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Ao longo da história, o papel original da Mãe Escura como ‘renovadora’
foi negado, colocando-se em realce apenas o seu poder destruidor.
Apesar de muitos arquétipos que a descreviam como a “Mãe Negra” e
a Anciã Ceifadora”, os historiadores e padres cristãos limitaram seus
atributos aos de um ser maligno, perigoso, ameaçador, vingativo,
venenoso e demoníaco. As culturas patriarcais a definiram como um
símbolo da sexualidade devoradora feminina, causadora das
transgressões morais e religiosas nos homens, levando-os à perda de
seus poderes e à morte. Foram enfatizadas as características
destrutivas e as aparências horrendas de deusas arcaicas como Kali
dançando sobre os cadáveres nos locais de cremação, ou segurando
a cabeça decapitada e sangrenta de Shiva, seu consorte. Ou Lilith,
voando de noite como um demônio alado, que seduzia homens e
matava crianças. Medusa, cujo olhar petrificava os homens, ou a anciã
Hécate, à espreita nas encruzilhadas, acompanhada pela sua matilha
de cães demoníacos e aves de rapina.
As respostas para as perguntas que inevitavelmente surgem sobre as
razões dessas imagens aterrorizantes e como e quando a arcaica Mãe
Escura passou a personificar nossos medos - da escuridão, do oculto,
da transmutação, do poder feminino, da descoberta das nossas
sombras e verdades, da decadência física e da morte, - são
encontradas na transição dos valores matrifocais para patriarcais, na
sociedade, cultura e religião.
Pesquisas recentes na arqueologia, história, arte antiga e mitologia
revelam evidências sobre a transição ocorrida em torno de 2.000 a.C.
nas estruturas religiosas e sociais que governavam a humanidade.
Sociedades Matrifocais que cultuavam deusas da Terra e da Lua –
como Tamat, Inanna, Istar, Asherah, Ísis, Demérter, Perséfone,
Hécate, Ártemis entre outras -, foram substituídas aos poucos pelos
cultos dos heróis e deuses solares. (FAUR, 2016, págs. 23/24)
Na cultura africana, essa força geradora da vida reina no céu e na terra,
governa os raios e trovões, os mares e os rios. Oya, senhora das tempestades e dos
ventos, Iemanjá, rainha Mãe das águas salgadas e Oxum, deusa mãe das águas
doces regem as entidades do vento e das águas. Na cultura dos nativos latino-
americanos, essa força é representada pela deusa Pacha Mama, do dialeto quíchua.
Pacha significa "universo", "mundo", "tempo", "lugar", e Mama, "mãe", ("Mãe Terra")
é a deidade mais respeitada e honrada pelos povos indígenas dos Andes centrais.
Considerada como uma divindade relacionada à terra, à fertilidade, representa a mãe,
o princípio feminino.
Em todas as culturas, os ritos e o culto à Deusa Escura foram tratados como
“macumba de mulheres”. O poder de renovação da natureza, sucumbido pelos
projetos de expansão da cultura patriarcal empreendida, sobretudo, pelos homens de
etnia branca. A comunicação com outras formas de vida não humanas pode auxiliar
no processo de construção de novos campos de imagem-movimento, memórias
sensório-motoras e promover novas oportunidade de conectividade do ser humano
com o ambiente natural.