AMAMENTAÇÃO: UM HÍBRIDO NATUREZA-CULTURA
Rev.latino-am.enfermagem - v. 6 - n. 3 - p. 71-76 - julho 1998 71
AMAMENTAÇÃO: UM HÍBRIDO NATUREZA-CULTURA
João Aprígio Guerra de Almeida*
Romeu Gomes**
ALMEIDA, J.A.G.de; GOMES, R. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rev.latino-am.enfermagem, Ribeirão
Preto, v. 6, n. 3, p. 71-76, julho 1998.
Este artigo consiste num ensaio que objetiva, a partir de uma revisão bibliográfica, discutir a relação entre a propo-
sição de Bruno Latour sobre natureza-cultura e o aleitamento materno. Em torno desta proposição, tendo como referência uma
visão epistemológica, procura-se estabelecer diálogo com diferentes obras no sentido de contribuir para o aprofundamento do
assunto no âmbito da saúde pública. Inicialmente, o paradoxo do desmame é situado no cenário dos conhecimentos e das
práticas do aleitamento materno. A análise segue voltada para as relações natureza-ciência e cultura-sociedade presentes no
interior da amamentação. Finalmente, a discussão se encaminha para o lidar com o aleitamento materno, enquanto um híbrido
entre natureza e cultura, apontando novo questionamento para a continuidade do debate sobre a temática em questão.
UNITERMOS: aleitamento materno, natureza-cultura, epistemologia, saúde Pública
INTRODUÇÃO
O paradoxo do desmame constitui-se no objeto
deste ensaio, que traz como pressuposto o fato de o
aleitamento materno ser formado por um tecido inteiriço
que interliga natureza-cultura, em suas múltiplas formas
de abordagem. Assim, parafraseando o que propõe
LATOUR10, parte-se do princípio de que o termo
aleitamento materno designa dois conjuntos de práticas
totalmente distintas. O primeiro conjunto cria, por
tradução, os híbridos entre natureza e cultura que se
configuram em torno da amamentação. O segundo cria,
por purificação, duas zonas ontológicas inteiramente
distintas, que coloca, de um lado, as questões relacionadas
à ciência e, de outro, as que se relacionam à sociedade.
O primeiro conecta, através de um fio contínuo, a
psicofisiologia da lactação; os mitos; as estratégias
científicas; a política estatal de promoção da
amamentação; as ONGs; o crescimento e
desenvolvimento do lactente; a mulher-mãe; os
profissionais de saúde; a indústria de laticínios; enfim, todas
as questões plurais que permeiam o aleitamento materno.
O segundo, tende a estabelecer uma partição entre o que
pertence à natureza e à cultura, através do exercício da
crítica. Nesse sentido, a construção das possíveis
“verdades” na busca do conhecimento, dito eficiente,
dependerá da capacidade de se retraçar a rede sócio-
técnico-científica, que se estabelece em torno da
amamentação, levando-se simultaneamente em
consideração as leis transcendentes e as imanentes.
Metodologicamente, este estudo, a partir de uma
revisão bibliográfica, tem como eixo de discussão a
relação entre a proposição de LATOUR10 sobre natureza-
cultura e o aleitamento materno. Em torno desta
proposição, tendo como referência uma visão
epistemológica, procura-se estabelecer diálogo com
diferentes obras no sentido de contribuir para o
aprofundamento da temática em questão no âmbito da
saúde pública.
AMAMENTAR, POR QUE?
O lidar com a promoção do aleitamento materno,
em um cenário de saúde pública como o que se configura
hoje no Brasil, assume um contorno de razoável
complexidade. A depender da semiótica sob a qual o tema
é focado, emergem questões, em princípio passíveis de
serem consideradas como singulares, mas que ao se
transformarem em objeto de reflexão revelam a pluralidade
que permeia o tema. Tal fato pode ser facilmente
comprovado, mediante uma incursão pela literatura no
intuito de responder a uma indagação básica: amamentar,
por que? O conhecimento científico oferece respostas
de amplo espectro, que vão desde propriedades biológicas
ímpares do leite até questões de cunho sócio-econômico.
Estas respostas trazem consigo uma curiosa unanimidade:
o fato de apresentarem contornos que as tornam
* Banco de Leite, Instituto Fernandes Figueira, FIOCRUZ, Av. Rui Barbosa, 716, 1º andar, Rio de Janeiro, RJ, 22250-020, Brasil
** Coordenação da Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher, Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira,
FIOCRUZ, Av. Rui Barbosa, 716, 5º andar, Rio de Janeiro, RJ, 22250-020, Brasil
Amamentação...
agrupáveis, como partícipes de uma mesma trama,
delineando uma rede que passa da psicoprofilaxia
gestação-parto-puerpério à estrutura molecular das
imunoglobulinas do leite humano, à ecologia microbiana,
ao crescimento e desenvolvimento, aos Bancos de Leite,
ao apego, ao vírus da AIDS, à política estatal, aos direitos
da mulher, à propaganda de leite não-humano, aos mitos
e a vários outros aspectos, que normalmente são reunidos
em torno das vantagens que a amamentação oportuniza
para criança, mulher, família e estado.
Os aspectos relacionados à criança constituem-
se, sem sombra de dúvidas, nos mais difundidos, por terem
sido amplamente utilizados nas campanhas oficiais de
promoção da amamentação7,8. As vantagens da
amamentação, focadas sob este prisma, podem ser
facilmente resumidas no fato do leite humano conter todos
os nutrientes em qualidade e quantidade necessárias a
propiciar um desenvolvimento adequado para o lactente.
Ou seja, por não ter mais nem menos, mas sim, a exata
quantidade que a criança necessita. Esta acertiva permite
desvincular a promoção da amamentação da idéia de
programa de nutrição alternativa para população de baixa
renda, onde a prevenção de doenças carenciais se faz
mais importante, a exemplo do que ocorre com a
desnutrição proteico-energética. Prover os lactentes com
nutrientes adequados, quali-quantitativamente, significa
também prevenir os males decorrentes da super-
alimentação, tão comuns nas comunidades ricas e que se
refletem como sérios agravos na adultice, como a
obesidade e as intercorrências cardiovasculares. Assim,
o aleitamento materno pode ser visto como uma ação
capaz de minimizar, no futuro, os efeitos nocivos sobre a
saúde do lactente1. Neste mesmo grupo, inclui-se uma
outra questão que merece destaque, a que diz respeito
aos estudos que evidenciam a relação entre a
amamentação e o desenvolvimento do Q.I., denotando
maiores índices para crianças amamentadas11.
Para a mulher, a amamentação traz vantagens
por favorecer a recuperação pós-parto, contribuindo para
a involução uterina e diminuição do sangramento16. Vários
autores, a exemplo de KING9, reconhecem o efeito
contraceptivo do aleitamento, quando praticado em regime
de livre demanda e destacam-no como importante fator
para aumentar o espaçamento entre gestações. Apesar
de não se constituir em um meio de prevenção do câncer,
estudos têm demonstrado uma menor incidência entre
mulheres que amamentaram6.
Alguns trabalhos vêm destacando o papel do
aleitamento materno como elemento agregador, capaz de
favorecer a nucleação da família. Ao buscar uma
correlação entre aleitamento e violência, estudos, como
o de MONSON et al.13 têm demonstrado a ocorrência
de menores índices de violência em núcleos familiares
onde a prática da amamentação é francamente instituída.
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Outra importante vantagem para a família, principalmente
nos dias de hoje, diz respeito aos aspectos econômicos.
A substituição do seio materno pela alternativa de menor
custo, na cidade do Rio de Janeiro, demanda o dispêndio
médio de US$ 43,00 / mês ao longo do primeiro ano de
vida do bebê. Este valor representa apenas o custo direto,
necessário à compra do alimento alternativo. Em
contraponto, a criança que mama no peito necessita
apenas de 5 % do salário mínimo para suprir todas as
suas necessidades vitais3.
Em relação ao estado, pode-se centrar o foco
em dois grandes aspectos: saúde e economia. A adoção
de políticas de promoção e apoio a amamentação se
configura em uma estratégia supletiva de saúde pública,
cuja eficácia foi comprovada em diferentes sociedades,
com diferentes graus de complexidade e desenvolvimento.
Os resultados positivos emergem do singular, centrando-
se inicialmente na figura da criança e da mulher, em
decorrência da melhora individual do estado de saúde. O
primeiro impacto sobre a coletividade resulta da
somatória dos ganhos individuais que, ao interagirem
cinergisticamente em um segundo momento, resultam em
benefícios plurais para a sociedade12. Assim, quando se
pensa em aleitamento pela semiótica de oportunizar uma
nutrição adequada para a criança, obrigatoriamente tem-
se que pensar não apenas na construção de uma geração
mais saudável, mas também em uma geração com maior
potencial intelectual e, conseqüentemente, há de se
esperar que este movimento resulte em um estado-nação
mais digno no futuro.
No que tange à economia, atualmente, estima-se
que o Brasil não realiza algo em torno de trezentos milhões
de litros de leite humano por ano, em decorrência do
desmame precoce. Para efeitos comparativos,
considerando os preços praticados na cidade do Rio de
Janeiro em março de 1994, a reposição deste volume com
leite tipo C demandaria algo em torno de US$ 208.000.000.
Caso a opção fosse pelo leite em pó de menor custo,
disponível no mercado à mesma época, este valor subiria
para US$ 300.000.0003. Este fato torna-se ainda mais
grave, ao se considerar que o País não dispõem de uma
bacia leiteira com capacidade de suportar
quantitativamente esta demanda e nem de um parque
industrial, capaz de atender qualitativamente as
especificidades que se configuram em decorrência de
práticas inapropriadas de desmame12. Assim, abre-se um
importante espaço para as importações e,
conseqüentemente, para a perda de divisas.
Apesar de todas estas vantagens, demonstradas
com contundência pela comunidade científica, a prática
da amamentação natural tende a um franco declínio12.
Como explicar este paradoxo? Por que a sociedade tende
a abandonar uma prática que traz múltiplos benefícios e
se mostra inigualável na alimentação de lactentes.
Amamentação...
À medida em que a ciência avança e descobre
as peculiaridades fisiológicas do metabolismo do lactente,
interrelacionando-as com as propriedades ímpares
oportunizadas pelo leite humano2, curiosamente observa-
se uma tendência de queda na amamentação. Em paralelo,
várias pesquisas têm sido desenvolvidas no intuito de
desvendar as razões que justificam esta tendência. Como
resultado, surgem inúmeras “verdades” que conferem ao
desmame um caráter de fenômeno multicausal.
ORLANDI17 aponta como um dos fatores do
declínio do aleitamento materno as mudanças da estrutura
familiar no sociedade moderna urbana. Reforçando esse
pensamento, o autor argumenta que a jovem mãe “não
tem mais o apoio, a ajuda e o incentivo dos parentes
mais velhos (avós, tias, irmãs, etc.), elementos
facilitadores do aleitamento materno” (p. 124).
Uma questão relacionada à capacidade de se
refletir sobre o tema emerge em meio a tantas indagações
que surgem. Por que a ciência, que se mostra tão capaz
para descobrir as superioridades da amamentação e para
justificar os insucessos de tal prática, não apresenta a
mesma competência na construção de um caminho que
leve a reversão do desmame? De que ciência está se
falando? De uma ciência que constrói o saber com o rigor
do método18 , mas que não consegue descobrir
alternativas para aplicá-lo no cotidiano. Contudo, vale
também considerar se o problema do desmame deve ser
visto e tratado como propriedade exclusiva da ciência, ou
seja, como um problema de falta de conhecimento
eficiente.
Outro aspecto que ajuda entender a lógica do
desmame se remete ao fato de que nem sempre a
sociedade tem facilitado a prática do aleitamento materno.
Em relação a isto, observa REA19:
“Importante é frisarmos que a sociedade não tem
se aparelhado para favorecer à mulher o
exercício da amamentação. Pelo contrário, ao
mesmo tempo que a culpabiliza por não
amamentar, interfere bruscamente sobre o parto
com procedimentos cirúrgicos ou medicamentos;
cria estruturas hospitalares antiaproximação
mãe-bebê; não cria ou não respeita leis
trabalhistas para o amparo à maternidade; libera
as companhias produtoras de substitutos do leite
materno de qualquer compromisso ético quanto
à propaganda de seus produtos; e, a nível de
ambulatório de saúde, não capacita seus
profissionais para darem o apoio e terem
conhecimentos necessários para aconselhar a
mãe que amamenta.” (p. 276)
As discussões que giram em torno do paradoxo
do desmame continuam presentes nas agendas da saúde
pública. No sentido de contribuir para um aprofundamento
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dessas discussões, segue uma análise de aspectos que
estão presentes no interior dos conhecimentos e das
práticas relacionados ao aleitamento materno.
Desvendando esses aspectos, pode-se, de um lado,
compreender a lógica do paradoxo mencionado e, de outro,
descobrir novos eixos de discussão sobre a temática em
questão.
A TRANSCENDÊNCIA (NATUREZA/CIÊNCIA)
A preocupação em se reverter o desmame
precoce, figura como uma constante para todos os que
trabalham com a promoção da amamentação natural. No
Brasil, onde desde 1981 se desenvolve o Programa
Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, o
desmame tem sido objeto de fóruns variados, pesquisas,
publicações e atividades de capacitação de recursos
humanos, em diferentes níveis de complexidade12, 13. Ao
longo desta trajetória, alguns pressupostos foram
assumidos neste empreendimento, equivocadamente,
quase que de forma axiomática.
A citação de Fredmam apud REGO20 - “... na
arte de amamentar mais vale um bom par de mamas
do que os hemisférios cerebrais do mais douto
profess” - pode ser perfeitamente utilizada como exemplo
para traduzir a essência da diretriz que norteou a grande
maioria das atividades de capacitação de recursos
humanos, ao longo da década de oitenta, no País. Esta
tônica era reforçada no material instrucional, através de
acertivas do tipo: O ser humano é o único mamífero
que separa a cria da mãe após o nascimento15 . Esta
visão biologiza a questão e a reduz ao mundo natural dos
mamíferos. Isto simplifica em muito a abordagem do
problema, pois permite tratá-lo como algo que se relaciona
exclusivamente ao binômio mãe-filho. Assim, um ato
instintivo, inato e biológico, pertence à mãe, mamífera,
que detém a responsabilidade sobre a saúde de sua cria.
Isto inclusive valeu um “slogan”, que ficou muito conhecido
na primeira metade da década de oitenta: “A saúde de
seu filho depende de você, amamente”7. Mais do que
responsabilizar, este tipo de abordagem culpabiliza a
mulher4.
O dicionário da língua portuguesa define
mamífero como que tem mamas; animais vertebrados
caracterizados pela presença de glândulas mamárias
nas fêmeas,...5. Por sua vez, os compêndios de biologia
referem-se aos mamíferos como seres que mamam e
que dependem da amamentação na primeira fase da vida,
como um fator de sobrevivência. Sob este foco, o das
leis transcendentes, como considerar o paradoxo do
homem no reino natural: um mamífero que
necessariamente não mama. A amamentação,
considerada como instintiva, natural e biológica para os
Amamentação...
mamíferos, passa a ser facultativa para o homem. O que
existe de tão diferente entre os homens e os demais
mamíferos que possibilitou esta adaptação? Esta
assimetria entre humanos e mamíferos precisa ser melhor
considerada ao se discutir o aleitamento materno, caso
contrário, tender-se-á sempre ao reducionismo biológico.
A IMANÊNCIA (CULTURA/SOCIEDADE)
O Brasil tem vivido nos últimos anos um grande
movimento de retomada da consciência social, em favor
do combate a fome e a miséria. A mídia passou a inundar
o cotidiano do cidadão, com informações até então
disponíveis somente para o meio científico. Indicadores
sobre a infância brasileira, que revelam elevadas taxas
de mortalidade, como morbidade e desnutrição proteico-
energética, deixaram a exclusividade da academia e
passaram a ser amplamente discutidos nos mais
diferentes segmento sociais.
Em meio a todos estes índices, a fome, entre as
crianças nos seis primeiros meses de vida, emerge como
um outro triste paradoxo. Como entender que há fome
entre lactentes, em uma nação que desperdiça algo em
torno de três centenas de milhões de litros de leite humano
por ano. Fome e desperdício. Desperdício antes de tudo
de oportunidade de amamentar o próprio filho. Não seria
esta uma questão de cidadania? Uma primeira
aproximação ao tema, sugere que o direito de ser aleitado
ao seio materno pode e deve ser visto como um dos
primeiros direitos de um cidadão.
A amamentação vista enquanto fato social tem a
sua história, que se insere em uma história ainda maior: a
da maternidade. Tentar enfocá-la sem esta
contextualização, trata-se de retórica, semiótica ou de uma
estratégia textual para fins específicos. Assim, o foco da
discussão não pode ficar centrado exclusivamente na
criança. A mulher exerce um papel determinante neste
processo e não pode ser desconsiderada.
Apesar de ser aceita a importância da mulher
para se promover o aleitamento, o campo das políticas de
amamentação nem sempre reflete a ótica desse ator
social. Nesse sentido, conclui ORLANDI17 :
“Seja como for, os seios, por muito tempo,
despertarão um interesse político. Mas é preciso
lembrar que eles pertencem às mulheres e que
elas não são chamadas a opinar e a decidir na
política do aleitamento materno desde o século
XVIII. No século XX, os homens continuam
cometendo os mesmos erros.”(p. 134)
O contato mãe-filho constitui um dos pressupostos
básicos para o sucesso da amamentação. Esta exigência
“simples” vem se configurando num dos maiores
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obstáculos para a mulher, que tem o papel social de gerar
força de trabalho e de cuidar do lar, além de ser impelida
a contribuir diretamente com o orçamento familiar. Como
compatibilizar esta tripla jornada? As leis imanentes, pelas
quais a sociedade se pauta, permitem harmonizar
maternidade, trabalho no lar e trabalho remunerado? A
maternidade precisa e deve ser vista como uma questão
de cidadania e o aleitamento materno como um dos
atributos que a categorizam.
TRANSCENDÊNCIA X IMANÊNCIA
A abordagem do aleitamento materno como um
fenômeno bio-psico-social, certamente não constitui
nenhum ineditismo. Os analistas, inclusive, tratam o tema
a partir de três repertórios distintos: o biológico, o
psicológico e o social. Em verdade, na maioria das vezes,
coloca-se o biológico de um lado e funde-se o psicológico
ao social, transformando-o em psicossocial. Apesar de
se observar um esforço para tratar a amamentação de
forma holística e inteiriça, isto nunca passa de retórica,
estratégia textual, contextualização ou semiótica, pois em
verdade não se consegue conectar, ao mesmo tempo, o
biológico ao social, sem reduzir-se nem a uma coisa nem
a outra.
A análise crítica de fenômenos relacionados à
amamentação, a exemplo do desmame, tende sempre a
levar a um distanciamento entre natureza e cultura.
Quando se discute as questões biológicas, fundamentadas
em teorias cientificamente embasadas, fala-se do “ser
biológico” e dos fatos naturalizados, não há aí espaço
para a sociedade, nem para o sujeito. Quando se fala do
“ser social”, tende-se sempre a desconsiderar a ciência
e a técnica em detrimento da cultura. Cada uma destas
formas de crítica mostra-se potente em si mesma, mas,
por não serem combinadas entre si, corroboram para que
se amplie a dicotomia entre o “ser biológico” e o “ser
social”, como se fossem “seres” distintos. Assim, vale
indagar sobre os significados e as intencionalidades
camufladas nesta polarização, que em verdade se originam
nas ações e construções dos grupos e da sociedade. Esta
polarização pode se configurar num importante
demarcador para que a sociedade exerça o seu papel
disciplinador sobre a amamentação.
Os mecanismos de controle, exercidos sobre o
ato de amamentar, são característicos da sociedade onde
ocorre o ato e se constituem num reflexo dos padrões
éticos vigentes. Nas sociedades regidas pela exterioridade,
certamente a mediação entre a consciência e o ato se dá
através da culpa, que junto com a vergonha exerce o
controle sobre a ação do indivíduo e imputa
responsabilidade. A sociedade atual tende a instituir um
novo modelo de mediação do ser consigo mesmo, que
Amamentação...
passa a ser exercido pelos meios de comunicação e a
normalização do ato de amamentar passa a ser definida
pela relação com riscos futuros.
Em resumo, a amamentação deve ser vista como
uma categoria híbrida que se constrói a partir de
caraterísticas, atributos e propriedades, definidas tanto
pela natureza como pela cultura. Assim, configura-se o
fato de que o aleitamento não deve ser tratado pela
semiótica exclusivista da transcendência ou da imanência,
mas como algo que resulta de fenômenos regidos pelas
leis da ciência e dos homens, simultaneamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O LIDAR COM O
HÍBRIDO
REA19, ao se referir à alimentação na escala
animal, observa que entre os primatas superiores os
filhotes não buscam de uma forma ativa a mama ou até
mesmo a mãe. Para que ele sobreviva, é necessário que
a mãe leve a mama à sua boca. Para a autora essa relação
mãe primata - filhote revela-se como um fato parcialmente
reflexo e parcialmente aprendido. Seguindo esse
raciocínio, ela conclui que aprender a amamentar para os
humanos é uma tarefa bastante complicada, uma vez que
ela é historicamente determinada.
NAKANO14 , ao estudar as representações
sociais do aleitamento materno em um grupo de mulheres,
conclui que a amamentação se manifesta por um
sentimento ambíguo e contraditório, oscilando entre o
desejo e o fardo. Mesmo as mulheres que vêem o
aleitamento como algo biologicamente natural percebem
em sua prática limites e sentem necessidade de
desenvolverem aprendizagens, evidenciando que o ato de
amamentar não é tão instintivo como se pensa.
Em um mundo de circunstâncias pós-modernas,
torna-se difícil operar com conceitos que reforcem a
separação ciência-sociedade. Como pensar hoje num
mundo que independa daquilo que se pense dele. Não se
faz mais possível admitir que haja independência entre
fato e teoria. Há de se sair do realismo puro, para o
realismo histórico. Logo, não há mais como se considerar
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a existência de objetos puros e de cientistas neutros.
Portanto, a neutralidade científica se traduz hoje como
uma questão ética, que por sua vez depende da relação
da própria ciência com a natureza, com os cientistas e da
interação com a sociedade. Assim, não faz mais sentido
lidar com a amamentação natural pela lógica da crítica,
da purificação, cujo cerne visa a separação entre ciência
e sociedade.
A manutenção da noção de rede, apesar de
ampliar o grau de complexidade das formulações,
oportuniza uma melhor resolutividade. A título de exemplo,
para uma reflexão rápida, vale considerar a seguinte
questão: O “marketing” exercido pela indústria em favor
de seus produtos, tem de fato o poder de modificar o
comportamento do médico? Dentre as mais variadas
formas de se responder a esta pergunta, sugere-se uma.
Dirija-se ao arquivo médico de um hospital materno-
infantil e procure examinar as prescrições alimentares
para lactentes, ao longo dos últimos anos. Não raro, será
possível observar prescrições de produtos específicos
quando o médico opta por um leite em pó. Contudo, a
mesma tendência não se faz presente quando a opção se
configura no leite de vaca fluido. Nestas situações, trata-
se pelo genérico, leite de vaca, sem discriminação de
marca, aliás, como deveria ser também na opção pelo
leite em pó. Casualidade? Pouco provável. Trata-se de
um comportamento passível de ser observado nos
registros da grande maioria das instituições que lidam com
a saúde de lactentes neste País. Por de trás desta
constatação, existem interesses que resultam do
desdobramento do confronto do saber médico com a
ideologia da indústria. Trata-se, pois, de uma luta sem
tréguas pelo domínio de um saber, na qual o poder
econômico merece um lugar de destaque.
Por fim, entendendo o aleitamento materno como
um híbrido entre natureza e cultura, resta uma última
questão. Ao longo da história, a amamentação tem se
prestado aos mais diferentes fins. Na mais recente fase
da modernidade, a indústria foi a principal beneficiada
pela lógica da purificação. Contudo, em plenas
circunstâncias pós-modernas, a quem interessa a
polarização ciência-sociedade no cenário da
amamentação ?
BREAST FEEDING: A HYBRID NATURE-CULTURE
This article consists in an essay that aims, through a review of bibliography, to discuss the relation between a proposal
of Bruno Latour about nature-culture and breast feeding. According to his proposal, having as reference an epistemological
view, there is an attempt to establish dialogue between different scientific achievements with a view to contribute to the
improvement of this subject in the field of public health. Firstly, the paradox of weaning is found in the scenery of knowledge and
practices of breast feeding. The analysis is based on the relationship nature-science and culture-society, which are present in the
process of breast feeding. Finally, the discussion has the aim of dealing with breast feeding as long as a hybrid between nature
and culture, starting a new issue to the continuity in the debate about the thematic in question.
KEY WORDS : breast feeding, nature-culture, epistemology, public health
Amamentação...
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AMAMENTACIÓN: UN HÍBRIDO NATUREZA-CULTURA
Este artículo consiste en un ensayo cuyo objetivo es: a partir de una revisión bibliográfica, discutir la relación entre
la proposición de Bruno Latour sobre naturaleza-civilización y amamantación. En torno esta proposición, teniendo como
referencia una visión epistemológica, se búsca establecer diálogo con diferentes trabajos en el sentido de aportar para profundizar
el asunto en el ámbito de la salud pública. Inicialmente, la paradoja para destetar queda en el encenario de los conocimentos
y de las prácticas de amamantación. El análisis acompaña las relaciones naturaleza-ciencia y civilización-sociedad presentes
en el interior de la amamantación. Para finalizar, la discusión se encamina para el lidiar con la amamantación, mientras un
híbrido entre la naturaleza y cultura, apuntando a un nuevo cuestionamiento para la continuidad del debate sobre la temática
en cuestión.
TÉRMINOS CLAVES: amamantación, naturaleza-civilización, epistemología, salud pública
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1 cassete VHS, 27 min., color., son.