafirma a prioridade das partes com relação ao todo.
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
909
Jorge Ponciano Ribeiro
O ‘Todo’, em cada caso individual, é o centro e a fonte criativa
de realidade. Existem uma infinitude destes todos, abrangendo
todos os graus de existência no universo. . . . Holismo
compreende todos os Todos no universo. Holismo é, ao mesmo
tempo, um conceito e um fator: um conceito, enquanto
significa todos os Todos, e um fator, porque os Todos que ele
revela são reais fatores no universo. Nós falamos matéria,
enquanto inclui todas as partículas da matéria no universo; do
mesmo modo nós falamos Holismo, enquanto incluindo todos
os Todos, são Todos que são, finalmente, centros criativos de
realidade no universo. (Smuts, 1996, p. 116-117).
Psicologia e humanismo não podem perder a perspectiva dessa visão
de totalidade como essência humana. A Gestalt-Terapia, por sua
própria definição, baseia-se nessa visão de totalidade
operacionalizada, permitindo-nos afirmar, inclusive, que algumas
patologias são disfunções desses elementos existenciais, que, quando
operacionalizados separadamente, rompem a unidade operativa do
ser humano.
Gravei parte desta minha reflexão, num momento em que estava
diante do mar, assentado em uma pedra. Estou escutando seu
barulho, sua música relaxante, tentando sentir o movimento das
ondas que vão e que vêm, que nunca param, que estão sempre à
procura de novas areias, de novos horizontes. Acho que é isso que
nos espera, sermos como as ondas do mar, marés altas, marés
baixas, e sempre em movimento, preparando-nos para uma nova
onda, para uma nova jornada. O mar está me ensinando agora, neste
momento, o seguinte:
Vida é movimento. Viver é estar em estado de travessia.
Nascemos, não sabemos para onde vamos e, muitas vezes, não
sabemos de onde viemos. Estar em estado de travessia é
procurar a melhor forma, o melhor caminho, o melhor contato.
O Gestalt-Terapeuta é um caminhante, caminha olhando para
onde vai, sem perder a perspectiva do encontro, do aqui-e-
agora.
Trabalhei, ao longo deste texto, um novo tema, original:
“Ambientalidade, Coexistência e Sustentabilidade: uma Gestalt em
movimento”. Esta é nossa estrada, nosso caminho, o deserto que
vamos percorrer daqui para frente.
Ambientalidade nos remete a uma relação intrínseca ambiente-corpo.
É o concreto, o real, o objetivo, imersão na nossa relação mundo-
corpo-pessoa, exatamente como eles são, é experiência, vivência,
encontro com nossos elementos estruturantes: fogo, ar, terra, água,
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
910
Jorge Ponciano Ribeiro
constituintes da mãe-terra através dos quais somos gerados em um
longo e criador processo evolutivo.
Experienciar, vivenciar Ambientalidade, Coexistência e
Sustentabilidade são etapas, respostas que cada ser humano vive por
estar no concreto, no objetivo, por olhar o mundo exatamente como
ele é, e, a partir desse olhar, olhar o horizonte que o chama, que o
provoca. O horizonte é o diferente, é o que está do outro lado da
estrada, é por onde caminhamos ao encontro da espiritualidade, da
transcendência que se ligam intrinsecamente na constituição de uma
Gestalt plena e criadora.
Coexistir, coexistência é viver em espírito de Totalidade, é colocar em
prática a consciência de que tudo afeta tudo, é acreditar, de verdade,
que tudo está ligado a tudo, que tudo muda, que estamos em estado
de mudança permanente e que, não obstante tudo, tudo é UM. Esta é
a coexistência, único caminho possível para a manutenção da
sustentabilidade humana e ecológica. Este caminho nos leva à
transcendência. É para lá que somos chamados. Nosso olhar não se
firma apenas na Ambientalidade. Caminhamos daí para a co-
existência e só então para a Sustentabilidade. Isto significa que não
existem mundo e eu, natureza e eu, mas antes, que somos uma
totalidade única, viva, em processo e que estamos sempre à cata do
sentido das coisas, das coisas que nos provocam, que nos chamam e
às quais precisamos responder.
Considerações Finais
Ser pessoa e, sobretudo, ser Gestalt-Terapeuta, é estar em estado de
permanente travessia, em estado de movimento total. É fluir, é
sentir, é ter uma consciência corporal cada vez mais profunda. É se
mobilizar, é agir, interagir, é se encontrar com o mundo exatamente
como ele é. É ser como ele é, é ser co-existência na carne, viva e
operante. É procurar a realização do momento que retrata uma
totalidade, a relação parte-todo, figura-fundo, corpo-ambiente e a
máxima unidade mulher-homem, para aí visualizar uma nova Gestalt,
um novo momento que pedem respostas concretas.
Entendo que este tema é uma Gestalt que nos impele a fazer
passagens da Gestalt para a Gestalt-Terapia. Gestalt-Terapia do
caminho, da estrada, da travessia de onde estamos para onde
vamos, da Ambientalidade para a Coexistência e daí para a
Sustentabilidade. É nos responsabilizarmos não só pelo aqui-e-agora,
mas por toda uma estrada que deve ser feita e para a qual o instante
nos convoca.
Esse tema intima, provoca a nós, Gestalt-Terapeutas a, ao mesmo
tempo, olhar o aqui-e-agora, a realidade exatamente como ela se
apresenta, olhar para frente, sermos mensageiros de um novo
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
911
Jorge Ponciano Ribeiro
mundo, de uma nova mentalidade, de uma nova estrutura, fieis a
nossa alma ambiental da qual emanam Sustentabilidade e
Coexistência, condições estruturantes de uma nova visão de mundo e
de pessoa.
Somos gente incomodada, cúmplices do aqui-agora, espacialidade e
temporalidade constituídas. Este aqui-agora é sagrado e nos convida
a tirar os sapatos diante dele, a nos desvestirmos, a tirarmos as
nossas roupas para, assim como a natureza nos fez, caminharmos na
direção do amanhã, livres de nós mesmos, livres de toda estrutura
que nos prende, para olhar o mundo de uma maneira diferente,
adequada, real e efetiva.
Esta é nossa caminhada, cuidadosos de nossa subjetividade, atentos
à objetividade das coisas, para através delas e com elas, pensarmos
o mundo diferentemente, um mundo novo, um mundo melhor, no
qual as pessoas possam olhar para si mesmas, para o outro, para o
mundo e sentir alegria de ser pessoa. É essa a nossa caminhada, é
essa a nossa proposta.
Um mundo em coexistência, no qual nosso sentir, pensar, fazer,
falar, no qual nossas dimensões ambientalidade, animalidade,
racionalidade, no qual nossa relação ambiente-corpo possam ser
vividos como uma totalidade estruturante de um novo paradigma, de
um novo modelo no qual a relação mundo-pessoa se constitua na
ética e na estética que moverá as necessidades humanas.
Isto é o que estamos chamando de Ambientalidade, uma nossa
dimensão esquecida e ignorada através da qual experienciamos o
mundo, não como o outro, mas como parte nascida dele, gerada por
ele, com uma sensação imponderável de que sou mundo e que o
mundo sou eu. Eu-ele, ambiente-corpo, configuração perfeita, Gestalt
plena.
Ambientalidade não é uma questão ambiental, não é um estilo de
vida, não é um programa a ser levado a cabo, ambientalidade é uma
dimensão humana, parte constitutiva, fundante de uma totalidade,
pessoa-mundo, da qual fazem parte também a animalidade e a
racionalidade.
Vivemos uma realidade ontológica, somos uma Gestalt, uma
configuração, cujas partes estão integradas, articuladas, em
metafisica interdependente, formando uma unidade de sentido que
pode ser nominada pelo sujeito observador, de tal modo que a
modificação em uma de suas partes acarretará uma modificação no
todo, realidade expressa de maneira magistral por Edgar Morin,
quando afirma: “o todo está na parte que está no todo.” (Morin,
1990, p. 109).
Estou pensando que falar deste novo conceito Ambientalidade é
propor um paradigma novo, porque estamos saindo de uma visão de
Mundo e de Pessoa fragmentada, mecanicista, reducionista para uma
visão gestáltica, sistêmica, holística, de ecologia profunda em que a
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
912
Jorge Ponciano Ribeiro
realidade é vista como um todo, cujas partes co-existem interligadas
e interdependentes e que, indo além de uma visão holística, nos
conduz a pensar nos modos funcionais de como esta Totalidade se
constituiu através de uma bilenar evolução, hoje ainda em
andamento.
Se e quando este conceito Ambientalidade começar a entrar no
inconsciente cultural da humanidade, e as pessoas começarem a se
sentir, a se perceber não como donas, proprietárias da mãe-terra,
mas como parte constituinte do cosmos, uma nova onda de proteção
do meio-ambiente começará a vislumbrar a verdadeira
sustentabilidade: é a pessoa humana que precisa ser salva, porque o
universo, se respeitado, tem o de que precisa para ser aquilo que ele
é, sem ajuda externa.
Referências
Bimbenet, E. (2011). O Animal que não sou mais. Curitiba, PR: Ed.
UFPR.
Capra, F. (1996). A teia da Vida. Uma nova compreensão dos
sistemas vivos. São Paulo, SP: Ed. Cultrix.
Critelli, D. (2002). Martin Heidegger e a essência da técnica. Revista
Margem,
1(16),
83-89.
Recuperado
de
http://www4.pucsp.br/margem/pdf/m16dc.pdf
Fiorillo, C. A. P. (2008). Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São
Paulo, SP: Saraiva.
Garcia-Roza, L. A. (1974). Psicologia Estrutural em Kurt Lewin. Rio de
Janeiro, RJ: Ed. Vozes.
Heidegger, M. (2002). A questão da técnica. Ensaios e Conferências.
Rio de Janeiro, RJ: Ed. Vozes.
Jonas, H. (2000). El princípio vida: hacia uma biologia filosófica.
Madrid: Ed. Trotta.
Lewin, K. (1973). Princípios de Psicologia Topológica. São Paulo, SP:
Ed. Cultrix.
Lewin, K. (1975). Teoria dinâmica da personalidade. São Paulo, SP:
Ed. Cultrix.
McTaggart, L. (2008). O Campo em busca da força secreta do
Universo. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Roo.
Morin, E. (1990). Introdução ao Pensamento complexo. Lisboa: Ed.
Piaget.
Perls, F., Heffeline, R., & Goodman, P. (1997). Gestalt-terapia. São
Paulo, SP: Ed. Summus.
Ramos, E. C. (2010). O processo de constituição das concepções de
natureza: uma contribuição para o debate na Educação
Ambiental. Ambiente & Educação, 15(1), 67-91. Recuperado de
https://periodicos.ufsm.br/reget/article/viewFile4259/3035
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
913
Jorge Ponciano Ribeiro
Smuts, J. C. (1996). Holism and evolution. New York: The Gestalt
Journal Press.
Endereço para correspondência
Jorge Ponciano Ribeiro
Universidade de Brasília - UnB
SRTVN Qd. 702, Bl. P, Sl. 2119, CEP 70719-900, Brasília - DF, Brasil
Endereço eletrônico: jorgeponcianoribeiro@yahoo.com.br
Recebido em: 13/10/2019
Reformulado em: 05/01/2020
Aceito em: 06/01/2020
Notas
* Professor Titular Emérito da Universidade de Brasília. Fundador e Presidente do
Instituto de Gestalt-terapia de Brasília/DF.
Este artigo de revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma
Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.
Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 896-914, 2019.
914