Antropoceno e o COVID-19: Uma era de integração ou de controle da Natureza?, Anthropocene and COVID-19: An era of integration or control of Nature?
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ISSN: 2595-4431
Revista Brasileira de Meio Ambiente, v.8, n.1. 114-117 (2020)
Revista Brasileira de Meio Ambiente
Vianna
Antropoceno e o COVID-19: Uma era de integração ou de controle da Natureza?
Luiz Fernando de Novaes Vianna 1
1Pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina Epagri, Santa Catarina, Brasil. (*Autor correspondente:
vianna@epagri.sc.gov.br)
Histórico do Artigo: Submetido em: 14/04/2020 Revisado em: 15/04/2020 Aceito em: 15/04/2020
RESUMO
A pandemia causada pelo COVID-19 trouxe à luz uma reflexão sobre o Antropoceno e sua máxima de controle da Natureza através do
conhecimento e da ciência. Nesse artigo trago uma reflexão sobre até que ponto o Homo sapiens é realmente uma espécie capaz de
controlar a Natureza ou apenas faz parte de uma complexa teia ecossistêmica que possui seus próprios mecanismos de autorregulação.
A discussão sobre isso discorre através de duas percepções de escala temporal, uma que está relacionada à escala ecossistêmica de
evolução das espécies e outra em escala de indivíduos e gerações. O artigo não pretende chegar a uma conclusão, mas questionar até
que ponto a ciência atual e a máxima do Antropoceno estão mesmo habilitadas para um controle sobre a vida no Planeta. A atual
situação que estamos vivendo, imposta pela pandemia, apresenta uma série de indicativos para essa discussão.
Palavras-Chaves: Pandemia, Ecologia Profunda, Abordagem ecossistêmica.
Anthropocene and COVID-19: An era of integration or control of Nature?
ABSTRACT
The COVID-19 pandemic brought a reflection on the Anthropocene and its belief of controlling Nature through knowledge and science.
In this article I bring a reflection on the extent to which Homo sapiens is really a species capable of controlling Nature or is he just part
of a complex ecosystem web that has its own mechanisms of self-regulation. The discussion occurs through two perceptions of the
temporal scale, one that is related to the ecosystemic scale of evolution of the species and the other in the scale of individuals and
generations. The article does not intend to reach a conclusion, but question if the current science and the precepts of the Anthropocene
are really enabled for a control over life on the Planet. The current situation we are experiencing, imposed by the pandemic, presents a
series of indications for this discussion.
Keywords: Pandemic, Deep Ecology, Ecossystem approach.
Antropoceno é considerada a era da soberania humana e da crença no controle de tudo através do
conhecimento. A grande aceleração apresentada por McNeil e Engelke (2016) como principal descritor da era
que denominaram Antropoceno traz consigo a necessidade de uma profunda reflexão sobre como o homem
contemporâneo percebe o planeta Terra. O prefixo “antropo” atribuído ao nome de uma nova era já demonstra
uma tendência egocêntrica que permite ao ser humano associar, de forma linear, causas e efeitos de suas ações
como se fossem algo externo ao natural. Harari (2015, 2016) descreve o Antropoceno como a era de transição
entre o homem integrado à Natureza e mergulhado em mistérios regidos pela crença e pela espiritualidade e o
homem detentor das respostas que lhe conferem controle sobre essa mesma Natureza, através da ciência,
através da sapiência.
Histórica e cientificamente, o Antropoceno está profundamente ligado à revolução industrial, ao
crescimento do uso de combustíveis fósseis e ao aumento significativo da população humana em detrimento
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das demais espécies do planeta. Mas sob um olhar antropológico, a era atual pode estar associada também ao
processo de domesticação de plantas e animais, a partir da evolução da agricultura e da pecuária. Em ambos
os casos falta adicionar uma perspectiva ecológica profunda (Naess, 1989). O surgimento de uma era não pode
ser avaliado sem compreender a teia da vida, tecida por complexas interações que envolvem não só matéria e
energia, mas também informação (Capra, 1996). E aqui cabe uma questão que ainda não está clara: em que
momento o homem deixou de ser parte da complexa teia que compõe a Natureza e passou a ter controle sobre
ela?
Se considerarmos que uma ave ao comer um fruto e transportar as suas sementes por quilômetros é um
agente natural de dispersão, com um papel ecológico fundamental na distribuição geográfica de determinadas
plantas, por que uma espécie transportada de um continente ao outro pelo homem, em águas de lastro de navios
ou para ornamentar um jardim, devem ser consideradas espécies invasoras? O homem, apesar da sua ciência e
sabedoria, não é apenas um agente dispersor? A consciência realmente nos diferencia como espécie e nos
autoriza a tentar controlar a vida?
As respostas a essas perguntas precisam de uma reflexão sobre a escala temporal utilizada na
interpretação dos fatos. O tempo das espécies é diferente do tempo dos indivíduos. As espécies surgem se
diferenciam, se adaptam e são extintas em escala de tempo geológico. Os indivíduos nascem, crescem, se
reproduzem e morrem em escala de gerações. O homem avalia os fatos na escala das gerações. Mesmo que a
ciência conte com disciplinas e métodos que permitem estudar fósseis, testemunhos e marcas históricas em
escala geológica, a ciência atual só possui dados abundantes para uma análise complexa em escala de gerações.
Nossa percepção científica dos fenômenos complexos observados e mensurados até hoje, está em escala de
gerações. Por isso nos utilizamos dos agrotóxicos, dos combustíveis fósseis, das vacinas e dos antibióticos,
acreditando que com eles conseguimos controlar pragas, produzir e nos movimentar infinitamente e nos
proteger das doenças microbiológicas. Mas a crença nesse controle está limitada à escala de gerações. As
implicações dessas escolhas em escala de tempo geológico estão longe da nossa capacidade de previsão, estão
fora do nosso controle.
Para controlar a Natureza, considerando-se externo a ela, o homem começou a combatê-la. A primeira
interpretação filosófica da teoria da evolução das espécies criou um estereótipo evolucionista de competição,
de uma seleção natural onde os mais fortes ou mais adaptados prevalecem, transmitindo seus genes adiante e
evoluindo sua espécie. Poucos atentaram para a complexa rede de cooperação que permite a esses mais
adaptados coevoluírem com os demais. E essa é a base da nossa economia e dos valores sociais que carregamos.
Esse modelo, baseado na ideia de controle através da eliminação daquilo que nos prejudica e da valorização
excessiva dos supérfluos que nos anestesiam existencialmente, em escala de gerações, ignora e até mesmo
nega o que estamos fazendo, conscientemente, com a vida na Terra.
Hoje estamos vivendo as consequências das nossas escolhas como controladores. O trabalho de Bar-On,
et. al. (2018) revelou estatísticas que demonstram como estamos desfazendo a teia da vida, transformando-a
em uma “monocultura” humana. Os mamíferos correspondem a aproximadamente 0,36% da biomassa
Terrestre. De todos os mamíferos existentes no planeta, 96% são humanos e animais domesticados. Gado
bovino e porcos correspondem a 60%, 36% são humanos e restam apenas 4% dos mamíferos selvagens. Os
bandos de aves em revoada que costumamos assistir nos belos documentários sobre natureza são quadros raros
pintados por cinegrafistas perseverantes. Apenas 30% das aves no planeta são selvagens, enquanto 70% são
galináceos e outras aves para consumo humano. A destruição dos habitats naturais para expansão agrícola,
industrial e urbana resultaram no início do que os cientistas chamam de sexta extinção em massa da vida na
terra em quatro bilhões de anos do planeta. Acredita-se que cerca de metade dos animais da terra tenha sido
perdida nos últimos 50 anos. Desde o início do controle humano da Natureza, 83% dos mamíferos terrestres
desapareceram, junto com eles foram 80% dos mamíferos aquáticos, 50% das plantas e 15% dos peixes.
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Esses números revelam que na escala de gerações o homem alterou significativamente a dinâmica
ecossistêmica do planeta, resta saber se isso é um processo natural ou não, e quais as suas consequências para
as próximas gerações e para o ecossistema.
Apesar da supremacia humana entre os mamíferos, em termos de biomassa global as proporções se
diferem. Os vegetais superiores predominam com 82% da biomassa planetária. Os microrganismos (bactérias,
cianobactérias, microalgas e vírus) representam 14,7%, os fungos 3% e os animais 0,3% da biomassa (Bar-On
et. al., 2018).
Em uma escala de gerações, a espécie humana vem se tornando predominante entre os consumidores do
topo da teia trófica, mas ainda se mantem como uma porção pequena da biomassa planetária. Nos resta saber
como esse predomínio se sustentará em termos ecossistêmicos. A experiência agrícola em áreas de
monocultura vem nos ensinando que quanto mais intensivo é o cultivo, mais vulnerável ele fica e mais insumos
são necessários para mantê-lo. Naturalmente os indivíduos que compõem um monocultivo são submetidos a
processos de redução da sua população, seja por falta de nutrientes ou por ataque de pragas. Os monocultivos
são uma oportunidade para as espécies que necessitam de um hospedeiro específico se proliferarem (Carson,
2010). A atual composição de espécies animais no planeta sugere a conformação de uma “monocultura”
humana, que é a base para a proliferação das espécies que nos têm como hospedeiros.
A pandemia que nesse momento assola a humanidade através do COVID-19 é um processo natural.
Analisando-a em uma escala geológica podemos interpretar como um controle natural do equilíbrio
ecossistêmico, eliminando o excesso de indivíduos de uma espécie através do ambiente propício criado pelo
excedente de hospedeiros capazes de favorecer a proliferação do vírus. Algo semelhante ao que ocorre com o
ataque das pragas nas monoculturas. Por outro lado, na escala de gerações, o vírus descobriu um novo
hospedeiro que lhe permite rápida disseminação espacial e favorece a troca de hospedeiros de forma
extremamente fácil e rápida. Mas esse ambiente propício ao vírus não perdurará, pois ele escolheu hospedar
os controladores da Natureza, que em pouco tempo criarão remédios e vacinas contra ele, além de sofrer com
a imunidade natural que surgirá nos próximos meses.
A capacidade humana de impor condições de mudanças em determinados processos biológicos nos dá
uma falsa sensação de controle. Essa mesma capacidade nos permite traçar diferentes cenários em relação ao
futuro que queremos. Podemos continuar buscando o controle total da Natureza, baseado na nossa escala de
gerações, ou utilizar nossa capacidade em um processo de reintegração à complexa teia que é regida pela
cooperação intra e inter-espécies.
Se realmente a espécie humana faz parte teia da vida, que está sendo modificada de forma acelerada
através de um processo natural, temos que aceitar a nossa incapacidade de controle sobre a Natureza e nos
permitir coexistir em cooperação com todas as espécies. Mas se acreditamos que somos capazes e responsáveis
por controlar a vida, devemos fazer uma autocrítica profunda sobre o caminho que estamos trilhando.
Referências
Bar-On, Y. M., Phillips, R., & Milo, R. (2018) The biomass distribution on Earth. Proceedings of the National
Academy of Sciences of the United States of America, 115(25), 65066511.
https://doi.org/10.1073/pnas.1711842115
Capra, Fritjof. (1996). The Web of Life: A New Scientific Understanding of Living Systems. New York:
Anchor Books.
Carson, R. (2010). Primavera Silenciosa. 1ed. São Paulo: Gaia.
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Harari, Yuval N. (2015). Sapiens: a Brief History of Humankind. New York: Harper.
Harari, Yuval N. (2016). Homo Deus: A Brief History of Tomorrow. Chicago.
McNeill, J.R. & Engelke, Peter. (2014). The Great Acceleration: An Environmental History of the
Anthropocene since 1945. The Belknap Press of Harvard University.
Næss, A. & Rothenberg, D. (1989). Ecology, community and lifestyle: outline of an ecosophy.
Cambridge: Cambridge University Press.
Informações adicionais
Como referenciar este artigo: Vianna, L. F. de N. (2020). Antropoceno e o COVID-19: Uma era de
integração ou de controle da Natureza? Revista Brasileira de Meio Ambiente, v.8, n.1, p.114-117.
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