Awe: Efeitos Cognitivos, Emocionais e Motivacionais do Deslumbramento num Contexto Experimental
Psicologia: Teoria e Pesquisa
2021, v.37, e37210
DOI: https://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e37210
Ciências do Comportamento
Awe: Efeitos Cognitivos, Emocionais e Motivacionais
do Deslumbramento num Contexto Experimental
Maria Eduarda Ferreira1,* , Paulo Mendes1 , Beatriz Sardenberg1 ,
& Marina Martorelli Pinho1,2
1Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2Centro Universitário Celso Lisboa, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO A relativamente inexplorada emoção de awe, que pode ser descrita em português como a sensação de
deslumbramento e transcendência perante a percepção subjetiva de grandiosidade, vem sendo experimentalmente associada
a efeitos positivos de natureza diversa. Nos artigos encontrados para inclusão nesta revisão bibliográfica, foram relatados
um aumento da pró-socialidade e de sentimentos afiliativos, melhoras no humor e na satisfação pessoal, e modificações na
concepção dos participantes acerca do tempo, levando a uma redução da impaciência e incentivando a busca de experiências
de crescimento pessoal em lugar de recompensas imediatas. Esse sentimento também pareceu encorajar o senso crítico
com relação a tentativas de convencimento, além de promover a espiritualidade e a identificação de propósito na realidade.
PALAVRAS-CHAVE: emoção, psicologia experimental, psicologia positiva, psicologia ambiental, revisão de literatura
Awe: Cognitive, Emotional and Motivational Effects
of Dazzle in an Experimental Context
ABSTRACT The relatively uninvestigated emotion of awe has been experimentally associated with a wide range of
positive effects. The articles retrieved for inclusion in this literature review reported an increase in prosociality and group
affiliation, improvements in mood and personal satisfaction, and alterations in subjects’ conception of time which reduced
feelings of impatience and enhanced their disposition to seek personal growth experiences over immediate rewards. This
emotion also seemed to encourage critical thinking with regard to persuasion attempts, and to promote spirituality as well
as the identification of purpose in reality.
KEYWORDS: emotion, experimental psychology, positive psychology, environmental psychology, literature review
Apalavra inglesa awe, ainda sem tradução satisfatoriamente
abrangente para o português, designa o sentimento evocado
pela contemplação de um acontecimento ou cenário tão
grandioso que altere, ainda que transitoriamente, a percepção
do indivíduo sobre o mundo e sua própria posição nele
(Keltner & Haidt, 2003). Permeando do temor religioso
ao deslumbramento com uma vasta paisagem natural e
descrito desde escrituras sagradas hindus até a sociologia
de Max Weber (citado por Keltner & Haidt, 2003), o awe é
uma sensação distintamente humana e universal, ainda que
vivenciada de maneira íntima. No entanto, o assunto foi
pouco explorado pela psicologia experimental até os dias
de hoje, numa trajetória de início recente – o experimento
mais antigo encontrado nas bases consultadas data de 2008.
Talvez essa relativa carência de publicações se deva ao
desafio inerente à realização de qualquer tipo de pesquisa
científica dessa natureza: como resumir uma experiência
subjetiva transcendente, aparentemente inacessível à
comunicação mundana, na forma de um constructo bem
definido e decomponível em seus elementos constituintes,
passível de medição e análise estatística? Mais do que
isso, como induzir, através de manipulação experimental,
um estado pessoal e introspectivo por natureza, de modo
a permitir a testagem através de escalas aplicadas antes e
depois ou de tarefas comportamentais, a comparação com
um grupo controle, e a realização de inferências válidas
quanto à causalidade das correlações encontradas? Apesar
da inegável dificuldade, os estudos experimentais realizados
* E-mail: ferreira.mev@gmail.com
Submetido: 19/09/2016; Revisado: 18/07/2019; Aceito: 16/01/2020.
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ME Ferreira, P Mendes, B Sardenberg, & MM Pinho
nos últimos anos acerca do awe vêm progredindo na criação
de instrumentos para estudá-lo e os resultados obtidos têm
sido animadores, de modo a estimular a continuidade dos
esforços. Esse sentimento já foi associado a efeitos positivos
sobre diversas esferas centrais da vida humana, como o humor
(Joye & Bolderdijk, 2014) e a disposição para colaborar
com os demais (Rudd et al., 2012; Piff et al., 2015; Joye &
Bolderdijk, 2014). Ao que tudo indica, trata-se de um tópico
dotado de ricas possibilidades de estudo sobretudo para a
psicologia positiva, podendo até mesmo dar origem a formas
de aplicação e intervenção em campos diversos, caso se
confirmem as associações entre awe, bem-estar e qualidade de
vida encontradas até o momento – uma relação de causalidade
que somente a pesquisa experimental pode comprovar.
Este artigo é o resultado da reunião e comparação do que
vem sendo publicado no âmbito da psicologia experimental
sobre a emoção de awe. Ele busca divulgar resultados e
aprimorar os desenhos experimentais empregados para a
exploração desse tema ainda incipientemente trabalhado,
mas que pode encerrar não apenas um grande potencial de
auxílio à compreensão da experiência humana, de maneira
transcultural e atemporal, como também uma chave para o
ganho de qualidade de vida em meio às atribulações do dia
a dia contemporâneo.
MÉTODO
Os artigos para revisão foram pesquisados nas bases de
dados Scielo, PubMed, EBSCO Academic Search Premier
e APA PsycNET, empregando-se os descritores “awe” e
psychology” integrados pelo operador booleano “AND”.
Não houve restrição de idioma e a busca foi realizada até
maio de 2016, incluindo artigos publicados até a ocasião.
Os critérios previamente estabelecidos para a inclusão
foram a existência de algum tipo de contraste entre ao
menos dois grupos de participantes, quer fosse com
relação à pontuação numa escala ou à realização de uma
tarefa comportamental, tendo um deles sido previamente
submetido a alguma espécie de manipulação experimental
para indução de awe, enquanto os demais estivessem sujeitos
a outro estado emocional controle. Foram excluídos estudos
que envolvessem apenas a realização de entrevistas ou a
aplicação de questionários de maneira não vinculada a um
contexto experimental indutor de awe.
Foram encontrados 502 artigos nas bases bibliográficas
pesquisadas. Uma avaliação dos títulos e resumos resultou
na exclusão de 487 artigos, ou por não tratarem do tema,
ou por se tratar de resenhas de livros, artigos sobre a
prática clínica, artigos de opinião, ou explorações apenas
teóricas sobre a natureza do sentimento de awe. Dos
15 artigos restantes, 7 foram excluídos por envolverem
apenas a aplicação de questionários sem a presença de uma
intervenção experimental, não atendendo aos critérios de
elegibilidade. A Figura 1 traz uma representação gráfica do
processo descrito.
Figura 1. Fluxograma indicando o processo de identificação e seleção de artigos.
RESULTADOS
Os seis estudos experimentais e os dois estudos quase-
experimentais restantes após as exclusões detalhadas na
seção “Método” passaram a compor esta revisão.
Talvez o resultado mais repetidamente relatado em
experimentos e quase-experimentos acerca da emoção de
awe seja um aumento da disposição para o comportamento
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Psic.:Teor. e Pesq., Brasília, 2021, v. 37, e37210
Awe: Efeitos na Cognição, Emoção e Motivação
pró-social (Joye & Bolderdijk, 2014; Piff et al., 2015; Rudd
et al., 2012), possivelmente associada a uma intensificação
de sentimentos afiliativos (Cappellen & Saroglou, 2012). Foi
também descrito por mais de um artigo (Joye & Bolderdijk,
2014; Rudd et al., 2012) um efeito de melhora no humor dos
participantes ou em sua satisfação com sua própria vida após
a evocação de awe. Ademais, esse estado emocional parece
alterar a concepção dos sujeitos sobre o tempo, fazendo com
que este pareça menos escasso e aqueles se tornem menos
impacientes, além de mudar as prioridades dos indivíduos
com relação à alocação desse recurso, levando-os a priorizar
experiências vivenciais acima de bens materiais (Rudd et al.,
2012), e experiências espirituais sobre outras de natureza
hedonista (Cappellen & Saroglou, 2012).
Curiosamente, a emoção estudada promove o que
poderia ser descrito como um aumento do senso crítico com
relação à avaliação de argumentos, tornando os participantes
menos inclinados a se deixar persuadir por argumentação
fracamente embasada (Griskevicius et al., 2010), mas isso
não se refletiu num aumento do ceticismo com relação a
temas de natureza mística: em Valdesolo e Graham (2014),
pelo contrário, foi encontrada uma correlação entre a indução
de awe e a interpretação de eventos como resultantes de
uma determinação intencional e dirigida para um propósito
(agency detection, ou detecção de agência, numa tradução
livre) por parte dos sujeitos, medida através de escalas sobre
a crença no sobrenatural e pela identificação de padrões
(falsos) em sequências numéricas aleatórias.
Dois dos artigos incluídos, por fim, concentrando-se
sobre as condições de evocação do sentimento de awe,
identificaram uma maior predisposição a essa emoção em
pessoas que pontuavam mais alto em escalas para medição
do grande fator de personalidade Abertura à experiência
(Silvia et al., 2015), e um maior potencial de eliciação desse
estado por espaços naturais “selvagens” ou largamente
intocados, em oposição àqueles visivelmente planejados
e modificados pelo homem (Davis & Gatersleben, 2013).
Os métodos empregados na evocação do sentimento de
awe foram diversos, incluindo a exposição a imagens ou
vídeos de grandiosidade na natureza, como tornados ou o pôr
do sol, a produção de relatos sobre vivências anteriores dessa
sensação como maneira de provocá-la novamente através da
concentração na memória do evento, e a exposição à natureza
in vivo. Todos os experimentos se valeram da indução de
outras emoções positivas e/ou de estados emocionais neutros
em condições similares, como situações controle.
A Tabela 1 apresenta um detalhamento do método e
resultados de cada artigo individualmente.
DISCUSSÃO
Todos os estudos incluídos na revisão apontam para
efeitos positivos de experiências indutoras de awe sobre os
sujeitos, o que talvez não seja de todo surpreendente. Tal
simplicidade é apenas aparente: uma análise aprofundada
dos resultados em conjunto revela não só implicações além
da simples confirmação da crença, algo intuitivo, de que
esses estados emocionais sejam agradáveis, como também
acaba por gerar mais perguntas do que respostas, apontando
diversos possíveis caminhos para a recém-iniciada
exploração desse tema pela psicologia experimental.
Uma dimensão em que foram feitas observações
aparentemente contrastantes é a maneira como o awe
impacta a relação de um indivíduo com os demais. Se, por
um lado, a indução de awe foi associada à intensificação
da sensação de pertencimento tanto a um grupo de pessoas
próximas quanto à coletividade ou humanidade de maneira
geral (Capellen & Saroglou, 2012), e repetidamente
mostrou-se um fator de incentivo ao comportamento pró-
social (Joye & Bolderdijk, 2014; Piff et al., 2015; Rudd
et al., 2012). Por outro lado, não parece haver qualquer
correlação entre a Extroversão – conforme definida pelo
modelo dos cinco grandes fatores de personalidade – e a
propensão a vivenciar emoções associadas ao awe. Esse
resultado ocorre a despeito da reconhecida relação entre
esse traço e a ocorrência de estados emocionais positivos de
maneira geral (Silvia et al., 2015), e da própria definição do
fator Extroversão como caracterizado pela predisposição a
interagir com outras pessoas (Ashton & Lee, 2001). Pode ser
notado também que as diferentes estratégias de manipulação
experimental empregadas para gerar awe nos participantes
foram todas atividades individuais, nas quais muitas vezes
sequer havia qualquer espécie de referência à socialização
ou à presença de outras pessoas: no caso dos estudos que se
valeram de fotografias de cenários naturais, por exemplo, não
foi relatada por nenhum dos autores a escolha preferencial
por imagens em que houvesse pessoas presentes (Joye &
Bolderdijk, 2014; Silvia et al., 2015; Piff et al., 2015).
Extrai-se daí que o awe é, simultaneamente, uma emoção
que não tem um caráter inerentemente social – isto é, que
não depende de um contexto de interação interpessoal para
ser eliciada e que, na verdade, talvez seja mais facilmente
evocada por experiências introspectivas, que muitas
vezes ocorrem de maneira solitária – e um modificador da
maneira como uma pessoa se vê com relação às demais.
Devido à ausência de um componente social direto nesse
tipo de experiência, é razoável supor que esse impacto seja
consequência de influências mais amplas do awe sobre a
cognição. Piff et al. (2015) observaram uma correlação entre
a indução experimental de awe e o fenômeno denominado
small self (“eu pequeno”, numa tradução literal), em que o
indivíduo vivencia uma diminuição subjetiva da percepção
de seu próprio eu e seus desejos e objetivos face à consciência
de uma entidade tida como maior e mais poderosa. Mais do
que isso, uma análise de mediação confirmou que os efeitos
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ME Ferreira, P Mendes, B Sardenberg, & MM Pinho
Tabela 1
Artigos incluídos na revisão
Autor/Ano Título
Delineamento
Resultados
Davis e
Gatersleben
(2013)
Transcendent Experiences in
Wild and Manicured Settings:
The Influence of the Trait
‘Connectedness to Nature’
Estudo quase-experimental (n = 253) com
aplicação de questionários sobre estado
emocional a dois grupos após um intervalo
de tempo passado em ambiente selvagem ou
modificado pelo homem.
Awe caracterizado como mais fortemente
induzido por ambientes selvagens, enquanto o
contato com a natureza modificada produziria
mais sentimentos de calma.
Joye e
Bolderdijk
(2014)
An exploratory study into
the effects of extraordinary
nature on emotions, mood, and
prosociality
Estudo quase-experimental (n = 202) em
que três grupos assistiam em casa, pela
internet, a apresentações de slides contendo
imagens indutoras ou não de awe.
Awe associado a melhoras no humor e ao
aumento do escore de orientação de valor social
(SVO) numa tarefa de alocação de recursos.
Nenhum impacto sobre a disposição para fazer
doações.
Rudd, Vohs e
Aaker (2012)
Awe Expands People’s
Perception of Time, Alters
Decision Making, and Enhances
Well-Being
Estudo incluindo três experimentos
randomizados comparando condições
indutoras de felicidade e awe (n = 254).
Avaliação do tempo como mais abundante,
menor impaciência, maior disposição para doar
tempo por meio de trabalho voluntário (mas não
dinheiro), aumento da satisfação com a própria
vida e priorização de experiências prazerosas em
oposição a bens materiais na condição awe.
Piff, Dietze,
Feinberg,
Stancato
e Keltner
(2015)
Awe, the Small Self, and
Prosocial Behavior
Estudo incluindo cinco experimentos
randomizados induzindo diferentes
sentimentos, incluindo awe, ou participantes
com variações prévias na frequência com
que vivenciam o sentimento de awe em sua
vida diária (n = 2078).
Correlação entre frequência prévia de
experiências de awe e generosidade num jogo
econômico. A indução de awe levou a uma maior
ética e generosidade na tomada de decisões,
mediada pela sensação de insignificância ou
conexão a algo maior (small self). Os resultados
se confirmaram mesmo quando o awe não estava
associado à natureza, ou estava associado ao
medo.
Valdesolo
e Graham
(2014)
Awe, Uncertainty, and Agency
Detection
Estudo incluindo cinco experimentos
randomizados de manipulação de awe em
comparação a uma condição neutra e, em
alguns casos, humor positivo inespecífico
(n = 484).
Correlação entre awe induzido e: crença em
forças sobrenaturais, incluindo o controle
sobrenatural dos acontecimentos; desconforto
com a ambiguidade; e percepção de uma
organização intencional em padrões numéricos
aleatórios.
Griskevicius,
Shiota e
Neufeld
(2010)
Influence of Different Positive
Emotions on Persuasion
Processing: A Functional
Evolutionary Approach
Estudo incluindo dois experimentos
randomizados em que, após a evocação
de diferentes emoções, inclusive awe, os
participantes (n = 735) eram expostos a
mensagens persuasivas com argumentação
forte ou fracamente embasada.
Correlação entre o sentimento de awe e uma
menor propensão a se deixar persuadir por
argumentação de teor fraco.
Cappellen
e Saroglou
(2012)
Awe Activates Religious
and Spiritual Feelings and
Behavioural Intentions
Estudo com dois experimentos
randomizados de indução de awe ou de um
controle (n = 219), seguida de questionário
sobre o sentimento de unidade com os
demais ou da escolha hipotética por um
local de viagem.
O estado de awe promove a sensação de
comunhão com um grupo de amigos e favorece
a escolha pela realização de uma viagem
espiritual, em vez de uma opção hedonista, em
pessoas religiosas (efeito não significativo em
pessoas não religiosas).
Silvia, Fayn,
Nusbaum e
Beaty (2015)
OTE and Awe in Response to
Nature and Music: Personality
and Profound Aesthetic
Experiences
Estudo experimental de duas fases (n = 103)
envolvendo a avaliação dos sujeitos, em um
questionário, da experiência de visualizar
imagens do Universo e escutar uma canção
indutora de awe.
Correlação entre o fator de personalidade
Abertura à experiência e tendência a vivenciar
awe; correlações menores encontradas para
outros fatores, exceto Extroversão.
sobre a generosidade dos participantes nas tarefas propostas
estavam muito mais relacionados à intensidade com que o
awe havia evocado a sensação de small self do que com o
quão fortemente o awe em si havia sido vivenciado.
Nenhum dos outros artigos selecionados empregou
medidas para avaliar o efeito small self, de modo que
essa mediação encontrada preliminarmente necessita de
mais estudos para que seja confirmada e explorada mais a
fundo. No entanto, o modelo proposto é condizente com o
entendimento de que o awe é evocado pela percepção de
uma grandiosidade que exceda as dimensões das estruturais
mentais existentes a ponto de exigir acomodação para
que possa ser assimilada (Keltner & Haidt, 2003): se uma
experiência de awe de alguma forma leva o indivíduo a
operar numa “escala” maior, é possível que as dimensões
de seu próprio eu passem a não mais ocupar uma parcela
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Psic.:Teor. e Pesq., Brasília, 2021, v. 37, e37210
Awe: Efeitos na Cognição, Emoção e Motivação
tão grande de sua percepção da realidade, possibilitando que
ele enxergue com mais facilidade e leve em consideração
as necessidades e desejos dos demais, além de ressaltar a
semelhança destes com os seus (o que pode ser uma causa
para a sensação de pertencimento aumentada, descrita por
Capellen & Saroglou, 2012).
Esse processo de acomodação pode estar também na
base da mudança de perspectiva com relação ao tempo
observada por Rudd et al. (2012), em que sujeitos que
haviam sentido awe, em comparação com outra emoção
positiva (felicidade) ou uma condição neutra, pontuaram
mais baixo numa escala para medição do sentimento de
impaciência e mais alto numa escala de avaliação da crença
pessoal na disponibilidade ampla de tempo. Da mesma
maneira como um indivíduo pode se ver numa dimensão
menor com relação a outras pessoas, ele talvez passe a ter
em mente, de maneira consciente ou não, uma escala de
tempo maior, como a duração da vida de uma pessoa ou
mesmo o tempo histórico, geológico ou cósmico, de modo
que o momento atual pareça menor e menos significativo,
e o tempo como um todo pareça mais vasto.
Essa mudança de escala temporal traz possíveis
implicações sobre a motivação ainda não exploradas
experimentalmente. No mesmo artigo mencionado acima
(Rudd et al., 2012), foi demonstrado que o awe torna uma
pessoa mais disposta a dedicar seu tempo a uma atividade
voluntária – e não a fazer doações em dinheiro, o que aponta
para um impacto ao menos parcial da mudança na percepção
do tempo sobre essa disposição, além do simples aumento
da orientação de valor social observado – e a escolher uma
experiência futura agradável, em vez de uma recompensa
material de valor equivalente. Um efeito possivelmente
relacionado foi relatado por Capellen e Saroglou (2012), que
observaram uma maior tendência, por parte de participantes
religiosos em que a emoção de awe havia sido provocada, de
escolha por uma viagem hipotética a um destino previamente
classificado pelos respondentes como espiritual (Tibet)
mesmo quando oferecida a opção de visitar outro local
(Haiti) anteriormente associado ao lazer ou ao hedonismo. É
digna de investigação a influência desses estados emocionais
sobre a capacidade de se recusar uma gratificação imediata
em prol de um benefício maior no futuro, que, se confirmada,
poderia resultar em intervenções baseadas na indução de
awe para o controle da impulsividade e de comportamentos
compulsivos.
Essa possibilidade teórica também ganha força com
base em estudos anteriores não relacionados ao awe que
apontam para semelhanças neurológicas entre a maneira
como são considerados os eus presente e futuro de uma
pessoa, e a própria pessoa e outros indivíduos, num contexto
de tomada de decisões (Jamison & Wegener, 2010). Já foi
observada uma correlação entre a tendência a abrir mão
de benefícios para si em prol da colaboração com outras
pessoas (quantificada por escores de orientação de valor
social) e a realização de escolhas economicamente mais
prudentes a longo prazo, como escolhas mais favoráveis
ao “eu futuro” de um indivíduo em detrimento de seu “eu
presente” (Silva et al., 2015). Tal resultado sugere que esse
fenômeno possa depender do que poderia ser descrito como
“empatia consigo mesmo”, ou da capacidade de entender
e levar em consideração seus próprios sentimentos e
necessidades num momento futuro em que eles difiram ou
até venham de encontro aos atuais. Sendo maiores índices de
comportamento pró-social um dos efeitos mais consistente e
repetidamente observados em estudos experimentais acerca
do awe, é razoável imaginar um impacto semelhante sobre
decisões com relação ao futuro.
Uma falha comum a todos os artigos considerados é
terem sido realizados ao longo de um curto intervalo de
tempo: os resultados dizem respeito apenas aos efeitos
imediatos da manipulação experimental evocadora de awe.
Ao menos até o momento da realização da busca nas bases
citadas, não haviam sido feitos estudos em que os sujeitos
fossem acompanhados após a manipulação por um período
mais extenso, para que se pudesse observar por quanto
tempo os efeitos do awe podem ser sentidos, ou se são
rapidamente anulados pelas vivências cotidianas. Tampouco
houve estudos em que a sensação de awe fosse induzida de
maneira reiterada ao longo do tempo: o awe parece aumentar
a satisfação subjetiva com a própria vida imediatamente
após sua indução (Rudd et al., 2012), mas não se sabe se a
inserção repetida do awe na vida de uma pessoa teria efeitos
sobre seu bem-estar a longo prazo ou traria modificações
comportamentais.
Devido à carência de avaliações sobre impactos de
natureza duradoura, os indicadores de maior disposição
a desempenhar ações específicas, como o trabalho
voluntário, têm capacidade indeterminada de prever como
os indivíduos testados efetivamente se comportam em suas
vidas posteriormente à participação nos estudos, servindo
apenas como indicadores do estado mental em que eles se
encontravam logo após os experimentos. A realização de
estudos longitudinais sobre o tema é essencial para avaliar
a viabilidade e eficiência de intervenções baseadas em awe
em psicoterapia ou na educação, por exemplo: os menores
índices de convencimento por argumentação fracamente
embasada entre participantes na condição awe relatados por
Griskevicius et al. (2010) podem levar ao desenvolvimento
de maior senso crítico com a repetição da experiência,
ou trata-se de uma flutuação momentânea que não traria
benefícios permanentes independentemente da duração ou
frequência de uma intervenção? O caráter dos dados obtidos
até o momento traz aplicações seguras apenas para áreas
como a arquitetura, o paisagismo e o turismo, em que é
importante a relação imediata estabelecida entre o indivíduo
e o meio, sobretudo em sua dimensão estética.
Outra avaliação crítica a ser feita acerca dos estudos –
também digna de investigação mais aprofundada, sobretudo
antes do desenvolvimento de aplicações práticas baseadas
em seus resultados – é o quanto a variação individual
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ME Ferreira, P Mendes, B Sardenberg, & MM Pinho
observada no sucesso da indução de awe pode ter sido
dependente de características prévias dos sujeitos, de
modo que nem todas as pessoas possam ser igualmente
beneficiadas por intervenções do gênero. É possível que
os maiores beneficiados por elas sejam aqueles que já
partem de uma linha de base mais elevada com relação aos
fatores medidos e que, consequentemente, teriam menor
necessidade real de uma intervenção.
Davis e Gatersleben (2013) observaram que um ambiente
“selvagem”, de natureza não modificada pelo homem,
tinha, ao mesmo tempo, maior potencial indutor de awe,
se comparado a um jardim cuidadosamente organizado, e
maior probabilidade de provocar sentimentos negativos ou
perturbadores em alguns indivíduos. Não houve correlação
entre a presença ou intensidade do awe em si e a ocorrência
desses sentimentos perturbadores, mas o achado chama
atenção para o fato de que nem todas as pessoas reagem do
mesmo modo ao mesmo tipo de ambiente, o que deve ser
considerado no desenvolvimento de estratégias para induzir
awe – não só visando a uma aplicação prática, como até
mesmo para a realização de futuros experimentos, em que
talvez devesse existir um maior controle das características
pessoais dos participantes. Nesse estudo, o traço de
personalidade connectedness to nature, medido através
da escala de Mayer e Frantz (2004, citados por Davis &
Gatersleben, 2013), foi um preditor tanto da evocação de
awe quanto de emoções perturbadoras, ainda que, por se
tratar de um estudo quase-experimental, em que os próprios
sujeitos escolheram o ambiente a ser visitado, não seja
possível determinar se as diferenças observadas foram ao
menos parcialmente afetadas por características ou fatores
que tenham motivado a opção por um ou outro local, uma
limitação reconhecida pelos próprios autores.
No que parece ter sido o único experimento do gênero
até o momento, Silvia et al. (2015) avaliaram o impacto dos
cinco grandes fatores de personalidade sobre a experiência
de sentimentos associados ou não ao awe após a exposição
a imagens do espaço sideral e a uma canção escolhida
com base em trabalhos musicológicos anteriores. Todos os
fatores de personalidade – exceto Extroversão, conforme
já mencionado acima – previram ao menos uma das
sensações avaliadas. Sujeitos com escores mais elevados de
Neuroticismo, por exemplo, tiveram maior probabilidade
de relatar confusão após visualizar as imagens do espaço e
de sentirem-se arrepiados com a música. Num efeito mais
notável e talvez de maior significado, o fator Abertura à
experiência teve não só correlações comparativamente
mais fortes do que as observadas com os demais traços,
como também esteve associado a todos ou quase todos
os componentes da experiência de awe em ambas as
condições.
Uma possível implicação disso é que uma pessoa que
obtivesse uma pontuação baixa numa escala de Abertura à
experiência, por exemplo, não se beneficiaria tanto quanto
as demais de uma intervenção baseada em awe, sendo
mais adequado buscar outras técnicas para obter os efeitos
cognitivos ou comportamentais desejados, enquanto uma
pessoa que pontue de maneira elevada nessa mesma escala
poderia considerar essa mesma experiência intensamente
proveitosa e agradável. Esse fator de personalidade deveria
também ser controlado em experimentos posteriores, a
fim de verificar se essa associação se sustentará em outros
contextos.
Pode ser apontado como limitação deste artigo o fato de
não se tratar de uma revisão sistemática e não terem sido
considerados todos os artigos publicados sobre o tema awe
na psicologia até hoje. No entanto, a opção por estudos
experimentais (e quase-experimentais) foi feita tendo
em mente que entrevistas ou questionários sem qualquer
tipo de controle com relação às condições anteriores dos
participantes poderiam gerar impactos imprevisíveis sobre
os resultados obtidos. Além disso, estratégias desenvolvidas
para a indução de awe num contexto experimental podem ser
aproveitadas em outras situações em que se deseje aplicar
esse conhecimento, associadas a áreas como o paisagismo
ou a psicologia clínica.
Espera-se que o assunto awe continue sendo explorado
na psicologia experimental, sobretudo por meio do
desenvolvimento de novas metodologias de pesquisa com
base nos resultados apresentados na literatura até agora,
para que nosso entendimento acerca do tema seja expandido
e tornado mais preciso, podendo inclusive dar origem a
aplicações práticas que tragam ganhos de qualidade de vida
para pessoas nas mais variadas situações.
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Awe: Efeitos na Cognição, Emoção e Motivação
Joye, Y., & Bolderdijk, J. W. (2015). An exploratory study into
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