Os donos da natureza: patrimônio, posse e propriedade na instituição de RPPNs
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Luciana Braga Silveira
Os donos da natureza: patrimônio, posse e propriedade na instituição de
RPPNs
Rio de Janeiro
2009
Luciana Braga Silveira
Os donos da natureza: patrimônio, posse e propriedade na instituição de RPPNs
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Doutor
ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Orientadora: Prof. Drª Patrícia Birman
Co-orientadora: Prof. Drª Rosane Prado
Rio de Janeiro
2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A
S586
Silveira, Luciana Braga.
Os donos da natureza: patrimônio, posse e propriedade na instituição
de RPPNs/ Luciana Braga Silveira. - 2009.
283 f.
Orientadora: Patrícia Birman
Coorientadora: Rosane Prado.
Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia.
1. Ciências Sociais – Teses. 2. Reservas naturais - Teses. 3. Proteção
ambiental - Teses. I. Birman, Patrícia. II. Prado, Rosane. III.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. IV. Título.
CDU3
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese.
_____________________________________
Assinatura
___________________________
Data
Luciana Braga Silveira
Os donos da natureza: patrimônio, posse e propriedade na instituição de RPPNs
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em 10 de agosto de 2009.
Banca Examinadora:
__________________________________________
Prof. Drª Patrícia Birman (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________________
Prof. Drª Rosane Prado
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Henyo Barreto Filho
Instituto Internacional de Educação do Brasil
__________________________________________
Prof. Drª Márcia Leite
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________________
Prof. Drª Regina Novaes
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFRJ
Rio de Janeiro
2009
AGRADECIMENTOS
Pessoas muito importantes para mim estiveram presentes ao longo da produção deste
trabalho, me apoiando, me dando ânimo e estímulo. Acreditaram em mim, confiaram que eu
conseguiria chegar ao fim, apesar de todos os percalços, das dificuldades, de todo o esforço...
Rosana da Câmara, minha querida anfitriã, confidente, que compartilhou comigo
momentos tristes e felizes. Antropóloga brilhante que me inspirou tantas reflexões. Sua
presença foi fundamental para a escrita dessa tese.
Luciana Dulci, minha irmã de alma, agradeço sua presença em minha vida.
Aos meus amigos de sempre, Aleixo Cruz, Renata Mendes e Sheila Fernandes
agradeço o incentivo, a torcida ao meu favor...
Agradeço à Rosane Prado, que me recebeu na UERJ com tanto carinho, mesmo antes
de me conhecer, depositando tanta confiança em mim. Obrigada pelo apoio, pelas orientações,
sugestões, pelas meticulosas correções. Foram inúmeras suas contribuições.
Patrícia Birman, que assumiu a orientação deste trabalho com o coração aberto.
Obrigada pela sua paciência, dedicação extrema, pelo cuidado e zelo com que me guiou na
difícil tarefa de produzir essa tese.
Tenho muito a agradecer aos meus entrevistados, que com tanta disposição
colaboraram com esta pesquisa, em especial, Maria Cristina Weyland, presidente da
Associação de Proprietários de RPPNs de Minas Gerais, na época em que realizava o trabalho
de campo.
Dedico este trabalho aos meus dois grandes amores Carlos e a pequena Sofia, sem os
quais nada teria sentido. Agradeço o companheirismo e a ternura sem limites. Só consegui
chegar até aqui porque vocês estavam ao meu lado.
RESUMO
SILVEIRA, L.B. Os donos da natureza: patrimônio, posse e propriedade na instituição de
RPPNs. 283f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
A presente tese trata das relações sociais estruturadas no âmbito das Reservas
Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs). A partir dos anos 2000, a legislação ambiental
brasileira torna possível a institucionalização de áreas naturais protegidas como propriedades
particulares, através da criação da categoria de unidade de conservação RPPN. Essa
possibilidade jurídica tem permitido, desde então, que proprietários rurais, empresas e
organizações não-governamentais, por iniciativa própria, criem RPPNs em domínios
privados. Este trabalho pretende demonstrar que as RPPNs, para além da importância
ecológica que lhe atribuem os ambientalistas em geral, são espaços em que se processa a
reconstrução simbólica da “natureza” e da “terra”. São objetivos centrais desta tese investigar
de que forma, nas experiências dos “Proprietários de RPPNs” ou “Rppnistas”, se atualiza a
idéia de “ambientalismo” e como as propriedades rurais onde são criadas estas áreas
protegidas adquirem novos sentidos. As RPPNs se revelaram como espaços em que se
verifica o exercício criativo e imaginativo da noção de “meio ambiente”. Tal constatação foi
possível na medida em que se buscou compreender as “versões marginais” das RPPNs, ou
seja, os argumentos que reconheciam na “natureza” valores de outras ordens, como a afetiva e
a religiosa. Percebe-se que as “versões marginais” muitas vezes se confrontavam com uma
“versão oficial”, uma descrição político-jurídica, centrada nos atributos biofísicos das RPPNs
e que acabavam por afrontar a hegemonia das explicações técnico-científicas, circunscritas à
noção de “biodiversidade”. A “natureza” da qual falam os Rppnistas é conhecida,
experimentada sensorialmente e apropriada como um bem privado; é a “natureza particular”.
A noção de “patrimônio”, que inspira a concepção da categoria RPPN, permite a ambigüidade
característica dessas reservas: são áreas naturais ao mesmo tempo domínios particulares e
“bens comuns da humanidade”. Assim, a reflexão sobre as metamorfoses das noções de
público e privado diante do processo de patrimonialização das propriedades rurais é uma
conseqüência inevitável deste trabalho. De fato, o discurso ecológico tem possibilitado que a
propriedade privada, como lugar do indivíduo, se torne o lugar da “conservação ambiental”.
Redimidas e ressignificadas através das RPPNs, as propriedades rurais se convertem em
“espaços de sobrevivência da humanidade”. E é a visão apocalíptica que percebe na natureza
o risco da perda, da destruição e da extinção dos “seres naturais” que aproxima os discursos
ecológico e religioso sobre as RPPNs. Percebendo, cada qual ao seu modo, as RPPNs como
“lugares sagrados”, ambientalistas e Rppnistas acreditam que estas reservas devem ser
interditas da ação humana. Observa-se, portanto, que a natureza das RPPNs é reencantada,
paradoxalmente, através das explicações científicas e religiosas, as quais são reelaboradas e
reinterpretadas nos discursos dos Rppnistas.
Palavras-chave: RPPN. Unidades de conservação. Patrimônio. Público e privado.
ABSTRACT
This study is about the social relations in the realm of Reservas Particulares do
Patrimônio Natural, RPPNs (Private Natural Heritage Reserves). Since the 2000’s, Brazilian
environmental law enables the institutionalization of protected natural areas as private
properties, through the creation of the category of Private Natural Heritage Reserve. This
juridical possibility has allowed rural owners, businesses and non-governmental organizations
to create Private Natural Heritage Reserve in private domains. This intends to show that
Private Natural Heritage Reserve, far beyond the ecological importance ascribed by
environmentalists in general, are sites where the symbolic reconstruction of “nature” and
“land” is processed. The main goals of this study are to investigate how, in the experiences of
Private Natural Heritage Reserve owners or “Rppnistas”, the idea of “environmentalism” is
instantiated and how the rural properties where those protected areas are created acquire new
meanings. Private Natural Heritage Reserves became sites where the creative and imaginative
exercise of the notion of environment is set forward. Such a conclusion was possible due to
seeking to understand “marginal versions” of Private Natural Heritage Reserve, that is, the
reasonings that recognize values in nature such as the affective and religious ones. One
realizes that the “marginal versions” were against an “official version”, a political-juridical
description focused on the biophysical attributes of Private Natural Heritage Reserve and
turning out to face the hegemony of technical-scientific explanations attached to the notion of
“biodiversity”. Nature, as it is seen by Rppnistas is known, sensorially experienced and
owned as a private good, it is the “private nature”. The notion of “patrimony” inspiring the
conception of Private Natural Heritage Reserve category allows the characteristic ambiguity
of these reservations: they are natural and private areas at the same time as well as “common
goods of humankind”. Thus, a reflection on the changes of the notion of what is public and
what is private facing the process of “patrimonilization” of rural properties is an inevitable
consequence of this work. Indeed, ecological speech has enabled private property, seen as the
place of the individual, to become the place of “environmental conservation”. Redeemed and
re-signified by means of the Private Natural Heritage Reserve, rural properties turn into “sites
of survival for humankind”. And it is the apocalyptical view, that sees the risk of loss in
nature, of destruction and extinction of the “natural beings” – it is such a view the one that
causes the ecological and religious speeches to come close. Since they see, each one
according to one’s manner, Private Natural Heritage Reserves as “sacred sites”,
environmentalists and Rppnistas believe these reserves should be protected from human
touch. One sees, then, that the nature of Private Natural Heritage Reserves is re-enchanted,
paradoxally, by means of religious and scientific explanations, while they are re-defined and
re-interpreted in Rpnistas’ speeches.
Keywords: RPPN. Protected natural areas. Patrimony. Public and private.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1- Quadro das atividades desenvolvidas durante a pesquisa........................23
Figura 2- Quadro classificatório dos Proprietários de RPPNs ................................30
Figura 3- Quadro contrastando os “Amantes da Natureza” e os “Inimigos
da Natureza”......................................................................................................... 32
Figura 4- Gráfico do número de RPPNs de empresas nos estados........................ 71
Figura 5- Gráfico com a relação de RPPNs em Minas Gerais e a
esfera administrativa................................................................................................ 72
Figura 6- Gráfico com as RPPNs analisadas por intervalo de classe
e tamanho............................................................................................................... 76
Figura 7- Folder sobre o caramujo africano............................................................ 92
Figura 8- Mapa com o número de RPPNs por estado............................................. 135
Figura 9- Foto da Festa de Santo André.................................................................. 161
Figura 10- Foto da capela de Santo André.............................................................. 162
Figura 11- Foto da imagem de Santo André........................................................... 163
Figura 12- Foto da antiga sede da fazenda Bom Retiro.......................................... 169
Figura 13- Foto com detalhes da antiga sede da fazenda Bom Retiro.................... 170
Figura 14-Foto das reportagens afixadas no mural do salão de
educação ambiental..................................................................................................171
Figura 15- Figura dos animais conservados em vidros no salão de
educação ambiental..................................................................................................172
Figura 16- Foto do “Quarto Alegria”.......................................................................173
Figura 17- Foto do “Quarto Amor”......................................................................... 173
Figura 18- Foto do “Quarto Felicidade”.................................................................. 174
Figura 19- Foto do “Quarto Paz”.............................................................................174
Figura 20- Foto da agrofloresta............................................................................... 175
Figura 21- Foto do Centro de Meditação Fluir....................................................... 176
Figura 22- Foto da capela........................................................................................ 177
Figura 23- Foto de alojamentos em construção....................................................... 179
Figura 24- Foto de um exemplar do herbário.......................................................... 194
Figura 25- Foto de um exemplar do herbário.......................................................... 194
Figura 26- Foto de um armário para armazenar plantas secas.................................195
Figura 27- Foto da prensa utilizada para preparar os exemplares do herbário........ 195
Figura 28- Foto de uma ossada animal.................................................................... 197
Figura 29- Foto de carcaças de animais...................................................................197
Figura 30- Foto de ninhos de pássaros.................................................................... 198
Figura 31- Foto de ninho do pássaro “João de Barro”............................................ 198
Figura 32- Foto da “mapoteca”................................................................................201
Figura 33- Foto da coleção de cadernos de campo..................................................203
Figura 34- Foto da biblioteca de obras raras........................................................... 204
Figura 35- Foto da biblioteca II ..............................................................................205
Figura 36- Foto da biblioteca infanto-juvenil.......................................................... 205
Figura 37- Croqui da Fazenda Shangri-la................................................................217
Figura 38- Desenho da sede da Fazenda Shangri-la................................................218
Figura 39- Foto da sede da Fazenda Shangri-la.......................................................219
Figura 40- Foto de uma casa antiga da Fazenda Shangri-la, que antecedeu a chegada
de D.Laura..............................................................................................................219
Figura 41- Foto da casa reformada.......................................................................... 220
Figura 42- Foto da recepção da RPPN Shangri-la...................................................220
Figura 43- Anúncio veiculado na Revista Transe divulgando a criação de uma
“comunidade alternativa”........................................................................................ 230
Figura 44- Foto das Fontes de Jericó..................................................................... 240
Figura 45- Foto de uma placa afixada na RPPN Fazenda dos Anões.....................242
Figura 46- Foto de uma placa afixada na RPPN Fazenda dos Anões.....................243
Figura 47- Foto do Morro da Prece........................................................................244
Figura 48- Foto do Mirante das Explosões Iluminadas...........................................245
Figura 49- Foto do Planetário.................................................................................246
Figura 50- Foto da Casa do Anão Iluminado..........................................................248
Figura 51- Foto da Cabana de Francisco de Assis.................................................250
Figura 52- Foto do Mirante da Sonoterapia............................................................252
Figura 53- Quadro comparativo..............................................................................258
Figura 54- Foto dos “Kalungas” trabalhando na lavoura........................................260
Figura 55- Foto da cozinha comunitária..................................................................261
Figura 56- Foto de um alojamento da chácara de Pedro Miceli..............................262
Figura 57- Quadro comparativo..............................................................................263
LISTA DE SIGLAS
APA- Área de proteção ambiental
APP- Área de Preservação Permanente
ART- Anotação de Responsabilidade Técnica
BA- Bahia
CDB- Convenção de Diversidade Biológica
CI- Conservação Internacional
CNRPPN- Confederação Nacional de RPPNs
CNUMAD- Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
CREA-RJ - Conselho Regional de Engenharia Agronomia do Estado do Rio de Janeiro
CSN- Companhia Siderúrgica Nacional
DF- Distrito Federal
EMATER- Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
EMBRAPA- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e estadual
FEAM- Fundação Estadual de Meio Ambiente
FNMA- Fundo Nacional do Meio Ambiente
FUNATURA- Fundação Pró-Natureza
GO- Goiás
IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
IBC - Instituto Brasileiro do Café
IBOPE- Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
ICMS- Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
IEF- Instituto Estadual de Florestas
INCRA- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ITR- Imposto territorial rural
JC- Jornal da Câmara
MG- Minas Gerais
MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
ONG- Organização não-governamental
PR- Paraná
PRANA- Programa de assistência nutricional
PRESERVA- Associação de Proprietários de RPPNs da Bahia
RJ- Rio de Janeiro
RPDS- Reserva Particular de Desenvolvimento Sustentável
RPPN- Reserva Particular do Patrimônio Natural
SNUC- Sistema Nacional de Unidades de Conservação
TNC- The Nature Conservancy
UC- Unidade de conservação
UICN- União Internacional para a Conservação da Natureza
UNESCO- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
WWF- World Wildlife Fund
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................... 16
1 A COMUNIDADE RPPNISTA ........................................................... 30
1.1 Quem são os Rppnistas? ....................................................................... 30
1.2 Entre “guardiões” e “heróis” da conservação .................................... 35
1.2.1 Os congressos e seminários de RPPNs .................................................... 35
1.2.2 A Lista de Discussão sobre o RPPNs ..................................................... 42
2 AS RPPNs NA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA ...... 47
2.1 O que são as RPPNs? ............................................................................ 47
2.2 Ser ou não ser uma unidade de conservação........................................ 49
2.3 Unidade de Uso Sustentável ou Unidade de Proteção Integral .......... 54
2.4 O “patinho feio” das unidades de conservação..................................... 59
2.5 O Decreto Regulamentador das RPPNs................................................ 62
2.5.1 A decepção com o Decreto Regulamentador das RPPNs........................ 64
2.6 “RPPNs reais”, “RPPNs fajutinhas”, ou “o que faz a RPPN,
uma RPPN”? ......................................................................................... 68
2.6.1 Tamanho é Documento? ......................................................................... 74
2.6.2 Identificando “interesses escusos” .......................................................... 77
3 A NATUREZA DOS RPPNISTAS....................................................... 82
3.1 Desnaturalizando a “biodiversidade” ................................................... 82
3.2 Bichos ....................................................................................................... 84
3.3 Plantas ...................................................................................................... 99
3.4 Homens ..................................................................................................... 104
4 POR UMA ECONOMIA DAS TROCAS DADIVOSAS ..................... 113
4.1 A Constituição de 1988 na instauração de um discurso fundador
Das RPPNs ............................................................................................. 114
4.2 O público e o privado reconfigurados .................................................. 117
4.3 O “patrimônio” e a instauração de um circuito de dádivas ............... 119
4.4 As noções de participação, cidadania e sociedade civil sob o signo
da Dádiva ................................................................................................ 122
4.4.1 A noção de “parceria”............................................................................... 125
4.5 Uma leitura dadivosa da “cidadania” .................................................. 126
4.6 No limiar do dom e do sistema mercantil............................................. 131
4.7 Os três momentos da propriedade privada ......................................... 138
5 OS RPPNISTAS E SEUS PROJETOS ................................................ 146
5.1 Os Proprietários Familiares: reconstruindo a memória familiar........ 148
5.1.1 Ressignificando o latifúndio .................................................................... 149
5.1.2 Inventando a harmonia familiar ............................................................... 164
5.1.3 Protegendo o “lugar do afeto” ................................................................. 180
5.2 Os Colecionadores da Natureza: a invenção de si mesmo ................. 189
5.2.1 Uma geógrafa “metida a botânica” ......................................................... 189
5.2.2 Dono da terra, dono da natureza, dono da história ................................ 207
5.2.3 Colecionando-se a si mesmo .................................................................. 213
5.3 Os Espiritualistas Ecológicos: uma mística da natureza no templo
do “eu” ................................................................................................... 224
5.3.1 “Largar o sistemão e ir para o mato” ...................................................... 228
5.3.2 “Seu Deus interior é o Deus de todos nós” ............................................. 236
5.3.3 “A verdade está aqui” ............................................................................. 257
CONCLUSÃO ....................................................................................... 265
REFERÊNCIAS .................................................................................... 270
16
INTRODUÇÃO
A sigla RPPN é sempre um motivo de curiosidade quando falo sobre a minha
pesquisa. Sempre gastei um tempo razoável apenas para tentar explicar do que se trata este
estranho referente. E a pergunta é quase sempre imediata: como você descobriu este objeto?
Na verdade, ele foi sendo “descoberto” aos poucos; da mera constatação da sua
existência até a sua transformação em problema de pesquisa foi um longo caminho. Hoje,
quando me pedem para explicar o que, afinal, é uma RPPN, pergunto primeiro se o
interlocutor tem tempo e paciência para me escutar. Respiro fundo e começo a desenovelar a
trama que se fiou em quatro anos de estudo, dúvidas e reflexões, muitas reflexões...
Começo: a RPPN é uma sigla que designa as Reservas Particulares do Patrimônio
Natural, áreas naturais protegidas e reconhecidas pela legislação ambiental, mediante a
iniciativa dos proprietários das terras onde estas se encontram. Para além de sua importância
ressaltada por botânicos, zoólogos, biólogos, ecólogos como lugares de excelência para a
realização de pesquisas taxonômicas e avaliações da interação de animais e plantas nestes
ecossistemas, bem como para a “conservação da biodiversidade”, as RPPNs são espaços em
que se efetivam relações sociais, simbólicas e econômicas com a "terra” e a “natureza”, por
isso me interessam tanto.
A primeira vez que ouvira falar das RPPNs foi durante a elaboração do meu projeto de
mestrado em Sociologia, através do qual pretendia discutir a atuação de um programa
conservacionista, o Projeto Doces Matas, junto a comunidades rurais vizinhas, justamente, de
uma RPPN, a Mata do Sossego. Desde então, as questões suscitadas pelas dinâmicas sociais
que ocorriam no campo das RPPNs começaram a me chamar atenção.
Durante a pesquisa de mestrado podia observar como, através das RPPNs, eram
instauradas surpreendentes ambigüidades, relativas às noções de público/particular,
indivíduo/coletividade, patrimônio da humanidade/ propriedade privada. Além disso, percebia
que as formas de classificação dos animais e plantas, a delimitação do lugar dos homens e dos
bichos, realizada pelos “Rppnistas”, mereciam uma atenção especial. Não era de qualquer
“natureza” que estávamos falando, mas de uma “natureza” apropriada por um proprietário
particular. Percebia que a noção de “patrimônio”, que inspirava a concepção da categoria
RPPN, permitia uma ambigüidade característica dessas reservas: eram áreas naturais ao
mesmo tempo domínios particulares e “bens comuns da humanidade”.
17
Da minha dissertação de mestrado ficaram o interesse e a curiosidade de explorar mais
detalhadamente o universo dos “Proprietários de RPPNs”, suas práticas, representações, seus
projetos. Mais ainda, queria entender de que forma a instituição de RPPNs reiterava o direito
da propriedade privada sobre a terra, ao ressignificá-la como lugar da conservação ambiental.
Ao realizar as pesquisas bibliográficas para o meu trabalho de mestrado ficou evidente
como eram escassos nas Ciências Sociais os estudos sobre RPPNs, diferentemente da
literatura sobre as unidades de conservação (UCs)1 públicas, sobretudo as categorias que não
admitem a presença humana, que é bastante extensa. Os trabalhos sobre as UCs públicas têm
se dedicado, com grande freqüência, à discussão sobre como o modelo norte-americano de
conservação ambiental dessas áreas protegidas, pautado na idéia da “natureza intocada”
(DIEGUES, 2001), tem se contraposto à realidade dos países tropicais, onde as florestas são
habitadas por populações indígenas e outros grupos sociais. Os conflitos gerados com a
criação de UCs e as questões éticas relativas a este processo, como o direito das populações
residentes de permanecerem nestes territórios e utilizarem os seus recursos naturais,
especialmente as chamadas “populações tradicionais”, são temas bastante debatidos2.
Somente em 2008, quando já redigia esta tese, tive acesso a dois trabalhos na área de
Sociologia que tratavam das RPPNs: o artigo “Projetos territoriais, processos de
territorialização e conflitos ambientais no semi-árido: a proteção da natureza em
assentamentos e nas RPPNs” (CUNHA, SILVA e NUNES, 2008) e a dissertação de mestrado
Conflitos ambientais e conservação da natureza em propriedades privadas do semi-árido
paraibano: as contradições do modelo RPPN. (SILVA, J., 2008).
Estes estudos, centrados na análise das tensões que envolvem o desigual acesso e uso
dos recursos naturais por grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e
significação do território se inscrevem na abordagem da “ecologia política”. O mesmo se
pode dizer de diversos trabalhos sobre as dinâmicas sociais desencadeadas com a criação de
unidades de conservação. A “ecologia política” é definida por Alier como uma perspectiva
teórica que se propõe a estudar a “distribuição ecológica” dos conflitos, ou seja:
1 A legislação ambiental brasileira define unidade de conservação como: “espaço territorial e seus recursos ambientais,
incluindo as águas juridiscionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com
objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas
de proteção” (BRASIL, 2002, p.9).
2 Ver Diegues, 2001; Barreto Filho, 2002; Little, 2002; Lima, D., 2002.
18
as assimetrias sociais, espaciais e temporais e o uso desigual de recursos e serviços ambientais
pelos seres humanos, isto é, a exaustão de recursos naturais (incluindo a perda da
biodiversidade) e o ônus da poluição (ALIER, 2002, p. 122).
Certamente, a crítica advinda da ecologia política, simultaneamente um movimento
acadêmico e político que percebe o “meio ambiente” como um “terreno contestado material e
simbolicamente” (ZHOURI, 2004), é fundamental para a análise das relações estabelecidas
através da instituição das RPPNs. Principalmente, quando se observa que estão em jogo
diferentes concepções sobre a natureza e autoridades que disputam o poder de “falar” sobre o
“meio ambiente” e estabelecer as condutas que devem ser adotadas pelo homem em relação à
“natureza”.
E, realmente, quando comecei a freqüentar os eventos organizados pelos Rppnistas, de
imediato, chamaram a minha atenção nos seus relatos os conflitos potenciais e explícitos entre
os Proprietários de RPPNs e os Sem Terra, tão bem trabalhados por Cunha, Silva e Nunes
(2008) e Silva, J. (2008) nos estudos supracitados.
Ao dar início ao trabalho de campo, já cursando o doutorado em Ciências Sociais, foi
possível constatar como a defesa da propriedade privada era uma importante marca do
universo discursivo das RPPNs. Mas uma “fala ambientalizadora”, através da qual os
“Proprietários de RPPNs” acentuam a sua preocupação com a proteção da natureza, revitaliza
o discurso sobre o direito de propriedade e apresenta um efeito suavizador sobre o marcado
posicionamento político desses atores, contribuindo para recompor a imagem dessa
propriedade e do seu proprietário, que com legitimidade se auto-intitula “Amante da
Natureza”.
Contudo, à medida que ia conhecendo os Rppnistas, ouvindo suas falas, suas histórias
de vida, fui percebendo que os conflitos desencadeados a partir das relações entre estes atores
sociais e aqueles que são definidos como uma “ameaça” aos seus propósitos, como os Sem
Terra, não esgotam as riquezas temática e analítica que este universo social pode oferecer.
Além disso, eu não queria correr o risco de polarizar de um modo maniqueísta os Rppnistas e
os Sem Terra, atribuindo aos primeiros interesses “ocultos” e “escusos” na criação de RPPNs.
Certamente, a reforma agrária é colocada pelos Rppnistas como problema não apenas
para a propriedade individual, mas para o “patrimônio natural”; trato disso nesta tese. Porém,
a presença de uma RPPN na propriedade rural reduz, significativamente, os riscos de
desapropriação. Além de assegurar esta relativa “imunização” da propriedade contra a
desapropriação, a criação de RPPNs traria também outros benefícios àqueles que as instituem,
19
como a isenção do imposto territorial rural (ITR), a prioridade na análise de recursos liberados
pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), e a preferência na análise de crédito
agrícola.
Entretanto, parto do princípio que a razão utilitária não é suficiente para explicar o que
impulsiona os Rppnistas na instituição de suas reservas e os projetos que aí desenvolvem,
pelo menos diante do recorte que faço nesta tese, focalizando os indivíduos proprietários de
RPPNs e não empresas e organizações não-governamentais.
O paradigma da dádiva foi, portanto, uma importante diretriz analítica deste trabalho,
na medida em que ajudava a me aproximar do discurso nativo, na busca de entender como e
por que, através da exaltação da generosidade e da gratuidade na experiência de se destinar
uma parcela das terras privadas à conservação ambiental, se rejeitava o interesse, o cálculo.
Não queria reduzir toda a dinâmica que investigava a uma interpretação economicista. Cada
vez mais me interessava entender como estes atores articulavam e compartilhavam essa
“dupla verdade” (BOURDIEU, 1996) do interesse-desinteressado, da obrigação-espontânea e
como transmutavam o capital econômico em simbólico.
Percebe-se entre os Rppnistas que “guardar” é “dar” (GODELIER, 2001). Através das
RPPNs as terras, símbolo máximo da acumulação capitalista, são revertidas em expressão de
desprendimento. As honras, as glórias de ser um “guardião” da natureza são algumas das
contra-dádivas que circulam neste universo social. No entanto, são muitos os elementos que
organizam os projetos das RPPNs que pude investigar. Busca de prestígio, notoriedade?
Cumprimento de um “dever cívico”? “Consciência ambiental”? “Tentativa de reescrever a
memória familiar?” “Missão espiritual? Predestinação? Cada história, uma nova equação. Na
articulação dos mais diferentes valores, motivações e trajetórias são construídas as RPPNs,
enquanto projetos de vida dos seus proprietários.
Em seus projetos individuais nas reservas, os Rppnistas revelam a permanente
reconstrução simbólica da natureza. Vejo as RPPNs como locais onde se atualiza a idéia de
“ambientalismo”. São também espaços privilegiados do exercício criativo e imaginativo da
noção de “meio ambiente”, em que predominam os argumentos de ordem afetiva e religiosa,
afrontando a hegemonia do saber científico sobre a natureza.
As RPPNs também me parecem ser expressões de um momento político específico. É
na década de 90 que surge a categoria RPPN para se referir a um espaço natural privado
20
legalmente protegido. Justamente no contexto sócio-político brasileiro em que ocorre a
ampliação do espaço público e a consagração da participação da sociedade civil,
simultaneamente marcado pela emergência do Estado Mínimo3. Diante das novas atribuições
do Estado, sociedade civil e iniciativa privada as fronteiras entre os espaços público e privado
tornam-se cada vez mais imprecisas, principalmente em razão da prevalência da ideologia da
parceria e da governança nas políticas públicas, em especial nas políticas ambientais, e do
discurso da escassez de recursos públicos, da alta capacidade técnica do setor privado e de
segmentos da sociedade civil, bem como das suas possibilidades financeiras para o
investimento na conservação ambiental.
O discurso fundador das RPPNs identifica na criação das áreas protegidas particulares
a possibilidade de consolidação da participação do cidadão na gestão do meio ambiente, como
previsto na Constituição de 1988. Verifica-se que “cidadania” e “participação social”,
conceitos de grande força retórica, são acionados na tentativa de legitimar a existência das
RPPNs e afirmar o papel do “Rppnista” como “guardião da natureza”. Entendo que ao dar
essa nova atribuição à sociedade civil, agora imbuída do dever de proteger o meio ambiente, a
Constituição de 88 dá legitimidade às ações de cunho voluntário.
À medida que ia construindo essas questões, tendo acesso ao universo pesquisado e
decidindo sobre os recortes a serem realizados, revia e reelaborava os objetivos dessa
pesquisa, que foram por fim, configurados da seguinte forma:
compreender as várias concepções de RPPN que estão em jogo neste universo social;
verificar como são experimentadas e reelaboradas as noções de público e privado,
indivíduo e coletividade nas vivências dos indivíduos com suas RPPNs;
refletir sobre as metamorfoses das noções de público e privado diante do processo de
patrimonialização das propriedades rurais;
compreender a dinâmica das relações sociais na rede dos Rppnistas;
desnaturalizar as noções que fazem parte do jargão conservacionista, como “meio
ambiente”, “biodiversidade”, “participação”, “cidadania”, a partir das relações
3 A idéia de Estado Mínimo pressupõe um deslocamento das atribuições do Estado perante a economia e a sociedade,
preconizando a não-intervenção, devendo a regulação econômica ser exercida pelas forças de mercado. Caberia ao Estado
Mínimo garantir a ordem, a legalidade, concentrando seu papel executivo no policiamento, forças armadas, poder judiciário,
etc.
21
específicas dos atores com as RPPNs e entre si, de modo a compreender como estas se
atualizam no curso das interações sociais;
investigar em que medida a instituição de RPPNs, conforme aponta o discurso nativo,
instaura circuitos dadivosos e se aproxima e/ou se afasta do sistema de mercado;
discutir, a partir das histórias de vida de alguns atores, as reapropriações da categoria
RPPN nos diversos projetos desenvolvidos nas reservas.
O trabalho de campo desta pesquisa iniciou-se no final de 2004, antes mesmo de ter
iniciado o curso de doutorado. Aceitando a sugestão de uma colaboradora da minha pesquisa
de mestrado participei do II Congresso Nacional de RPPN, realizado em Curitiba. Além deste
evento também estive presente em outro congresso, realizado em Ilhéus, BA (2007) e em dois
seminários estaduais, que ocorreram em Alfenas, MG (2005) e Rio Preto, MG (2007).
Desde o início da pesquisa, presenciar os congressos e seminários organizados pelos
Proprietários de RPPNs e técnicos de ONGs (organizações não-governamentais)
ambientalistas que trabalhavam com esta temática me pareceu fundamental. Estes eventos
revelaram-se para mim como verdadeiros espaços de sociabilidade, onde poderia mapear,
localizar os atores e vê-los em interação. Além disso, eram lugares apropriados para construir
uma rede de colaboradores e fazer contato com aqueles que futuramente iria entrevistar.
Contudo, a observação participante destes eventos, embora possibilitasse a minha
aproximação com o universo a ser pesquisado, não me levava a compreender, com
profundidade, as representações sociais que aí circulavam acerca da relação sociedade-
natureza. Tampouco me permitia o acesso imediato aos mecanismos de articulação da rede de
atores sociais, suas hierarquizações e formas de distribuição de poder. Na verdade, tive a
impressão, desde o primeiro evento do qual participei, que o discurso otimista e centrado nos
atributos biofísicos das RPPNs era impenetrável. Era difícil escapar da armadilha de explicar
o discurso nativo por ele mesmo...
A internet, através da lista de discussão, foi um espaço onde também realizei
observação participante. Inscrita na lista desde 2004, a partir do convite de uma Proprietária
de RPPN, acompanhava diariamente as mensagens enviadas. Além da leitura dos e-mails
também foi possível, através do próprio website, ter acesso a mensagens que estavam
armazenadas desde a criação da lista de discussão, em 2000, o que possibilitou a observação
22
de como a rede de Proprietários de RPPNs ia se articulando e simultaneamente participando
da construção legal dessa categoria de área protegida4.
Mas também era preciso conhecer de perto as RPPNs, olhar para as matas, árvores,
plantas, animais buscando os vestígios dos seus “donos” e “guardiões”. A vivência dos
proprietários das RPPNs nos sítios e fazendas, suas experiências diretas com a “natureza”
destes locais poderiam trazer elementos importantes para compreender como eles
interpretavam estes espaços. Se não estavam visíveis aos meus olhos, poderiam ser revelados
nos relatos, nas descrições e nas histórias que me contavam.
Visitei, então, quatro reservas procurando observar “a biodiversidade” e a forma como
era apropriada pelos sujeitos da pesquisa: RPPN Fazenda dos Anões, em Alto Paraíso de
Goiás, GO; RPPN Fazenda Lagoa, em Alfenas, MG; RPPN Bom Retiro, em Aldeia Velha,
RJ; RPPN Parque do Capetinga, São João da Aliança, GO.
As RPPNs, em geral, se localizam em áreas de difícil acesso. Em algumas delas, só é
possível chegar com carro de tração nas quatro rodas e fora do período de chuvas. Assim, foi
preciso contar com a disponibilidade e disposição dos proprietários das fazendas para me
conduzirem até elas, uma vez que eu não contava com este tipo de veículo. Além disso, como
as RPPNs estão espalhadas por todo o Brasil, as viagens, muitas vezes, eram caras. Sendo
assim, a seleção das RPPNs a serem visitadas foi o resultado dessa combinação:
possibilidades de locomoção, sazonalidade, disponibilidade de recursos. Infelizmente, RPPNs
que eu estava muito interessada em conhecer não puderam ser visitadas.
Somente ao co-relacionar as observações dos eventos e das reservas, a análise das
entrevistas, o acompanhamento da Lista de Discussão sobre RPPNs e a leitura das
publicações dos atores que atuam neste campo social é que consegui dar o primeiro passo
rumo à construção do meu objeto de pesquisa. As análises que busquei desenvolver valeram-
se, então, da observação de um conjunto de elementos, os relatos orais, os textos, os códigos
gestuais (ou técnicas corporais), a ocupação e organização dos espaços físicos (tanto os
auditórios dos eventos quanto as próprias RPPNs), fotografias e mapas que me eram
apresentadas durante as entrevistas.
Neste processo, dei-me conta de que o objeto empírico não era o objeto de pesquisa.
Bourdieu me ajudou nessa tarefa de perceber que o que me era “dado” precisaria ser
4 As mensagens da lista de discussão que circularam no período que antecede a realização desta pesquisa são citadas nas
referências bibliográficas seguidas das datas em que foram acessadas por mim e não quando foram redigidas.
23
reconstruído. É preciso romper com as categorias pré-construídas, diz o autor, praticar a
dúvida radical e sistemática de forma, sobretudo, a pôr em suspenso o senso comum
(BOURDIEU, 1998).
Bourdieu destaca a importância de se fazer a história social da emergência dos
problemas que são tomados como objeto. Compreender como estes problemas foram
consagrados socialmente como “questões” universais, para não se tornar “objeto dos
problemas”, afirma Bourdieu.
Para isso era necessário pôr em causa certas categorias: “biodiversidade”, “natureza”,
“cidadania”, “participação” e, principalmente, “RPPN”. Os depoimentos dos proprietários
rurais, os relatos de suas experiências pessoais relacionadas às reservas sinalizavam para mim
que havia muito mais a dizer sobre as RPPNs do que vinha sendo dito nos congressos e
seminários. Optei, então, por não focalizar a pesquisa nas ONGs e empresas que participavam
desse campo social. Antes, me interessava mais buscar compreender a relação dos indivíduos
com a natureza da qual se apropriaram, as formas de construção das suas RPPNs e a sua
participação na rede de Proprietários de RPPNs.
Algumas entrevistas foram feitas nos intervalos dos congressos e seminários.
Também, nestes momentos, anotava os contatos dos futuros entrevistados. Ao todo, foram
realizadas 28 entrevistas.
Segue um quadro-resumo do trabalho de campo realizado, o local e o período em que
ocorreram as atividades:
Período
Local
14 a 16 de outubro de Curitiba, PR
2004
18 a 20 de novembro
de 2005
Alfenas, MG
Abril de 2006
Belo Horizonte, MG
Atividades desenvolvidas
Observação participante do II
Congresso Brasileiro de RPPNs.
Observação participante do V
Seminário de RPPNs de Minas Gerais.
Visitas ao IBAMA (Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis) e ao IEF-MG (Instituto
Estadual de Florestas de Minas Gerais)
para verificar os processos de denúncia
24
Maio de 2006
Belo Horizonte, MG
Junho de 2007
Belo Horizonte, MG
23 a 25 de agosto de Ilhéus, BA
2007
04, 05 e 06 de outubro Rio Preto, MG
de 2007
10 de fevereiro de
2008
Brasília, DF
de ocupação de
RPPNs por Sem Terra.
Entrevistas com funcionários do
IBAMA e do IEF de Minas Gerais
Contato com a ONG SOS Mata
Atlântica para levantamento de nomes
de proprietários de RPPNs em Minas
Gerais contemplados com o fundo do
programa Aliança para a Conservação
da Mata Atlântica
Observação participante do III
Congresso Brasileiro de RPPNs.
Realização de 3 entrevistas com
proprietários de RPPNs do Rio de
Janeiro, Ilhéus e São Paulo.
Realização de contatos para visitas
futuras a duas RPPNs no Rio de Janeiro.
Observação participante do VI
Seminário de RPPNs de Minas Gerais.
Realização de entrevistas com 4
proprietários de RPPNs.
Realização de entrevista com a
procuradora do IBAMA que participou
da elaboração do conceito de RPPN no
SNUC.
29 de fevereiro a 01 de Brasília, DF
março de 2008
Realização de 5 entrevistas com
proprietários de RPPNs.
01 de março de 2008 Alto Paraíso, GO
8 e 9 de março de
2008
Aiuruoca, MG
17 de março de 2008 Rio de Janeiro, RJ
Visita à RPPN Fazenda dos Anões em
Alto Paraíso e realização de entrevista
com seu proprietário
Realização de entrevistas com 5
proprietários de RPPNs
Realização de entrevista com 1
proprietário de RPPN e com a
presidente da Associação de
proprietários de RPPNs de Minas
Gerais, que também possui uma RPPN.
25
19 de março de 2008 Silva Jardim, RJ
Realização de entrevista com 1
proprietário de RPPN.
14 de outubro de 2008 Aldeia Velha, RJ
15 de outubro de 2008 Bom Jardim, RJ
17 de outubro de 2008 Alfenas, MG
Realização de entrevista com 1
proprietário de RPPN e visita à RPPN
Bom Retiro
Realização de entrevista com 1
proprietário de RPPN.
Visita à RPPN Fazenda Lagoa
15 de novembro de
2008
Belo Horizonte, MG
Realização de entrevista com 1
proprietário de RPPN.
20 e 21 de novembro
de 2008
Alto Paraíso de Goiás,
GO
Realização de entrevista com 1
proprietário de RPPN.
Nova visita à RPPN Fazenda dos
Anões.
22 de novembro de
2008
São João da Aliança,
GO
Observação participante da Festa de
Santo André, realizada na RPPN Parque
do Capetinga.
Figura 1
Não houve nenhuma recusa à entrevista. Pelo contrário, sempre fui muito bem
recebida entre os Proprietários de RPPNs. Inclusive, duas pessoas se ofereceram para serem
entrevistadas.
26
De uma maneira geral, os entrevistados sentiam-se à vontade e tomavam a frente nas
entrevistas; percebia neles um grande prazer de estarem falando sobre si mesmos, o que os
levara a criar a RPPN, suas expectativas e decepções nesta empreitada.
Os métodos autobiográficos (histórias de vida e relatos orais) me pareceram os mais
apropriados para obter informações sobre o campo pesquisado. Isto porque, logo ficou claro
para mim que falar de RPPNs com os seus proprietários era falar de suas histórias e
trajetórias, seus gostos e preferências, seus desejos e frustrações.
Em diversas ocasiões, realizei entrevistas que duraram mais de três horas; às vezes
passava uma manhã, uma tarde inteira conversando com o entrevistado.
Algumas entrevistas ganharam um ar confessional: relataram-me dramas familiares,
ouvi revelações íntimas, carregadas de emoção. Esta foi a razão, inclusive, de ter feito a troca
de nomes na redação deste trabalho. Utilizo nomes fictícios, justamente para preservar os
meus entrevistados e não comprometê-los diante de seus pares, mantendo o sigilo sobre as
informações que me foram dadas e o seu posicionamento diante de diversas questões.
Bourdieu fala a respeito da “oficialização de uma representação privada da própria
vida”, que se dá através do relato de vida. Aquele que narra sua história pessoal torna-se o
ideólogo da própria vida, ao selecionar os fatos que considera significativos e estabelecer
entre eles conexões para lhes dar coerência (BOURDIEU, 1996). Acredito que, através de
suas narrativas, os proprietários de RPPNs tornavam-se também ideólogos de suas reservas.
O auto-relato é o locus privilegiado do encontro entre a vida íntima do indivíduo e sua
inscrição em uma história social e cultural (CARVALHO, 2003). Para Bourdieu, os
acontecimentos biográficos se referem a colocações e deslocamentos no espaço social. Para
compreender uma “trajetória” também seria necessário compreender os sentidos desses
movimentos do indivíduo.
De fato, pude observar que as narrativas, além das especificidades das referências
pessoais, também apresentavam marcas de vivências sociais que se aproximavam, o que me
levou, inclusive a pensar em possíveis classificações. Havia aqueles com uma história familiar
relacionada à terra, cujas propriedades rurais já faziam parte do patrimônio familiar há várias
gerações. Encontrei também indivíduos cuja relação com o espaço rural era mediada por uma
sensibilidade religiosa. Da mesma forma, pude perceber indivíduos que viam nas RPPNs um
espaço propício ao colecionamento da natureza.
27
Realmente, as histórias pessoais relacionadas às RPPNs se comunicavam; havia uma
comunidade de sentido que tornava as experiências compreensíveis e inter-relacionadas. Esta
se articulava através de alguns temas nucleadores, como o controle privado da natureza como
forma de superar à ineficiência do Estado na conservação ambiental; o isolamento das áreas
naturais da ação humana como estratégia de proteção da natureza.
Realizadas as análises, colocadas as questões, era o momento de estruturar a tese, que
ficou, em sua versão final, organizada em 5 capítulos.
O Capítulo 1 é uma tentativa de mapear os atores e a sua disposição em uma rede
social identificada como “Comunidade Rppnista”. Busco discutir neste capítulo os
mecanismos de constituição de uma identidade social contingente e relacional e em que
contextos ela é afirmada. Também trato neste capítulo dos ambientes de interação entre os
Rppnistas, momentos estes em que se ativa a “Comunidade Rppnista”. Os congressos e
seminários organizados por estes atores e uma lista de discussão da internet são espaços em
que se lançam e disputam entre si várias concepções do que é ou deveria ser uma RPPN. Tais
ambientes são propícios para se observar a Comunidade Rppnista em atividade e para analisar
como os atores estão dispostos nesta rede social, como se dão as relações de poder, quem tem
a autoridade para falar sobre as RPPNs e em quais circunstâncias.
No Capítulo 2 me proponho a apresentar como se deu o enquadramento legal das
RPPNs. Desenvolvo uma reflexão sobre o surgimento na legislação brasileira dessa categoria
de área natural protegida, buscando contemplar os embates e disputas que ocorreram neste
processo. Dessa forma, pretendo apresentar a RPPN como uma construção sócio-cultural,
resultado de um contexto histórico específico, em que participam diferentes concepções da
relação sociedade-natureza. Dando voz aos Rppnistas, pretendo ter acesso à rede social que se
formou em torno da institucionalização da categoria RPPN no cenário ambiental brasileiro.
Percebe-se que, à margem de uma definição legalmente formalizada, sob parâmetros técnico-
científicos, convivem múltiplas concepções de RPPN, disputando lugar e legitimidade neste
universo social.
O Capítulo 3 pretende ser uma reflexão sobre a relação cultura e natureza no universo
dos Rppnistas. Procuro refletir sobre os limites entre os domínios do natural e do humano a
partir de uma análise das experiências dos Rppnistas com os bichos e plantas de suas reservas.
Da mesma forma, analiso as “categorias de humanos” que, na visão dos Rppnistas, se
aproximam e se distanciam da esfera natural. As noções de “exótico” e “nativo” também são
28
problematizadas, com vistas a demonstrar em que medida este processo classificatório é
hierarquizante. Os seres “mais naturais” ou mais autênticos, as “espécies nativas”, ocupam um
lugar de destaque e a eles é autorizada a permanência nas RPPNs. Observo também, neste
capítulo, que a instituição da RPPN na propriedade rural, ao estabelecer a separação entre o
espaço “doméstico” (a sede da fazenda e as roças) e o “selvagem” (a mata, a RPPN) cria
domínios onde são delimitados os lugares de homens, bichos e plantas.
O Capítulo 4 consiste em uma reflexão acerca dos circuitos dadivosos instaurados com
a criação de RPPNs nas propriedades rurais. Discute-se como as formas de reciprocidade
estabelecidas nos permitem pensar as RPPNs como transitando entre as esferas da dádiva e do
mercado. Neste capítulo também trabalho com a idéia de que a Constituição de 88, elemento
que compõe o discurso fundador das RPPNs, participa da construção destes circuitos do dom.
Isto porque, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que institucionaliza direitos e atribui ao
Estado o papel de assegurá-los, convoca a sociedade a assumir um papel protagonista na
proteção dos bens de uso comum à humanidade, legitimando as iniciativas voluntárias e de
caráter espontâneo. Procuro, da mesma forma, redimensionar as noções de público e privado a
partir de uma reflexão sobre os direitos difusos, formalizados pela Constituição de 88 e pela
idéia de “patrimônio mundial”. Os conceitos de “participação” e “cidadania” são revistos
neste contexto, com o objetivo de contemplar os seus diversos usos e apropriações no
discurso dos Rppnistas.
O Capítulo 5 é um mergulho nos mundos de nove Rppnistas, com o objetivo de
verificar, em profundidade, como as RPPNs podem ser reinventadas a partir dos projetos dos
indivíduos. As histórias de vida me possibilitaram observar como as trajetórias pessoais são
essenciais na construção destes projetos. Ao propor três “tipos” de Rppnistas, os
Proprietários Familiares, os Colecionadores da Natureza e os Espiritualistas Ecológicos,
busco reunir em categorias as diversas propostas que se aproximam em relação às RPPNs,.
Apresento as noções de projeto e campo de possibilidades, desenvolvidas por Gilberto Velho
(2004), como recursos analíticos para compreender o papel do individuo na construção
simbólica destes espaços naturais. Seja por serem percebidas como lugares de redenção e
acolhimento de um novo ser, mais pleno por estar em sintonia com as energias cósmicas que
circulam na natureza, seja por serem o locus de preservação da memória e da história familiar,
ou mesmo por representarem a possibilidade do indivíduo controlar e reclassificar a natureza
“à sua imagem e semelhança”, as RPPNs são simultaneamente instâncias individualizadoras e
29
desindividualizadoras. Isto porque, reafirmam a terra como lugar do indivíduo ao mesmo
tempo em que são destinadas à coletividade.
30
1 A COMUNIDADE RPPNISTA
Somos guardiões das águas, dos bichos e de parte do oxigênio que inspiramos. Somos
indutores da captura de carbono.
As alegrias de sermos protetores desse maravilhoso Patrimônio são inumeráveis e
imensuráveis: como mediremos a plenitude de um canto de pássaro no início da manhã e ao
cair da tarde? Como definiremos o murmúrio do vento nas copas das árvores, trazendo a nós
a mensagem da esperança, da fé, do acreditar que ainda poderemos salvar o nosso Planeta
tão combalido? Quanto vale a observação silenciosa de um ruflar de asas que cortam o céu,
nos deixando extasiados com o milagre do voar? Como explicar o cair das folhas e o eterno
renovarem-se ensinando a todos nós que só existe a vida? Que palavras teremos para
descrever o nascimento, o brotar das águas, que serpenteiam, cantando por entre as matas,
em direção ao seu destino, que é sempre o de fundir-se com o Grande Pai Oceano?
[Trecho extraído da conferência de abertura do III Congresso de RPPNs proferido por
Ronaldo Santana em agosto de 2007.]
1.1 Quem são os Rppnistas?
“Rppnista” e “Proprietário de RPPN” são categorias nativas, que também adoto neste
estudo, utilizadas pelos sujeitos da pesquisa para se referirem a si mesmos. Embora em
diversos contextos sejam utilizadas como sinônimas, a expressão Rppnista é mais abrangente
e inclui, além dos Proprietários de RPPNs, os demais agentes que atuam neste campo social
(advogados especializados na questão ambiental, biólogos, ecólogos, engenheiros florestais e
ambientais, bem como os técnicos de ONGs que apóiam de alguma forma as RPPNs).
Conforme irei discutir ao longo deste trabalho, um corpo diversificado de atores
compõe a rede de Proprietários de RPPNs. Segue abaixo um quadro que, de maneira
esquemática, pretende colocá-los em evidência:
NATUREZA DO
PROPRIETÁRIO DE
RPPN
PESSOA JURÍDICA
CLASSIFICAÇÃO
CARACTERIZAÇÃO
Algumas empresas estão associadas a
Mineradoras
organizações não-governamentais
ambientalistas e desenvolvem projetos
Indústrias de alumínio
juntamente com estas instituições
(apóiam eventos e financiam pesquisas
Indústrias de celulose
científicas relacionadas à conservação
ambiental). Outras empresas possuem
suas próprias fundações, através das
Indústrias cimenteiras, quais mantêm centros de educação
ambiental e desenvolvem projetos nestes
Empreendimentos
espaços.
imobiliários
31
Entidades religiosas
Instituições espíritas
Congregações católicas
Organizações não-
governamentais de pequeno
porte
Associações de proprietários de
RPPNs
Confederação Nacional das
RPPNs (CNRPPN)
Instituições criadas por
proprietários das reservas para
o desenvolvimento de
atividades na RPPN.
Organizações não-
governamentais de médio e
grande porte.
Prestam algum tipo de assistência técnica
a proprietários de RPPNs e/ou
desenvolvem estudos e projetos de
conservação ambiental.
PESSOA FÍSICA
Herdeiros de terras
que já pertencem a sua
família há várias
gerações.
Moradores de centros
urbanos.
Artistas de renome e
personalidades do
cenário nacional.
Mesmo aqueles que nasceram e
passaram sua infância e
juventude nas fazendas, em
geral, tiveram sua trajetória
marcada por algum tipo de
experiência nos centros
urbanos.
Dentre os atores que vêm dos
centros urbanos, há os que
decidiram viver nos sítios e
fazendas onde criaram as
RPPNs. Contudo, a maior parte
não se mudou para as áreas
rurais onde se localizam suas
RPPNs. Estas estão ao encargo
de “caseiros”.
Figura 2
32
Foi possível observar que a expressão Rppnista era largamente utilizada na lista de
discussão e nos eventos dos quais estes atores participavam. Entretanto, quando conversava
com os sujeitos da pesquisa ou realizava entrevistas, em nenhum momento estes se
autodenominavam Rppnistas. Reconheciam-se como Proprietários de RPPNs.
Dessa forma, observa-se que a categoria Rppnista é utilizada em contextos de
interação social e é acessada nos momentos em que os atores sentem necessidade de se
posicionar de alguma forma frente aos seus pares, emitindo opiniões e quando desejam
expressar alguma reivindicação ou descontentamento. Percebe-se que, a exemplo de outras
identidades construídas em relação ao campo ambiental, possui uma forte conotação política e
se presta essencialmente a esse propósito, muito mais que como forma de caracterização de
um grupo.
A identidade rppnista constrói-se através de contrastes que afirmariam dois pólos,
fazendo a cisão entre “nós” e “eles”: Os Rppnistas, que também se afirmam “Amantes da
Natureza”, seriam o inverso simétrico dos “Inimigos da Natureza”.
Tem-se considerado como principais “Inimigos da Natureza” os que ameaçam o
“patrimônio” do Rppnista em suas duas dimensões, enquanto patrimônio privado e natural.
Listo os que aparecem com maior freqüência nos relatos: os movimentos sem terra, os
caçadores, palmiteiros, madeireiros, governantes corruptos e descompromissados com a causa
ambiental, agentes responsáveis por empreendimentos como usinas hidrelétricas, projetos de
mineração e abertura de estradas em áreas consideradas de relevância natural.
A seguir apresento um quadro em que tento demonstrar os principais contrastes entre
os “Amantes da Natureza” e os “Inimigos da Natureza” de acordo com os Rppnistas:
Amantes da natureza
Inimigos da natureza
Altruístas
Conservacionistas
Bons
A favor da lei
Interesseiros
Depredadores
Maus
Contra-lei
Figura 3
33
Percebe-se que a identidade de Rppnista é contingente a um contexto sócio-cultural
específico, permitindo-nos reconhecer que é forjada em relação direta com o campo ambiental
e que se refere às questões concernentes a esse universo social. A identidade rppnista surge
em meio à formalização do Sistema de Unidades de Conservação (SNUC) e se refere
diretamente a um tipo de territorialização marcada por uma forma específica de controle sobre
a natureza (a propriedade privada) que rege as possibilidades de utilização do espaço, mas que
sofre restrições em virtude da específica regulação da legislação ambiental.
Silveira, P. (2007) discute sobre a elaboração de identidades, face à implantação de
políticas de conservação, e investiga de que modo categorias identitárias como “população
tradicional”, “população local” e “quilombola” são articuladas em meio às negociações com
instâncias de poder e diretamente relacionadas à possibilidade de obtenção de direitos.
Trabalhos como o de Silveira, P., que têm tratado da mobilização de identidades no contexto
de programas conservacionistas ou em situações de conflito socioambiental, em geral se
debruçam sobre a questão das minorias étnicas ou discutem sobre os embates entre grupos
com pouco capital político na negociação com empreendimentos (construção de hidrelétricas,
obras públicas) ou projetos ambientais que de alguma forma os afeta.
Quando falamos da “identidade rppnista” não nos referimos a um grupo minoritário
(pelo menos não em se tratando de uma desfavorável situação de poder político e econômico).
Pelo contrário, muitos dos Rppnistas fazem parte da elite econômica brasileira e se mostram
com um bom trânsito na arena política do país. No entanto, eles se consideram uma minoria,
no que se refere ao seu comportamento diferenciado em relação à natureza, em contraposição
àqueles que não se dedicam a conservação do meio ambiente. Dessa forma, acreditam que
deveriam ser reconhecidos por sua atuação em prol da sociedade, obtendo um tratamento
especial por parte do Estado, do qual se consideram merecedores, o que, segundo eles, não
tem ocorrido.
A rede de Proprietários de RPPNs, identificada pelos sujeitos da pesquisa como
“Comunidade Rppnista”, se articula através das 15 associações estaduais e da Confederação
Nacional de RPPNs, a CNRPPN. Os espaços de interação são constituídos nos eventos,
realizados esporadicamente, e no ambiente virtual, na Lista de Discussão sobre RPPNs, em
que há um contato quase que diário entre os “listeiros”, a partir da troca de e-mails. Se nestes
ambientes são construídos e reconstruídos os sentidos para a categoria RPPN também é neles
34
que se organiza e se atualiza uma identidade social, através da qual são mediados os projetos
individuais em relação às reservas.
Entendo que a expressão “Rppnista” e a idéia de uma comunidade que envolveria
estes atores se relacionam a um sentimento de filiação moral, de compartilhamento de uma
ética. Associada às idéias de integridade moral, altruísmo e abnegação a identidade rppnista é
marcada pela busca de ruptura com o pensamento utilitário:
O Rppnista, ser ligado a mãe natureza, busca a harmonia. Trilha o caminho da realização dos
sonhos, pensa nas gerações que o antecederam e as que virão depois. Saúda a vida e a sua
inefável beleza (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2004a).
Que Deus continue olhando por nós, Rppnistas, que continue dando força a todos nós, que
nunca deixe nenhum Rppnista desistir de fazer o que se propôs nessa vida: defender sua
criação. E ele, Deus, sabe que somos todos pessoas de bem (LISTA DE DISCUSSÃO
SOBRE RPPNs, 2004a).
Talvez seja essa a razão das empresas que possuem RPPNs não estarem inseridas na
Comunidade Rppnista da mesma forma que os demais proprietários. Estas não participam da
lista de discussão nem das associações estaduais e são vistas mais como colaboradoras da
causa das RPPNs do que, propriamente, como pares dos demais Rppnistas.
No esforço de constituição da identidade de Rppnistas as diferenças e divergências
entre os atores são circunstancialmente “apagadas”, a fim de se construir um campo
comunicacional em que possam interagir. Cria-se, dessa forma, uma “comunidade imaginada”
(ANDERSON, 2005). O trecho da conferência de abertura do II Congresso de RPPNs que se
segue é bastante ilustrativo dessa questão:
Todos nós, proprietários de RPPN sob alguma forma, comungamos os mesmos pensamentos,
os mesmos ideais e as mesmas esperanças, assim como temos e dividimos dificuldades
semelhantes mesmo em regiões ou biomas diferentes.(BRÁZ, 2004).
De acordo com Bauman (2003), as similitudes dos membros das comunidades da
modernidade5 são escolhidas de maneira seletiva. Este autor estabelece uma contraposição
com a idéia de comunidade de Ferdinand Tönnies. Ao distinguir estes modelos observa que a
comunidade moderna não possui uma unidade “natural”; esta deve ser construída.
Segundo este autor, a palavra comunidade possui uma acepção positiva que exprime a
idéia de aconchego, proteção, harmonia. Na “comunidade imaginada, idealizada” não há
espaço para desavenças e desacordos, uma vez que estes são precedidos por um total
5 Bauman utiliza o conceito de modernidade para tratar da sociedade contemporânea.
35
entendimento compartilhado por todos os seus membros. Contudo, nas “comunidades
realmente existentes” (p.19) o entendimento é resultado dos acordos, da persuasão e nunca
estará imune à reflexão e à contestação. Segundo Bauman, estes acordos deverão ser
periodicamente renovados. Esta comunidade de entendimento comum deverá estar sempre
vigilante, uma vez que disputas internas e externas ocorrerão com freqüência ameaçando uma
esperada estabilidade. Certamente, tais disputas são visíveis no campo das RPPNs e deverão
ser discutidas no curso do trabalho.
1.2 Entre “guardiões” e “heróis da conservação”
Percebe-se uma relativa plasticidade na Comunidade Rppnista: esta se fortalece nos
contextos de interação dos atores e se esmaece na elaboração e execução dos projetos
individuais nas reservas. Assim, embora exista um horizonte utópico, através do qual
dialogam as diferentes propostas dos Rppnistas, relativo a um inespecífico e genérico
propósito de “proteção ambiental”, também ficam claras as disputas pelo poder simbólico de
determinar o que seria um meio ambiente ideal e a conduta humana adequada em relação à
natureza.
Em seus encontros presenciais (nos congressos e seminários) e virtuais (na lista de
discussão) a Comunidade Rppnista se recria continuamente; são avaliadas e revistas questões
importantes, como o papel das RPPNs no sistema de unidades de conservação, as
possibilidades de atuação dos proprietários de RPPNs e o próprio conceito de RPPN.
Proponho-me agora a tratar destes ambientes de interação através dos quais se afirma a
Comunidade Rppnista.
1.2.1 Os congressos e seminários de RPPNs
Esporadicamente são organizados pelos Rppnistas congressos nacionais e seminários
estaduais onde são discutidas questões relacionadas ao seu universo de atuação.
36
A observação participante desses eventos marcou os diversos momentos da pesquisa, a
“entrada”, a “permanência” e a “saída” do campo e foi determinante para as decisões teórico-
metodológicas deste estudo. As questões que o campo suscitava eram refletidas a partir da
literatura; novas conclusões, novas questões. E assim o problema de pesquisa ia sendo
construído. Cada evento subseqüente era observado com um olhar mais atento a aspectos que
antes passavam despercebidos.
O caráter performativo dos eventos, a padronização da forma, a repetição das falas e
mesmo o aspecto solene que adquiriam em vários momentos me fizeram pensar nos
congressos e seminários como rituais.
Comerford (2002) analisa “reuniões”, especificamente aquelas que ocorrem no âmbito
de organizações de trabalhadores rurais como eventos ritualísticos. O trabalho deste autor foi
bastante inspirador, uma vez que descreve “reuniões” como eventos multidimensionais, cuja
análise possibilita a compreensão da rede de relações que atravessam a estrutura formal das
organizações, da distribuição de poder, bem como as múltiplas concepções relativas à
natureza das organizações estudadas.
Também entendo que as “reuniões” dos Rppnistas nos congressos e seminários são
elucidativas dos diversos posicionamentos em confronto, apontando para as relações de força
que se estabelecem nestes contextos de interação. Da mesma forma, são espaços de
negociação acerca das atribuições dos atores e mesmo, das noções de meio ambiente e das
práticas conservacionistas mais apropriadas.
A primeira evidência: os Rppnistas pareciam vir de distintos lugares sociais. Quando,
em 2004, observei o Congresso de RPPNs, realizado em Curitiba, o que, de imediato, chamou
a minha atenção foi a aparência dos participantes, indicando uma gama de atores em
interação: homens engravatados, senhoras nos seus tailleurs, jovens com uma certa
displicência em seus trajes. Havia também aqueles, na casa dos quarenta, cinqüenta anos, com
um certo ar “neo-hippie”, se posso assim dizer.
Consigo identificar agentes do Estado, funcionários de órgãos ambientais, técnicos de
ONGs ambientalistas, proprietários rurais, estudantes de biologia e ecologia. A disposição dos
atores no espaço deixava clara a sua hierarquização. Em uma comprida mesa, no centro do
auditório, sentavam-se os técnicos de ONGs de grande e médio porte (Conservação
Ambiental, The Nature Conservancy do Brasil, Fundação SOS Mata Atlântica), funcionários
37
do alto escalão do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis) e do MMA (Ministério do Meio Ambiente). Havia também alguns lugares
reservados na mesa para Proprietários de RPPNs com uma formação acadêmica e experiência
profissional voltadas para áreas consideradas de interesse para o tema RPPNs (direito
ambiental, educação ambiental e ecoturismo). Estes, em geral com grande habilidade oratória,
apresentavam uma posição de destaque em relação aos demais, dispostos na platéia, uma vez
que ocupavam um lugar de liderança nas associações de proprietários de RPPNs e na própria
Confederação Nacional de RPPNs.
O auditório onde acontecia o congresso estava, então, organizado espacialmente da
seguinte forma: a mesa ao centro e sobre uma plataforma, a platéia, de frente para a mesa e
em um nível mais baixo. Ao lado da mesa foi colocado um microfone, onde Proprietários de
RPPNs se revezavam em um determinado momento da programação, denominado RPPN em
destaque para dar seus depoimentos, falar sobre as atividades que estavam desenvolvendo em
suas reservas.
Observando a organização do espaço físico do congresso, que anunciava as diferentes
posições ocupadas pelos atores, fui levada a crer que se tratava da representação cênica dos
lugares sociais constituídos na sua interação. A hierarquização espacial expressava a dinâmica
das relações sociais. E era o saber técnico-científico sobre a natureza que organizava essa
diferenciação, polarizando os Profissionais do Meio Ambiente e os Proprietários de RPPN.
Este capital simbólico certamente parecia ser uma “moeda” valiosa, que possibilitava o acesso
a posições de destaque, tanto nos momentos da realização do evento, quanto na sua
preparação, na definição da programação, da composição das mesas debatedoras.
Estendendo a utilização deste capital para além dos eventos, é o conhecimento
técnico-científico que dá a autoridade para a realização de tarefas específicas, como o
mapeamento georreferenciado das reservas, condição sine qua non para o seu reconhecimento
legal, a elaboração do Plano de Manejo6 das RPPNs, estipulando processos de recomposição
florestal e, em condições especiais, o manejo de animais silvestres.
O que se verifica, porém, é que as posições ocupadas por estes dois grupos não são
lugares fixos. Ou seja, em circunstâncias específicas, quem tem mais poder não é aquele que
6 O Plano de Manejo é um documento técnico que estabelece o zoneamento das áreas naturais protegidas e as normas que
devem nortear e regular o uso que se faz da área e o manejo dos recursos naturais, bem como a implantação das estruturas
físicas necessárias à sua gestão.
38
detém o capital científico, mas quem, através da capacidade de demonstrar “altruísmo”,
afronta a ortodoxia do capital estabelecido. É comum observar Proprietários de RPPNs
reivindicando, através de seu “comportamento desinteressado”, a autoridade que sentem
perdida para os Profissionais do Meio Ambiente. Conforme veremos mais adiante, é com a
sua “abnegação” que alguns Rppnistas negociam, por exemplo, o poder de fala, da definição
das questões que devem ser consideradas como “problemas” a serem discutidos pela rede, e
buscam estabelecer o âmbito de sua atuação social.
Então, se os congressos e seminários são “bons para analisar”, para os Rppnistas
também são “bons para transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver
conflitos e reproduzir as relações sociais” (PEIRANO, 2003, p.10).
O debate sobre a programação dos congressos, a organização das mesas e a seleção
dos participantes evidencia a disputa entre estes dois tipos de capital social, em que, nesta
circunstância, a posse de um inviabiliza a posse do outro: ou a postura conservacionista é um
trabalho remunerado ou é uma dádiva, gratuita, espontânea.
Percebe-se, nos depoimentos dos Rppnistas, que não se nega a validade do
conhecimento técnico-científico. O que ocorre é que, na visão de alguns destes atores, não se
considera que a posse desse capital seja suficiente na definição das questões a serem tratadas
no congresso. A expertise seria mais necessária e aceita em outros momentos. Opinião longe
de ser compartilhada por todos.
Para se compreender a dinâmica das relações da Comunidade Rppnista nos congressos
e seminários dois aspectos merecem ser destacados: os formatos dos eventos e os tipos de
intervenção oral (depoimentos, palestras, relatos).
Mesmo que nestes encontros os temas não se repetissem na sua totalidade, três deles
eram recorrentes: (1) a importância das RPPNs na conservação da biodiversidade; (2)
incentivos fiscais para os proprietários de RPPNs; (3) o apoio do Estado à criação e
implementação de RPPNs. Ora apresentados por palestrantes, ora foco de discussão das mesas
redondas o fato é que estes assuntos eram tratados de maneira muito similar e expostos em
geral pelos mesmos atores (profissionais de ONGs).
Faço um esforço para interpretar os temas sempre repetidos: referiam-se à legitimação
da RPPN no universo da conservação ambiental e às estratégias para perenizar a sua
existência como área protegida pelo Estado. A cada encontro, portanto, a identidade rppnista
39
era reafirmada, à medida que se buscava garantir a viabilidade das RPPNs no cenário
ambiental.
No Congresso de Curitiba, realizado em 2004, foram assegurados momentos
específicos para as apresentações orais. Foi possível observar a predominância dos relatos dos
indivíduos: das 26 exposições, 7 foram proferidas por empresas, 3 por ONGs que possuíam
reservas e 16 por indivíduos Proprietários de RPPNs.
No Congresso de RPPNs de Ilhéus e no Seminário de Minas Gerais, que ocorreu em
Alfenas, ambos realizados em 2007, o tempo para os relatos dos indivíduos Proprietários de
RPPNs reduziu-se visivelmente. No congresso, as exposições orais foram marcadas para o
horário das 18h e 50 minutos, quando já havia poucos participantes na platéia. Durante o
seminário houve tempo para apenas quatro Proprietários de RPPNs se apresentarem.
Com relação às programações destes eventos, verifica-se que eram bem semelhantes,
no que se refere ao seu formato e aos temas tratados, embora os seminários ganhassem um
tom mais regionalizado, relativo às realidades locais.
Os indivíduos proprietários de RPPNs manifestavam-se mais nos seminários que nos
congressos, seja fazendo perguntas à mesa ou apresentando no debate suas opiniões. Isso
talvez se explique porque os seminários, com menor dimensão em relação aos congressos e
contando com menos participantes, poderiam dar uma impressão de maior informalidade,
motivando a exposição.
Comparando as formas de realização dos eventos ao longo do tempo nota-se que as
ONGs assumiram uma posição de maior destaque, tanto na organização e formatação, quanto
na própria realização dos eventos. A predominância destas instituições era visível,
principalmente se observássemos mais detidamente a forma e o conteúdo dos debates e
palestras: a linguagem era essencialmente técnica, com o emprego de conceitos próprios das
ciências naturais.
Considero que os congressos e seminários participam da construção e da difusão de
uma “versão oficial” das RPPNs. A versão oficial das RPPNs, afirmada e reafirmada nos
eventos, era a sua descrição político-jurídica, focalizando os aspectos biofísicos das reservas.
Tais eventos recriam e estabelecem as posições dos atores neste campo social.
40
Penso se não foi esta a razão dos proprietários de RPPNs terem perdido espaço, ao
longo do tempo nestes eventos. As narrativas individuais comprometiam a generalização e
fixação da RPPN enquanto categoria genérica e abrangente. Isto porque, as RPPNs não eram
compreendidas por estes proprietários apenas como um espaço privilegiado em termos de
biodiversidade; eram lugares vividos, aos quais se atribuía propriedades mágicas e onde se
projetava afeto.
De certo modo, os argumentos de ordem afetiva e religiosa, os quais pude conhecer ao
realizar as entrevistas, até mesmo ameaçavam o monopólio do saber técnico-científico na
conceituação da RPPN. Através desses argumentos buscava-se explicar os problemas
ambientais e encontrar saídas por meio de soluções místicas e subjetivistas, fundamentadas no
“amor à terra”, no reequilíbrio entre corpo e espírito e na intervenção de entidades
sobrenaturais. Isto é, todo o arsenal positivista na análise da degradação da natureza e da
“ameaça” aos seres que habitam as matas parecia, à primeira vista, perder sua força diante
desta argumentação “alternativa”, dando ao tema RPPN um tratamento entendido por diversos
Profissionais do Meio Ambiente como “equivocado.” O que, porém, tento demonstrar com
este trabalho é que parece existir uma insuspeitada aproximação entre estes dois tipos de
discurso, o que permite, inclusive, que sejam estabelecidos pontos de contato e de
comunicação entre Profissionais do Meio Ambiente e Proprietários de RPPNs.
Porém, se o discurso técnico-científico assumia um menor peso entre os proprietários
de RPPNs na sua atuação em suas próprias reservas, isso não ocorria nos espaços consagrados
à “oficialização” do tema RPPN (eventos, publicações, imprensa).
A abertura de todos os eventos que observei se dava com toda “pompa e
circunstance”. No III Congresso, realizado em Ilhéus em 2007, após a solenidade de abertura,
com execução do hino nacional, discursos de agentes do Estado e autoridades da política
local, o Rppnista Ronaldo Santana, em um tom ufanista e jubiloso, proferia sua conferência:
“Visionários Rppnistas! Conclamamos nesse momento os nossos grandes parceiros para
estreitarmos ainda mais os nossos laços em prol da proteção do nosso patrimônio natural.”
Em seguida, um dos palestrantes convida a platéia para aplaudir os “guardiões” e
“heróis da conservação”. Seguiu-se às solenidades iniciais o coquetel. Durante este momento
aconteciam também lançamentos de publicações dos técnicos das ONGs referentes ao tema
RPPN.
41
Saltava aos olhos o otimismo sem limites dos palestrantes em relação às RPPNs e ao
seu papel na conservação ambiental: sua existência não era discutida. Como não pensar nessa
“conotação religiosa” da RPPN (entendendo religião na perspectiva de Durkheim e Mauss,
como algo que não diz respeito necessariamente às divindades e deuses, mas à demarcação
das fronteiras entre sagrado e profano)? Da eficácia das RPPNs na proteção da natureza não
se duvida; da eficácia simbólica desse discurso em afirmar a inquestionabilidade dessas
reservas, eu não duvido.
Para Peirano (2003), através dos ritos a sociedade toma consciência de si, se recria, se
afirma. Rituais e representações são um par indissociável. Contudo, para que sobrevivam é
necessário que haja uma comunidade moral, unida em torno de determinados valores.
As RPPNs e seus proprietários estão dispersos por todo o território nacional, a
realização periódica de encontros e reuniões, como os que observei e a interação destes atores
na web são eficientes maneiras de se criar essa comunidade moral, de que nos fala Peirano.
Os rituais são compostos de palavras e ações. Combinam o “falar” e o “fazer” na
criação e re-criação de valores, são ações performativas (PEIRANO, 2003).
Se noções, representações, status eram reconstruídos durante cada congresso e
seminário, no seu encerramento, fixavam-se através de cartas e moções. É o que se pode
verificar na Moção de Apoio às RPPNs, lançada no Congresso de Curitiba em 2004, onde se
pode observar que a definição das RPPNs é feita exclusivamente através de seus atributos
biofísicos e político-jurídicos. Da mesma forma, os argumentos apresentados buscam
legitimar a existência das RPPNs no sistema de conservação do país e assegurar que sejam
oferecidas condições adequadas para mantê-las. Abaixo transcrevo a moção:
MOÇÃO DE APOIO ÀS RESERVAS PARTICULARES DO PATRIMÔNIO NATURAL
Considerando que as Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN são unidades de
conservação estabelecidas pela Lei do SNUC, e que em seus 14 anos de existência constituem
um importante instrumento para a implementação das políticas de conservação no país,
através da composição de mosaicos de unidades de conservação, implementação de
corredores de biodiversidade, proteção das zonas de amortecimento de UC públicas e
proteção de espécies endêmicas, complementando desta maneira os esforços públicos de
criação de espaços naturais protegidos;
Considerando que existem hoje mais de 650 RPPN em todo o país, protegendo um total de
mais de 520 mil hectares, e que há mais de uma centena de processos para reconhecimento de
novas RPPN tramitando nos órgãos ambientais, especialmente no IBAMA, alguns há mais de
quatro anos;
Considerando que na plenária final do II Congresso Brasileiro de RPPN, realizado em
Curitiba entre os dias 14 e 16 de outubro, com a presença de 340 participantes, entre os quais
42
os representantes de mais de 100 RPPN, os proprietários declararam sua vocação e interesse
em cuidar de suas reservas como unidades de conservação de proteção integral, apesar de
figurarem no grupo de “uso sustentável” no SNUC;
Considerando que a Instrução Normativa 24, do IBAMA, tem impedido o reconhecimento de
RPPN, estabelecendo exigências além do previsto na legislação atual;
E considerando ainda que as proprietárias e proprietários de RPPN contam hoje com poucos
incentivos e apoio para a criação, manejo e proteção de suas unidades de conservação;
Os participantes do IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, reunidos em
plenária, aprovam esta moção para:
Que sejam estabelecidas regras claras para o reconhecimento de Reservas Particulares do
Patrimônio Natural, que agilizem o processo de criação de novas unidades sem que sejam
feitas exigências desnecessárias e não previstas na legislação vigente;
Para que seja dada prioridade, por parte dos órgãos ambientais, no apoio à proteção das
RPPN, em especial nos casos de invasões e ameaças por madeireiros, palmiteiros, caçadores e
demais usurpadores do patrimônio natural;
E para que sejam estabelecidos mecanismos de apoio as RPPN, que contribuam para a
sustentabilidade desta categoria de unidade de conservação, a exemplo do que ocorre com o
ICMS Ecológico no estado do Paraná.
É possível se afirmar, portanto, que ao controlar as manifestações de divergência nos
congressos e seminários sobre RPPNs buscava-se promover a unidade da comunidade,
excluindo o que ameaçava a sua coesão interna.
1.2.2 A Lista de Discussão sobre as RPPNs
A internet, através da Lista de Discussão sobre as RPPNs, foi um espaço onde também
realizei observação participante. Inscrita na lista desde 2004, a partir do convite de uma
Proprietária de RPPN, acompanhava diariamente as mensagens enviadas. Também tive
acesso, através do próprio website, às mensagens, que circulavam desde a criação da lista, em
2000, período em que foi publicada a legislação referente às unidades de conservação o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que apresenta as RPPNs como uma
das modalidades de área natural protegida.
Através destes e-mails, foi possível construir um corpus analítico, através da sua
categorização temática, observação das recorrências e comparação entre distintas
perspectivas. As mensagens da lista, juntamente com os relatórios sobre os eventos que
presenciei, as entrevistas que realizei, somados às leituras das publicações produzidas pelos
43
Rppnistas (panfletos, folders, cartilhas, livros, revistas) revelaram-se um rico material, através
do qual construiria o meu objeto de pesquisa.
Se os congressos e seminários de RPPNs eram, por definição, locus de interação entre
os Rppnistas, a lista de discussão na internet também se mostrou um espaço de sociabilidade
muito importante para a construção da identidade rppnista e do próprio conceito de RPPN,
como veremos no capítulo 2.
Contando atualmente com mais de 300 participantes a lista de discussão sobre RPPNs
agrega indivíduos proprietários de RPPNs, técnicos de ONGs ambientalistas, simpatizantes da
causa das RPPNs, em geral Profissionais do Meio Ambiente e alguns técnicos de órgãos
ambientais.
A lista possui um moderador, que, embora, não se reconheça como tal, assume um
papel mediador através de suas intervenções em situações de embate. É curioso observar
como este “moderador”, um técnico de uma ONG, apresenta virtualmente a mesma posição
de liderança que ocupa no mundo “real”7.
Entretanto, mesmo que os técnicos de ONGs participem de maneira ativa e sua
presença, embora menor em termos numéricos, seja predominante no que se refere a sua
freqüência nos debates, os indivíduos Proprietários das RPPNs conseguem, de certa forma,
subverter, no “espaço virtual”, as hierarquias que se estabelecem e se manifestam no “mundo
real”. Digo isso porque estes têm através da lista a oportunidade de expor o seu
descontentamento com a posição ocupada pelos técnicos no campo das RPPN e duvidar,
inclusive da sua autoridade em relação às questões que envolvem RPPNs.
Disputas que não podiam ser identificadas durante a observação participante dos
eventos tornaram-se visíveis na troca de mensagens entre os “listeiros”. Assim, acompanhar a
lista de discussão, recorrendo, inclusive, à leitura de mensagens que antecederam o início da
minha pesquisa foi fundamental para que pudesse mapear melhor os debates, enfrentamentos,
os dissensos entre os Rppnistas.
Um caso exemplar se refere ao contexto em que os Rppnistas trabalhavam na
organização de um congresso que iria acontecer no ano de 2001. Os depoimentos da lista de
discussão, que transcrevo a seguir, deixam claro como os temas a serem tratados eram alvo de
7 Embora a dicotomia real e virtual não seja muito apropriada para dar conta das relações no ciberespaço, ainda assim, insisto
nessa distinção como forma de tornar visível a atuação dos Rppnistas em distintos espaços. Para Levy, virtual se opõe não ao
real, mas ao atual, ou seja, é algo que não está no mesmo tempo-espaço em que vivemos (LEVY, P., 1999).
44
disputa e como ao definir a programação tentava-se definir também o lugar dos Profissionais
do Meio Ambiente e dos Proprietários de RPPNs.
Segundo Sandro Lima os temas a serem tratados no evento deveriam contemplar
exclusivamente o interesse dos proprietários de RPPNs, os verdadeiros interessados no
Congresso:
Um aspecto relevante é que o Congresso de RPPNs atrai proprietários de RPPNs de todo o
país, que espera essa singular oportunidade para tratar dos assuntos que lhe dizem respeito
mais especificamente.
(...) O que espera e busca o titular de RPPN- falo como tal- é o debate de situações de
RPPNs. Debatamos sim formas de prestigiar o conjunto de proprietários de RPPNs.
Busquemos maneiras de os proprietários vizinhos a cada RPPN sentirem que as mesmas
recebem, efetivamente, tratamento diferenciado e não precisaremos continuar gastando com
campanhas onerosas de promoção para novas reservas. O efeito-demonstração é mais eficaz e
sairá mais barato. As questões internacionais que fiquem para outros cenários e a serem
debatidas por ambientalistas mais especializados (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE AS
RPPNs, 2008a).
No depoimento abaixo, Ana Soares explicita que a programação do Congresso de
2001 não estaria atendendo aos seus anseios e expectativas:
Originalmente, eu estava animadíssima com a idéia de participar do congresso, já agendando
a minha ida à Brasília, para uma grande troca de idéias, animada que os proprietários estavam
organizando um encontro onde poderíamos dialogar, analisar e reivindicar também quando
necessário. Acreditava que esse encontro era organizado especialmente PARA os
proprietários, um apoio, um incentivo criativo, um encontro enfim. Não sabia como chegar lá,
mas acreditava que a solução viria. Agora não sei se ainda quero tanto assim. Hoje, depois das
últimas tendências, admito que não sei se posso ou quero me deslocar e ainda pagar por isso.
Parece que o foco do evento tem deslizado das nossas mãos, dos primeiros interessados, os
proprietários, voluntários, idealistas, muitas vezes sem fundos, mas sempre trabalhando,
batalhando por melhoras. Vamos tentar redirecionar as tendências, os beneficiados devem ser
as RPPNs. O tempo, sempre curto, deveria ser direcionado aos assuntos que preocupam e
interessam os proprietários (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE AS RPPNs, 2008b).
O enfrentamento entre os “listeiros” que possuem opiniões distintas é freqüente na
lista de discussão. Porém existe o que eles mesmos chamam de “netiqueta”, regras de
comportamento que todos da lista devem seguir. Tem sido sempre discutida a pertinência dos
temas off topic, ou seja, aqueles que não seriam de interesse de todos os participantes da lista
de discussão.
A dificuldade, no entanto, está em, definir, o escopo do tema RPPNs. Até onde se
deveria ir? Que assuntos estariam diretamente ou transversalmente relacionados? Há
“listeiros” que acreditam que o estabelecimento desses limites seja uma forma de censura.
Falam em “patrulha ideológica”. Mas há também aqueles que lamentam o tempo perdido com
a leitura de e-mails que nada teriam a ver com o tema abordado pela lista de discussão.
45
A observação participante da lista de discussão de RPPNs me permitiu ir atualizando
ao longo da pesquisa informações sobre as RPPNs que eram criadas, as dificuldades
encontradas por estes atores em relação às reservas, os padrões de interação social. Também
foi uma riquíssima fonte de dados sobre as principais questões em disputa e os conflitos que
se erigiam.
De fato, tanto os congressos e seminários, a cada edição realizados em uma cidade
diferente, quanto a lista de discussão, se revelaram como espaços de confluência entre
distintas perspectivas conservacionistas, mas que se acomodavam sob um discurso genérico
acerca da proteção ambiental. Tais espaços de confluência eram constituídos nos momentos
de interação dos Rppnistas e dissipados quando os eventos se encerravam ou quando se
desconectava a internet. Porém, a cada novo encontro, eram reconfigurados os laços entre
eles; é quando além de “Proprietários de RPPNs” se tornavam “Rppnistas”.
Entretanto, conforme foi visto, o esforço de controlar as diferenças e criar uma
unidade de ideais e sentidos para a Comunidade Rppnista não apagava as divergências
internas: estas se reacendiam em circunstâncias diversas. Conforme já disse, a lista de
discussão era um ambiente propício para a observação de tais embates, não explicitados
durante a realização dos congressos e seminários. Ao longo do trabalho, me utilizo das
mensagens que aí circulam para evidenciar os posicionamentos dos atores em relação ao seu
universo de atuação.
Bruno Valverde, biólogo de uma ONG ambientalista é o mediador da lista de
discussão e um importante “conselheiro técnico”. A ele se dirigem os demais Rppnistas para
sanar dúvidas acerca das práticas adequadas de conservação ambiental. O tom sempre sensato
das suas mensagens na lista de discussão é apaziguador nas situações de embate e nos
enfrentamentos mais espinhosos.
Bruno Valverde e Cristina Matos, também bióloga de uma ONG, apresentam na lista
de discussão argumentos que buscam demonstrar aos proprietários rurais que criar uma RPPN
pode ser um “bom negócio” não apenas para a “humanidade”, mas também para ele próprio.
Os benefícios da criação da RPPN para o seu proprietário, que se referem a uma certa
segurança na manutenção da propriedade, diante de processos de desapropriação para reforma
agrária, um maior controle sobre as suas terras e um possível reembolso dos gastos com a
conservação, através de programas de pagamento pelos “serviços ambientais” prestados pela
46
RPPN, são alguns dos temas que Bruno e Cristina defendem e que atraem simpatizantes e
opositores.
Sônia Wiedmann, advogada especialista em direito ambiental e procuradora do
IBAMA, tem um importante peso na lista de discussão, no que se refere às questões de
legislação. Tendo participado da formulação legal do conceito de RPPN, Sônia procura na
lista de discussão reiterar o que acredita ser a “essência” das reservas privadas. Para isto, se
apóia no princípio da dádiva, enfatizando a necessária relação entre a livre iniciativa, a
espontaneidade e o altruísmo do proprietário rural e o ato de criação da RPPN.
Reginaldo Novaes e Maria Tereza Schmidt encabeçam as críticas ao Estado,
destacando sua ineficácia nas questões relativas ao meio ambiente. Demonstrando uma
profunda desconfiança na capacidade do Poder Público em administrar as áreas protegidas e
desenvolver políticas públicas eficientes, direcionadas à proteção da natureza, Reginaldo e
Maria Tereza se posicionam a favor da primazia da iniciativa privada nas ações
conservacionistas.
Carlos Gonçalves e Hélio Mazzeto são os grandes defensores do direito do
proprietário sobre suas terras na lista de discussão, afirmando sua autonomia e liberdade de
ação perante o Estado.
Observa-se que boa parte dos debates efetuados na lista de discussão relaciona-se aos
temas supracitados. De fato, estes atores, que apresentam e de alguma forma coordenam as
discussões, dão a tônica dos problemas e questões considerados relevantes.
A Lista de Discussão sobre as RPPNs, portanto, trata-se de uma rede que faz circular
valores, percepções e levanta questões a serem compartilhadas. Através da lista podemos
perceber os interesses dos participantes, suas clivagens, as alianças que se estabelecem, as
divergências que são fixadas.
No capítulo 2 tentarei demonstrar como a lista de discussão permitiu a articulação dos
Rppnistas e a sua participação na normatização das RPPNs. A maneira como se deu o
enquadramento das RPPNs na legislação torna-se visível a partir de alguns debates
estabelecidos na lista, que polarizaram os atores, na medida em que assumiam uma ou outra
perspectiva.
47
2 AS RPPNs NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Reserva Particular do Patrimônio Natural é uma área privada, gravada com perpetuidade,
com o objetivo de conservar a diversidade biológica. (BRASIL, 2002).
Desde a sua origem há apenas alguns anos atrás, a instituição da Reserva Privada do
Patrimônio Natural (RPPN) tem se tornado um instrumento tremendamente poderoso para
garantir a proteção de terras privadas conservadas no Brasil. Diversas RPPNs protegem hoje
mais de 600 mil hectares em todo o país (LEVY, D., 2004).
As RPPNs têm enorme importância no que diz respeito à proteção de amostras dos
ecossistemas brasileiros e de sua biodiversidade. Igualmente importante é o conhecimento
sobre estes locais gerados através de pesquisas científicas. A descoberta de uma espécie de
molusco considerada extinta, da importância de espécies de palmeiras para a fauna de uma
região, ou o desenvolvimento de uma técnica de reintrodução de uma rara espécie de primata
são exemplos de quão é fundamental a realização destas pesquisas. Estes resultados servem de
chamariz para inúmeros outros pesquisadores e simpatizantes da causa ambiental,
proporcionando um público cativo para RPPN que tenha interesse no ecoturismo, ou mesmo
turismo técnico/científico ou educacional, por exemplo, podendo torná-las verdadeiras
universidades em meio à natureza (COSTA et al. 2004).
2.1 O que são as RPPNs?
Analisando os documentos que tratam das RPPNs no Brasil (leis, relatórios,
publicações) constata-se que prevalece uma conceituação estritamente relacionada aos
aspectos biofísicos dessas áreas. Mesmo os trabalhos acadêmicos que tratam das reservas
privadas8, os quais têm, em geral, estado restritos ao campo do Direito Ambiental, das
Ciências Naturais e do Turismo, convergem para uma compreensão das RPPNs circunscrita a
seus aspectos materiais. Estes se inscrevem em um ideário acerca da interação sociedade-
natureza que essencializa os espaços naturais e os desarticula da experiência humana e das
relações sociais que os estruturam.
O fato é que as RPPNs têm sido definidas de uma forma que se perde de vista o
processo de construção social que constitui essas áreas como lugares de “proteção da
natureza”.
Segundo Barreto Filho os termos “unidade de conservação” (UC) ou “área protegida”
têm sido empregados de modo trans-histórico ou trans-cultural (BARRETO FILHO, 2001).
Ou seja, as disputas entre os diferentes projetos e concepções que envolvem estes conceitos
8 Os temas privilegiados destes estudos têm sido: (1) a análise dos procedimentos legais na instituição desses espaços e nas
suas possibilidades de utilização, bem como a efetividade da legislação sobre as unidades de conservação na construção das
políticas ambientais; (2) a elaboração de inventários sobre espécies da fauna e flora existentes nestas áreas protegidas; (3) a
discussão sobre técnicas e processos de conservação ambiental; (4) a atividade do ecoturismo nas RPPNs como possibilidade
de educação ambiental, de geração de recursos para a manutenção desses espaços e, mesmo como um negócio.
48
são invisibilizados, tanto pelo caráter normativo da instituição destes espaços quanto pelo
enquadramento técnico-científico que define e qualifica seus atributos.
Percebo que há um esforço político-jurídico para dar uma unidade conceitual às
RPPNs. Digo isso pensando nos eventos organizados pelos proprietários de RPPNs para
discutir temas relacionados à sua área de atuação, os quais recriam a cada edição a “versão
oficial das RPPNs”, caracterizando-as como espaços essencialmente “naturais”, interditos
pela legislação ambiental, que só poderiam ser “adequadamente” compreendidos e explicados
pelos experts, munidos do seu conhecimento sobre zoologia, botânica, ecologia.
Com efeito, a minha grande preocupação nesta pesquisa foi ir além dos aspectos
estritamente “ambientais” das RPPNs, buscando as suas “versões marginais”, as quais tentei
apreender através das histórias de vida de proprietários dessas reservas. Tais narrativas me
colocaram diante de distintas formas de manipulação de uma mesma possibilidade jurídica, a
RPPN. Esta sigla, criada para nomear uma modalidade de área protegida revelou-se um
“significante flutuante” propenso a várias apropriações significativas.
Levando tudo isso em consideração, acredito que não há apenas uma definição de
RPPN, e sim definições socialmente construídas pelos atores que participam deste universo
social. A tarefa de desvendar estes significados implica em considerar toda uma série de
discussões, polêmicas, dissensos, frutos de um longo e contínuo debate em torno do que
seriam essas áreas naturais em domínios territoriais particulares.
Dessa forma, pretendo, através dos depoimentos apresentados na Lista de Discussão
sobre as RPPNs no período entre 2000 e 2009 e de entrevistas que realizei com funcionários
do IBAMA e IEF (Instituto Estadual de Florestas) de Minas Gerais, reconstituir os caminhos
trilhados pelos Rppnistas na institucionalização desta categoria de unidade de conservação, de
forma a levantar os vários sentidos de RPPN que estão em jogo.
Podemos perceber que, ao longo dos quase 20 anos de sua existência jurídica, o
conceito de RPPN tem sido revisto, diante das pressões e mobilizações de ecólogos, biólogos
da conservação, organizações ambientalistas, técnicos de órgãos ambientais e proprietários
dessas reservas. Destaca-se, também, o peso de organizações internacionais como a UICN
(União Internacional para a Conservação da Natureza)9 no estabelecimento de diretrizes que
9 A UICN é um organismo multilateral que congrega membros da esfera estatal e não-governamental de cerca de 150 países.
Dentre as suas várias comissões científicas destaca-se a Comissão Mundial de Áreas Protegidas (DOUROJEANNI e
PÁDUA, 2001).
49
vêm influenciando e orientando as políticas públicas na conceituação e categorização das
áreas protegidas.
Dessa forma, seguindo as pistas que os sujeitos da pesquisa forneceram, também é
meu objetivo neste capítulo valorizar a subjetividade política destes, as suas formas de
engajamento com o tema RPPN e as perspectivas que assumem em relação a esta questão, o
que, inevitavelmente, acaba nos remetendo para discussões mais amplas, como por exemplo,
a maneira como estes percebem a relação homem-natureza, o papel do Estado e da sociedade
e a relação público-privado nas ações de conservação ambiental.
2.2 Ser ou não ser uma unidade de conservação
É em 31 de janeiro de 1990 que o termo Reserva Particular do Patrimônio Natural
(RPPN) surge no cenário ambiental brasileiro, com a promulgação do Decreto Federal no
98.914. Neste instrumento jurídico as RPPNs eram consideradas “áreas especialmente
protegidas”, não classificadas ainda como “unidades de conservação” (UCs). Somente em
2000, com a Lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), as RPPNs
passam a fazer parte do corpo de UCs. Ressalta-se que outras modalidades de unidade de
conservação, como os Parques Nacionais, as Reservas Biológicas e Estações Ecológicas já
existiam como tal. Contudo, o SNUC é o mecanismo que, além de instituir outras categorias
de UC, como a RPPN, irá estabelecer os critérios e normas para a sua implantação e gestão.
Nota-se, contudo, que não são poucas as críticas que sofre o SNUC, a respeito da imprecisão
das categorias de UC e da sobreposição de modalidades que apresentariam objetivos
semelhantes (DOUROJEANNI e PÁDUA, 2001; MERCADANTE, 2001).
O status de “unidade de conservação” vai conferir uma maior importância política a
essas áreas privadas, uma vez que passariam a contar com a chancela do Poder Público. Ser
uma unidade de conservação agregaria um maior valor simbólico a tais espaços naturais, a
partir de então designados como RPPNs, dando, inclusive, peso à sua “destinação pública”.
Conforme afirma Reginaldo Novaes, proprietário de uma RPPN na Bahia:
O primeiro sofisma é que você é proprietário da RPPN e que a mesma é uma propriedade
privada. Ora, quando você cria uma reserva você a está doando para o Universo e tanto isso é
50
verdade que você passa a ser o gestor da área, que em outras palavras significa gerente e
administrador de uma Coisa Pública (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE AS RPPNs, 2006).
As categorias de UC têm variado ao longo do tempo e de país para país. Assim, a
pedido da ONU, a UICN, desde 1962, tem preparado, periodicamente, listas das UCs que
buscam contemplar categorias do mundo todo, agrupando-as de maneira sistemática, visando
possibilitar a comparação entre objetivos de manejo10 e características das áreas. Tais listas
têm sido alteradas; categorias de UCs têm entrado e saído. Segundo Dourojeanni e Pádua, a
Lista das Nações Unidas das Áreas Protegidas “mexe com o orgulho das nações. Cada país
procura estar na lista com o maior número possível de áreas” (DOUROJEANNI e PÁDUA,
2001, p. 59). É recente a inclusão da categoria RPPN na lista da UICN.
Bruno Valverde, biólogo da ONG Instituto Bioatlântica, está convencido de que o
sistema de classificação que era utilizado pela UICN não atendia às especificidades das
reservas privadas. Atualmente, as áreas protegidas são classificadas segundo os objetivos do
seu manejo e não de acordo com o tipo de propriedade e/ou gestor.
Para Bruno Valverde:
O atual sistema de categorias de manejo11 proposto pela UICN, embora amplo e abrangente,
foi elaborado segundo a lógica das áreas protegidas públicas e atende muito pouco aos
objetivos, às vezes mais complexos, das áreas protegidas privadas. Atribuir uma categoria de
manejo a uma área apenas pelo tipo de propriedade que ela tem (pública, privada ou mista)
não faz muito sentido. O critério deve continuar sendo os objetivos de conservação que seus
atributos naturais permitem cumprir (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNS, 2008c).
De acordo com Cristina Matos, bióloga que tem atuado há bastante tempo em ONGs
que apóiam RPPNs, a UICN não incluía as RPPNs na lista em razão dessas áreas serem
estabelecidas em domínio privado, sem o gerenciamento do poder público, o que daria a elas
uma certa instabilidade, na medida em que estariam à mercê do seu proprietário. Quando as
RPPNs passaram a ser definidas pela legislação brasileira e se assegurou a sua perpetuidade,
através de regras que tornaram extremamente difícil reverter o seu processo de criação, a
UICN passa a cogitar a hipótese de dar às RPPNs o mesmo status das demais unidades de
conservação (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2000b).
10 O manejo em unidades de conservação consiste em um conjunto de intervenções que promovam a conservação
biológica, incluindo inventários, planejamento de uso e ações coordenadas que viabilizem a manutenção das UCs como
um todo. Destacam-se como objetivos de manejo: (1) preservar a biodiversidade biológica; (2) preservar e/ou restaurar
amostras dos diversos ecossistemas naturais; (3) proteger espécies raras, endêmicas, vulneráveis ou em perigo de
extinção; (4) propiciar fluxo genético entre áreas protegidas; (5) incentivar pesquisa científica (MILANO, 1989).
11 Categorias de manejo são as modalidades de unidades de conservação definidas pelo SNUC a partir de suas características
ecológicas, objetivos de conservação e formas permitidas de utilização dos recursos naturais e do espaço.
51
O debate sobre o enquadramento da RPPN na legislação brasileira é um tema
extremamente relevante na lista de discussão, tendo grande peso no seu período de criação,
exatamente no ano em que a lei que instituía o SNUC foi editada.
Para Bruno Valverde, que também era participante e responsável pela organização da
lista de discussão, esse instrumento da internet teve um importante papel no fomento do
debate sobre o que seriam as RPPNs:
Devido a uma viagem fiquei alguns dias sem poder ler as mensagens da lista. E qual não foi
minha surpresa ao reparar que uma das funções que havíamos pensado para essa ferramenta
está sendo cumprida a contento: debater as características e a razão de ser das reservas
privadas. (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008e).
Ao acompanhar as mensagens subseqüentes foi possível observar que, mais que
“debater as características e a razão de ser das reservas privadas”, a lista de discussão possuía
um importante papel na própria construção do conceito de RPPN. Através da lista colocavam-
se em debate questões-chave deste campo social como, as formas de uso das reservas, relação
com os vizinhos da propriedade, procedimentos administrativos e burocráticos no
reconhecimento dessas UCs. Além de estimular a discussão sobre assuntos pertinentes a esse
universo social, informava-se aos participantes o que estava acontecendo no cenário político-
jurídico. Da mesma forma, a lista de discussão se propunha, ao articular uma rede de
proprietários de RPPNs e colaboradores, congregar esforços visando exercer pressão sobre os
órgãos ambientais na defesa das demandas dos Rppnistas.
Os participantes da lista de discussão, em geral, consideraram a inclusão das RPPNs
no SNUC uma grande conquista. Para a bióloga Costa, ao tornar-se uma categoria de unidade
de conservação a RPPN adquiriu um regulamento seguro, uma garantia de perenidade,
incentivos à sua criação e propiciou a articulação de uma rede de reservas particulares que
“engajaria cidadãos voluntariamente” (COSTA, 2007). Porém, conforme discutirei adiante,
houve enfrentamentos e dissensos no processo de inserção da RPPN entre as demais unidades
de conservação.
Vale destacar que o projeto de lei do SNUC foi intensamente debatido no Congresso,
desde que foi apresentado em 1992. Neste processo foram realizadas várias reuniões de
trabalho e negociação e seis audiências públicas. O projeto de lei recebeu duas propostas de
substitutivos, uma do deputado Fábio Feldman e outra do deputado Fernando Gabeira. Ambos
os substitutivos introduziram polêmicas acerca da melhor forma de criar, proteger e gerir as
unidades de conservação (MERCADANTE, 2008).
52
Para além de versarem sobre questões de ordem meramente administrativa e
burocrática, as divergências observadas eram mais profundas e se enraizavam em
contrastantes concepções da relação sociedade-natureza que colocavam em franca oposição as
discussões sobre o modelo de área protegida ou de conservação que deveria prevalecer na
futura lei do SNUC. Concepções estas, que Mercadante, como diversos outros autores,
classifica como “preservacionistas” e “conservacionistas”. Segundo Mercadante:
Preservar a natureza, em sentido técnico, significa “mantê-la intocada, sem interferência
humana”. Conservar a natureza tem um significado mais abrangente; não exclui o uso
humano dos recursos naturais, dentro de limites que não comprometam a reprodução dos
sistemas ecológicos (MERCADANTE, 2001, p. 205).
No SNUC, as unidades de conservação estão localizadas em dois grupos, Unidades de
Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável:
O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido
apenas o uso indireto dos seus recursos naturais.
O objetivo básico das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da
natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais (BRASIL, 2002, p. 15).
O grupo de Unidades de Proteção Integral relaciona a conservação ambiental à
manutenção de espaços naturais isolados da presença humana. Já no grupo das Unidades de
Uso Sustentável evidencia-se o objetivo de integração entre economia e ecologia, de forma a
contemplar questões sociais no processo de conservação ambiental. As Unidades de Proteção
Integral abrangem:
- Parques Nacionais
- Estações Ecológicas
- Refúgios da Vida Silvestre
- Reservas Biológicas
- Monumento Natural.
Nestas áreas protegidas não pode haver populações residentes e são permitidas apenas
atividades que não envolvam a coleta e uso de recursos naturais.
Já as Unidades de Uso Sustentável prevêem a permanência de populações humanas,
desde que atendam a determinadas normas de utilização dos recursos naturais. Estas visam
compatibilizar a conservação da natureza com o uso parcimonioso do espaço natural
(BRASIL, 2002).
São Unidades de Uso Sustentável:
- Reservas Extrativistas
53
- Reservas do Desenvolvimento Sustentável
-Áreas de Proteção Ambiental
-Áreas de Relevante Interesse Ecológico
-Florestas Nacionais
-Reservas de Fauna
-Reservas Particulares do Patrimônio Natural
Destacam-se dois temas sobre os quais não se conseguiu consenso na produção do
texto do SNUC, a despeito das negociações conduzidas no Parlamento. São eles: a presença
de populações em unidades de conservação, sobretudo naquelas cujo uso era mais restritivo,
bem como a exigência da consulta à sociedade, em especial às comunidades locais, sobre a
criação e gestão das unidades de conservação.
Os embates fundiários com as populações residentes e locais e as disputas pela
utilização de recursos naturais são importantes focos de conflito desencadeados com a criação
de unidades de conservação. A falta de recursos para a regularização fundiária e para a
fiscalização e gestão dessas áreas tem acirrado ainda mais tais conflitos.
É interessante observar como as RPPNs, áreas que através do substitutivo do
Deputado Fernando Gabeira se tornaram unidades de conservação (MERCADANTE, 2001),
têm sido pensadas pelos seus idealizadores, proprietários e ambientalistas em geral como
alternativas para os grandes problemas supracitados na constituição das UCs públicas.
Contudo, conforme irei demonstrar ao longo deste trabalho, embates de natureza
fundiária também podem ser observados entre proprietários de RPPNs e os movimentos de
trabalhadores rurais sem terra, sobretudo envolvendo aqueles que possuem RPPNs em áreas
de grande extensão. Da mesma forma, diversos Proprietários de RPPNs têm relatado
dificuldades financeiras para gerir suas reservas. Como veremos mais adiante, o argumento de
que o setor privado garantiria a preservação dessas áreas por contar com mais recursos que o
setor público cai por terra diante destas afirmações e das denúncias de funcionários de órgãos
ambientais relativas ao estado de abandono de algumas RPPNs criadas por grandes empresas.
54
2.3 Unidade de Uso Sustentável ou Unidade de Proteção Integral?
As divergências observadas na elaboração do SNUC, representadas pelas perspectivas
“conservacionista” e “preservacionista”, também estão claramente delineadas no campo das
RPPNs. É o que se pode verificar através das acaloradas discussões a respeito da categoria de
manejo mais adequada para se alocar as reservas privadas (Uso Sustentável ou Proteção
Integral).
A incorporação das RPPNs no SNUC foi resultado de um verdadeiro embate político.
De acordo com Sônia Wiedmann, procuradora do IBAMA e responsável pela elaboração do
conceito de RPPN nos primeiros documentos:
Quando nós conseguimos colocar a RPPN no SNUC, isso aí é uma história, realmente. Isso aí
é um fato histórico, a RPPN no SNUC. Porque não era para entrar. Ela não era unidade de
conservação. Ela era uma área protegida, mas sem ser da categoria das unidades de
conservação. Aí resolvemos colocar como unidade de conservação. Mas seria de Proteção
Integral. Porque, embora particular, mas realmente ela era uma unidade de conservação que
só se admitia aqueles três usos: pesquisa científica, ecoturismo e educação ambiental. Então o
que aconteceu? Nas discussões paralelas alguém sugeriu que se tivesse extrativismo dentro de
RPPN. E o projeto passou na Câmara e no Senado, podendo fazer ecoturismo, educação
ambiental, pesquisa científica e extrativismo. Não, isso para nós foi a morte. Porque não é
isso (WIEDMANN , 2008).
Durante as negociações para a redação do SNUC na Câmara, no final de 1996,
passou-se a admitir nas RPPNs a extração de recursos naturais, exceto madeira, que não
colocasse em risco “as espécies ou os ecossistemas que justificaram a criação da unidade”
(MERCADANTE, 2001, p. 217). Assim, deslocaram-se as RPPNs para o grupo de UCs de
Uso Sustentável. Porém, esse dispositivo foi vetado pelo Presidente da República.
Desse modo, as RPPNs ganharam no SNUC uma dupla configuração jurídica: embora
estivessem entre as Unidades de Uso Sustentável, efetivamente, sofriam as mesmas restrições
daquelas UCs que eram de Proteção Integral. Apenas três tipos de atividades são permitidas
nas RPPNs: educação ambiental, ecoturismo e pesquisas científicas.
Para Wiedmann (2006) as RPPNs possuem natureza jurídica de Proteção Integral,
porque o que classifica, de fato, as unidades de conservação são as atividades que se permite
desenvolver no seu interior.
55
Os Rppnistas se dividem entre aqueles que estão de acordo com o uso restrito da
RPPNs e aqueles que acreditam que, uma vez que estas foram incluídas entre as Unidades de
Uso Sustentável, deveriam ser ampliadas as possibilidades de utilização dessas áreas.
Para o biólogo Bruno Valverde, o veto ao artigo do SNUC que permitia
manejo/extrativismo nas RPPNs só reiterou o que as reservas privadas são realmente:
Unidades de Proteção Integral. Ele emite sua opinião sobre o assunto em uma mensagem da
lista de discussão:
Desde que foram criadas em 1990 as RPPNs sempre foram áreas protegidas bem restritas, nas
quais as únicas atividades permitidas são a visitação/recreação/ecoturismo, a educação
ambiental e as pesquisas científicas. Portanto, o veto ao inciso do artigo 21 do SNUC que
permitia manejo/extrativismo não trouxe nenhuma novidade, apenas estabeleceu o que já
havia há 10 anos (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2007a).
De acordo com Bruno, o inciso vetado, que falava em “aproveitamento racional de
recursos naturais” nas RPPNs, abriria brecha inclusive, para a atividade mineradora dentro
das reservas. Segundo ele, o veto “não apenas assegurou às RPPNs o caráter que elas já
tinham desde 1990, como protegeu essa figura jurídica das mãos dos ‘eco-oportunistas’ e
outros espertalhões de plantão” (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2007a).
Já para Danilo Melo, também participante da lista de discussão e que assina como
secretário-geral do Instituto Ibiosfera, o veto no SNUC desestimularia os proprietários rurais a
criarem RPPNs, uma vez que para estes não haveria perspectiva de retorno financeiro. Danilo
defende uma revisão na regulamentação das RPPNs para que houvesse possibilidade de se
desenvolverem “atividades sustentáveis”, como os sistemas agroflorestais12 em RPPNs. Uma
vez que as RPPNs eram particulares, era preciso se levar em consideração a liberdade do
proprietário em relação às possibilidades de utilização de suas terras (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2007b).
É justamente essa “liberdade” que Sônia Wiedmann (2008) acha necessário controlar.
Em entrevista ela afirma:
Eu, por exemplo, durante anos e anos continuo ainda debatendo: as RPPNs nós não podemos
abrir. Você abre isso, você perdeu o controle dela.
Eduardo Nogueira, proprietário de uma RPPN em Santa Catarina, acredita que o veto
que impede nas reservas qualquer atividade que não seja a pesquisa científica e a visitação
12 Os sistemas agroflorestais são formas de cultivo da terra e organização do espaço em que há um consórcio de espécies
arbóreas, culturas agrícolas e/ou criação de animais numa mesma área de maneira simultânea ou ao longo do tempo.
56
com fins turísticos, recreativos e educacionais é a melhor forma de proteção das reservas
privadas. E responde à mensagem de Danilo:
Não creio que a impossibilidade de manejo florestal seja empecilho para alguém criar uma
RPPN, mesmo porque, justamente a área escolhida dentro de uma propriedade a ser uma
RPPN é geralmente a parte mais conservada e com seus atributos e características
merecedoras da preservação em caráter perpétuo. Por isso acredito que manejo florestal não
combina dentro de uma proposta onde a idéia central é a proteção da biodiversidade dos
últimos remanescentes de um determinado bioma (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs,
2007c)
Estes posicionamentos divergentes entre si e que podem ser identificados em vários
momentos na lista de discussão são comentados por Carlos Gonçalves:
Percebe-se por algumas manifestações que não há uma clareza do que alguns gostariam (não
o que está definido como tal na lei) que fosse RPPN. Percebe-se que alguns gostariam que
fosse uma área onde seriam permitidos diversos tipos de exploração sustentável (extrativista,
plantios, criações, etc.). Se há o compromisso de preservação do ambiente natural, isto já é
uma grande coisa e deve ser estimulado de todas as formas, ocorre que ficaria difícil definir os
limites das diversas formas de exploração sustentável deste ambiente e sempre haveria o risco
de que algumas dessas intervenções viessem a causar impactos no equilíbrio ecológico destas
áreas, principalmente no caso daquelas isoladas e fragmentadas (LISTA DE DISCUSSÃO
SOBRE RPPNs, 2008f).
Para Bruno Valverde era preciso tentar “mudar as RPPNs de categoria”, transferi-las
para o grupo de Unidades de Proteção Integral, a fim de se evitar pressões futuras dos que
gostariam de ter mais flexibilidade no seu manejo (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs,
2008g).
De fato, em termos legais, não é possível realizar tal alteração no SNUC. O próprio
Bruno Valverde revê sua proposta, através da seguinte explicação:
Mas como na hora de sancionar uma lei o presidente só pode usar “caneta vermelha”, ou seja,
só pode riscar (vetar) trechos, mas não pode escrever nada e nem mudar nada de lugar, então
as RPPNs tiveram que ficar como uso sustentável “de ato” (ou seja, pela classificação na lei),
mesmo sendo de proteção integral “de fato”. Outra questão importante de ser levada em conta
é que um regulamento não tem poderes para alterar ou deturpar o conteúdo de uma lei, há
uma hierarquia jurídica entre eles, a lei valendo mais que o regulamento. Na prática, isto
significa que o que o regulamento das RPPNs poderá fazer é regular e normatizar os usos
permitidos pela lei. Ou seja, continuará sendo vedada qualquer forma de extrativismo em
RPPNs, salvo alguns casos de coleta de sementes para recuperação florestal do entorno, para
os quais já houve precedentes. Qualquer coisa diferente disso, só mudando a lei (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2004a).
Para Sônia Wiedmann, uma maior ou menor restrição na utilização das RPPNs implica
diretamente no conceito da RPPN, isto porque, o uso restrito, que configura a RPPN como
Unidade de Proteção Integral corresponde à “concepção filosófica” dessas reservas, o que elas
são e devem continuar sendo em sua essência. Elas jamais poderiam ter sido transferidas para
o grupo das Unidades de Uso Sustentável.
57
Observa-se que Sônia Wiedmann acredita em um conceito de RPPN, construído a
partir de uma concepção filosófica, que corresponderia à sua formulação legal original, da
qual ela teria participado nas suas funções de procuradora do IBAMA. Ocorre, que essas
divergências expressam justamente a coexistência de distintos conceitos de RPPN, distintas
concepções filosóficas, diretamente relacionados aos projetos dos proprietários dessas
reservas e das suas representações acerca da relação natureza-sociedade. Assim, a persistência
da polêmica, apesar da impossibilidade de se realizarem alterações na legislação, nos indica
que os diferentes projetos, que implicam em diferentes usos da RPPN, inviabilizam uma
unidade conceitual em torno da noção de RPPN.
Apesar disso, iniciativas como a elaboração da Carta do Patrimônio Natural no II
Congresso Brasileiro de RPPNs, se revelam como tentativas de apresentar e deixar
registrado um suposto consenso obtido acerca da noção de RPPN e do seu papel na
conservação da biodiversidade. A Carta do Patrimônio Natural foi uma declaração
elaborada no encerramento deste congresso e tinha como objetivo, nos termos deste próprio
documento, “registrar inquietações e propostas com respeito às estratégias para a
conservação do patrimônio natural brasileiro em propriedades particulares”. A Carta do
Patrimônio Natural afirma as RPPNs como Unidades de Proteção Integral e como peças-
chave no cenário conservacionista. Segue um trecho deste documento:
Existe hoje um reconhecimento, sobretudo por parte de pesquisadores e ambientalistas, que as
RPPN constituem um importante instrumento para a implementação das políticas de
conservação no país, complementar aos esforços públicos de criação de espaços naturais
protegidos, instrumento este que tem sido não apenas efetivo como extremamente bem
sucedido. Prova disso é o número de RPPN existente hoje e a área protegida pelas mesmas,
sobretudo se considerarmos o cenário atual de apoio e incentivos irrelevantes disponíveis para
as RPPN e seus proprietários.
As RPPN também têm tido fundamental importância na formação de mosaicos de unidades de
conservação, na criação de corredores ecológicos, na implantação de zonas de amortecimento
de unidades de conservação públicas, na proteção de fragmentos representativos dos biomas
brasileiros e de áreas de endemismo dentro das estratégias de conservação da natureza no
país. Apesar de integrarem o grupo de “uso sustentável”, é evidente e notório que as RPPN
protegem a biodiversidade nos mesmos moldes das unidades de conservação de proteção
integral, reconhecidas como as mais eficazes na conservação da natureza (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006k).
Uma solução que tem sido diversas vezes apresentada entre os participantes da lista de
discussão para superar a polêmica do uso da RPPN, de forma a assegurar que ela permaneça
como Unidade de Proteção Integral, é a criação de novas categorias de reservas privadas de
uso menos restritivo. No Amazonas já foi criada a RPDS (Reserva Particular de
Desenvolvimento Sustentável), que integra o Sistema Estadual de Unidades de Conservação.
58
Esta categoria possibilita a permanência da população e permite utilização dos recursos
naturais, ao contrário das RPPNs. Conforme disse Sônia Wiedmann (2008):
O estado do Amazonas criou: se chama Reserva Particular de Desenvolvimento Sustentável.
RPDS. Fui eu que fiz. O Sistema Estadual de Unidade de Conservação do Amazonas, eu
passei lá três meses trabalhando em cima dele, no ano passado. E a gente colocou então a
RPPN no sistema estadual e criou essa nova categoria estadual que chama RPDS. Eu falei
sobre ela lá no congresso. Na minha palestra eu falei sobre ela. Quer dizer, tá assim, não sei o
que vai dar isso. O que é a figura da RPDS? É uma reserva privada em áreas particulares mas
que você tem usos ali dentro sustentáveis, muito sustentáveis. Você tem exploração, manejos,
assim, de recursos naturais bem sustentáveis. Você não vai poder fazer pecuária, agricultura
com agrotóxico e os transgênicos nessa área. Não, não vai. Mas você vai poder fazer o
desenvolvimento sustentável, o manejo de palmito, um manejo de piaçava. Atividades que na
Amazônia podem ser sustentáveis. Então essa é a idéia. E mais uma coisa nessas reservas
privadas de desenvolvimento sustentável, é que elas são propriedade que têm posseiros. E que
os posseiros já constituem uma comunidade em parceria com o proprietário. O proprietário
não tem condições de tirar essas pessoas de lá então faz arrendamentos, faz acordos com eles.
Então, a RPDS é até uma forma de organizar as atividades desses ocupantes. Então ela uniu as
duas coisas. A reserva extrativista particular... então a RPDS seria quase uma reserva
extrativista particular. Eu tenho até medo de falar isso, porque não é bem isso. Mas é uma
reserva onde você tem desenvolvimento sustentável, você tem o proprietário da terra, o dono
da terra mesmo, mas você tem comunidades que vivem ali dentro. É muito típico isso na
Amazônia. Isso existe muito lá. Então, quer dizer, você vê que tá havendo agora um
desdobramento.
Observa-se como a criação de novas modalidades de UCs privadas e o emprego de
outras estratégias de conservação ambiental são vistos como formas de garantir o caráter
restritivo das RPPNs que, segundo Bruno Valverde e Sônia Wiedmann, deveria ser mantido.
Há que se destacar a importância que é dada às unidades de conservação, em especial
às de Proteção Integral, para a proteção de espaços considerados “mais frágeis e especiais”,
como reconhece Bruno Valverde em uma mensagem da lista de discussão. Tal afirmação nos
remete a um já conhecido e consagrado mote do discurso ambientalista: “as unidades de
conservação são a melhor forma de conservar a biodiversidade13”.
De acordo com os princípios da biologia da conservação14:
A melhor estratégia para a proteção a longo prazo da diversidade biológica é a preservação de
comunidades naturais e populações no ambiente selvagem, conhecida como preservação in
13 Considero importante ressaltar que essa afirmação é alvo de duras críticas de autores que se posicionam contra a
hegemonia da noção de “desenvolvimento sustentável”. Para estes, além dos problemas éticos e políticos evidenciados com a
criação de UCs de Proteção Integral, a centralidade das políticas ambientais na criação destas áreas protegidas deslocaria o
foco da origem da acelerada degradação do meio ambiente, fundada em padrões de produção e consumo e nas desiguais
formas de apropriação do espaço natural. Ver Alier (2002) e Acselrad (2004, 2005).
14 Biologia da conservação é uma ciência multidisciplinar desenvolvida para combater a redução da biodiversidade, tendo
como dois objetivos principais “entender os efeitos da atividade humana sobre as espécies, comunidades e ecossistemas, e
desenvolver abordagens práticas para prevenir a extinção de espécies e, se possível, reintegrar as espécies ameaçadas ao seu
ecossistema funcional” (PRIMACK e RODRIGUES, 2001, p. 5).
59
situ ou preservação local. Somente na natureza as espécies são capazes de continuar o
processo de adaptação evolucionária para um ambiente em mutação dentro de suas
comunidades naturais. (PRIMACK e RODRIGUES, 2001).
O III Congresso Mundial de Áreas Protegidas, organizado pela UICN em 1982,
apresentou como estratégia vital para a conservação dos recursos naturais do planeta a
expansão do número de áreas protegidas no mundo (BARRETO FILHO, 2001). Da mesma
forma, a Convenção sobre a Diversidade Biológica15, da qual o Brasil foi um dos signatários,
também estabelece a prioridade da conservação in situ16 na conservação de áreas protegidas
(WIEDMANN, 2006).
Observa-se que a institucionalização das RPPNs como unidades de conservação
revitaliza este discurso, uma vez que tem se considerado que as reservas privadas são “a
melhor estratégia para ampliar o espectro e o tamanho do território protegido no Brasil”
(FUNDAÇÃO BIODIVERSITAS, 1996, p.4).
2.4 O “patinho feio” das unidades de conservação
Segundo diversos Rppnistas, o processo de reconhecimento legal e a manutenção das
RPPNs têm sido marcados por várias dificuldades, as quais vêm produzindo, entre eles, um
sentimento de abandono e de marginalização. É assunto recorrente na lista de discussão o
descaso e descompromisso do Estado com relação a essas reservas, mesmo após a Lei do
SNUC. Lamenta-se, com freqüência, a falta de suporte financeiro do Poder Público para a
gestão das RPPNs e a carência de fiscalização dos órgãos ambientais que ajude a coibir a caça
e desmatamento.
As expectativas de um maior apoio do Estado em relação às RPPNs, quando estas
fossem incluídas no SNUC, têm sido frustradas. Segundo Lúcio Artur, analista ambiental do
15 A Convenção sobre Diversidade Biológica foi um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento - CNUMAD (Rio 92), realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Considerada um dos mais
importantes instrumentos internacionais relacionados à CDB é o principal fórum mundial na definição do marco legal e
político para temas e questões relacionados à biodiversidade (BRASIL, 2009a).
16 A conservação in situ se refere à “ conservação de ecossistemas e habitats naturais e a manutenção e a recuperação de
populações viáveis de espécies em seus meios naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde
tenham desenvolvido suas propriedades características” (BRASIL, 2002, p.10).
60
IBAMA de Minas Gerais, o processo de criação das reservas tornou-se mais burocrático e
oneroso. É o que ele afirma em uma entrevista realizada em 2006:
Elas acabaram entrando [no SNUC] por pressão dos maiores proprietários de reservas
particulares que acreditavam que sua inserção num sistema público lhes traria uma maior
estabilidade e a possibilidade de mais privilégios. Mas, na realidade, isso lhes trouxe mais
entraves, pois, a partir desse momento, vão passar por um processo público de
reconhecimento. Na realidade não se reconhece uma RPPN, você cria uma RPPN. Todo um
processo tem que ser feito, toda aquela questão de comprovação, divulgação, audiência
pública, e tudo o mais tem que ser feito, além de toda a documentação interna que passa a ser
exigida para o reconhecimento daquela propriedade. Assim, todo o processo se complicou
(ARTUR, 2006).
Para a bióloga Cláudia Costa, a Lei do SNUC acabou por desacelerar o ritmo de
criação das reservas:
Embora a Lei no 9.985/2000 tenha conferido maior importância às RPPNs, na prática isso não
significou benefícios e facilidades para os proprietários. Em certo sentido, surgiram maiores
entraves. Com o status de unidades de conservação, as RPPNs passaram a ser analisadas com
mais rigor por técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA), o que provocou uma paralisação no processo de criação dessas
reservas que se arrastou por quase dois anos. Após pressões de ONGs, articuladas com
proprietários, organizados em associações e em uma confederação, a criação das reservas
retomou o seu curso natural (COSTA, 2007, p. 20).
O Rppnista Reginaldo Novaes considera as RPPNs “o patinho feio das unidades de
conservação”. Isto porque, os proprietários são deixados à sua própria sorte pelo Estado e têm
que arcar sozinhos com todos os custos. Além disso, as RPPNs não estariam em pé de
igualdade com as outras categorias de UCs:
O mais interessante é que existe uma forte campanha da TNC, CI, SOS e várias outras ONGs
para que criemos RPPNs em nossas terras, mas após criadas, quando citamos os direitos
contidos no SNUC, nos dizem que a criação é um ato voluntário do proprietário e que as
vantagens do SNUC é para as UCs públicas, entretanto, somos obrigados a cumprir
rigorosamente todos os deveres e obrigações do SNUC (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2006a).
Reginaldo enviou para a lista de discussão uma mensagem que teve grande
repercussão. Segue um trecho do e-mail:
Abrindo a discussão eu gostaria de saber qual proprietário de RPPN que já teve garantida a
sustentabilidade econômica da sua unidade ou uma alocação adequada de recursos financeiros
para que a pudesse gerir de forma a atender seus objetivos SNUC (LISTA DE DISCUSSÃO
SOBRE RPPNs, 2006a).
De acordo com o decreto regulamentador do SNUC, que dispõe sobre as RPPNs, os
proprietários das reservas teriam a área criada como RPPN isenta do imposto sobre a
propriedade rural, o ITR. Além disso, outro benefício seria a prioridade na concessão de
crédito rural nas propriedades em que houvesse RPPN. O Ministério do Meio Ambiente
também possui uma linha de financiamento, o Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA)
61
que apoiaria “iniciativas da sociedade civil e de órgãos e entidades governamentais que
promovam a recuperação, a conservação e a preservação do meio ambiente e a melhoria da
qualidade de vida da população brasileira” (BRASIL, 2008a).
No entanto, diversos proprietários (especialmente os que possuem pequenas
propriedades rurais) têm afirmado que é irrisório o valor relativo à isenção do ITR, em relação
aos gastos necessários para manter as reservas (instalação e manutenção de cercas, placas
indicativas e outros). Da mesma forma, os fundos públicos, que estariam mais facilmente
disponíveis para proprietários de RPPN, não atendem à demanda e são vistos como
inacessíveis, frente a processos de seleção de projetos extremamente burocráticos.
Como o responsável legal pela criação, manutenção e gestão das RPPNs é o seu
proprietário a alternativa que tem sido encontrada para levantar os recursos financeiros na
administração dessas reservas, além do envio de projetos ao FNMA, tem sido recorrer a
organizações não-governamentais brasileiras e internacionais. Mas o que Reginaldo Novaes
tem a dizer sobre isso?
Gostaria também de manter contato com aquele felizardo companheiro Rppnista que solicitou
e conseguiu a cooperação de entidades ambientalistas para conter caça, roubo de madeira,
pesca ou captura de animais na sua UC e foi atendido (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2006a).
Com sarcasmo, Reginaldo coloca em dúvida a efetividade na obtenção de recursos
através das ONGs. Ao comentar este fato em entrevista, refere-se principalmente às
dificuldades trazidas pela exigência formal na elaboração dos projetos, para a qual os
proprietários nem sempre estão habilitados. Pesa também o fato de que os editais dessas
instituições, na sua grande maioria, exigem que o projeto seja apresentado por pessoa jurídica.
Indivíduos dificilmente conseguem apoio financeiro, o que tem impulsionado, inclusive, a
criação de pequenas ONGs por proprietários de RPPNs, que vêem nessa atitude uma saída
para a apresentação de projetos. Dois exemplos a serem citados: o Instituto Sul Mineiro,
criado pela proprietária da RPPN Fazenda Lagoa, em Minas Gerais e o Instituto Uiraçu, que
desenvolve diversos projetos na RPPN Serra Bonita na Bahia.
Há também um programa de fomento à criação de RPPNs e apoio a desenvolvimento
de projetos nessas reservas denominado “Aliança para a Mata Atlântica”. Este programa é
resultado de um trabalho conjunto entre as ONGs SOS Mata Atlântica e Conservação
Internacional, que periodicamente publicam editais com várias linhas de financiamento para
RPPNs. Destaca-se a linha que se destina a financiar projetos individuais, cujo proponente
não precisa ser pessoa jurídica.
62
Entretanto, embora identifiquem um avanço nesse programa, que permite que o
proprietário possa por si só encaminhar o seu projeto, alguns proprietários questionam esse
suporte “tutelado”, que impediria uma real autonomia na obtenção de recursos e no
encaminhamento e execução do seu projeto. Da mesma forma, tem se considerado que os
processos de seleção de projetos não atendem à demanda. Além disso, tem se questionado os
critérios de escolha dos projetos a serem contemplados com a verba:
Até hoje, ao que eu saiba, apenas a Aliança injetou recursos de forma direta em algumas
RPPNs, mesmo assim, através de editais e julgamentos, o que contempla apenas uma parcela
mínima de reservas. A Fundação Boticário não deve ser levada em conta, pois os projetos que
para lá são enviados, há muito tempo que não são levados em consideração (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006a).
Apoios à implementação só o programa da Aliança, que apesar de ser uma grande iniciativa,
única em apoio a proprietários individualmente, modelo fantástico. Mas não consegue atingir
o número esperado de proprietários ao mesmo em tempo que se traduz em pequenos apoios de
no máximo 25.000 reais em um ano, que passa rápido e depois continuamos com o caneco na
mão, como pedintes de um apoio aqui, outro ali... (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs,
2006a).
Há que se considerar, entretanto, que essas dificuldades por que passam os
proprietários de RPPNs agregam valor simbólico a sua tarefa de “guardiões”. Essa dose de
“sacrifício” é um componente fundamental para a eficácia do discurso Rppnista, construído
sob a perspectiva da dádiva. Nos capítulos 4 e 5 me debruçarei sobre essa questão.
2.5 O Decreto Regulamentador das RPPNs
Os Rppnistas esperavam que o reivindicado apoio do Estado às suas ações se
materializasse através dos mecanismos normativos do Decreto no 5.746, promulgado em
2006, o qual regulamenta as RPPNs. É o que podemos perceber através da indignada
manifestação do Proprietário de RPPN Reginaldo Novaes em uma mensagem enviada para a
lista de discussão, através da qual demonstra sua expectativa com a elaboração do decreto:
O que nós estamos lutando é para acabar com o faz-de-conta e os “sofismas legais”. Se a Lei
9985 no seu artigo 5o, item XII, diz textualmente: o SNUC será regido por diretrizes que:
garantam uma alocação adequada de recursos financeiros necessários para que, uma vez
criadas, as unidades de conservação possam ser geridas de forma eficaz a atender aos seus
objetivos, queremos que a lei seja cumprida. Não é justo que eu pague sozinho três guarda-
parques com rodízio dia e noite, acompanhando pesquisadores e evitando o roubo de madeira
para lenha e para serraria, a caça,a apanha de animais e o aprisionamento de pássaros pegados
às dezenas, de uma vez só com redes. Há cerca de um ano e meio solicitamos ao IBAMA
oficialmente a liberação das estacas apreendidas para cercar algumas RPPNs e sabe qual foi a
resposta? Nenhuma. As estacas estão lá, apodrecendo e o desrespeito continua... vou parar por
aqui esperando que você venha fazer parte dessa nossa irmandade de guerreiros do bem.
63
Lembre-se sempre: quem não tem voz, não tem vez. (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2006b).
De acordo com o SNUC, cada categoria de unidade de conservação deveria ser objeto
de normatização específica. Acreditando no poder deste instrumento jurídico, os Rppnistas se
mobilizaram e participaram ativamente da elaboração do decreto regulamentador. Até hoje,
dentre as demais UCs, apenas o artigo do SNUC que trata das RPPNs sofreu regulamentação,
o que se deve, em larga medida, às pressões dos Rppnistas.
Através das mensagens da lista de discussão foi possível observar como a atuação dos
Rppnistas em relação à normatização das RPPNs ocorreu de maneira simultânea e até mesmo
complementar à sua organização enquanto um grupo social, com uma específica força
política. Ao criar a lista de discussão os Rppnistas constituem um fórum de extrema
relevância, através do qual passam a se comunicar, trocar impressões a respeito do que ocorria
no mundo das RPPNs, especialmente no âmbito legal. Além disso, a lista de discussão
constituiu-se em um espaço onde os Rppnistas podiam convocar e estimular seus pares para a
articulação e ativismo na arena política, como é possível se observar a seguir:
No momento o que precisamos é estar organizados para a regulamentação da lei do SNUC!
(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008h).
Eu sei que viver sob a pressão de arcar com todos os custos de proteção e manutenção de uma
unidade de conservação, recebendo como único incentivo a isenção de ITR para a área
reconhecida como tal, é muito grande. Mas é preciso discernimento e união e, como alguém já
falou, muita mobilização por parte da comunidade Rppnista para encontrar os caminhos,
viáveis e factíveis, para se assegurar apoio e reconhecimento para este enorme esforço que
todos vocês vêm fazendo, há anos, para cuidar de maneira adequada do patrimônio natural
brasileiro, em benefício de todos (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2004b) .
Dessa forma, observar como os atores se posicionavam em relação ao decreto, o que
esperavam dele e como o receberam, através das mensagens que circularam na internet, pode
ajudar a compreender não apenas as novas regras que foram estabelecidas por este
instrumento legal. Mais que isso, a mobilização que se deu para a redação do Decreto
Regulamentador das RPPNs é elucidativa do processo da organização da rede de proprietários
de RPPNs.
No contexto da elaboração do decreto se reestrutura e ganha força a Confederação
Nacional de RPPNs (CNRPPN), que havia sido criada em 2001, durante o III Encontro de
Sustentabilidade e Conservação das RPPNs e englobava as associações de proprietários
dessas unidades de conservação. A CNRPPN teve, então, um importante papel na articulação
dos Rppnistas para a preparação e nas pressões para a assinatura do decreto, conforme se
observa na mensagem abaixo:
64
O decreto de regulamentação das RPPNs, que balizará a gestão das mesmas, está sendo
construído a muitas mãos. Boa parte das associações de proprietários vivem um momento de
fortalecimento, consolidação ou busca de identidade, ou seja, de construção. A CNRPPN,
cuja criação há dois anos atrás, como é público, a PRESERVA [Associação de Proprietários
de RPPNs da Bahia] considerou inoportuna e precipitada- agora se reconstrói, ou, de fato, se
constrói, para efetivamente representar as associações e os anseios dos proprietários e não a si
mesma (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008i).
Destaca-se que a CNRPPN tem realizado alianças estratégicas com instituições
governamentais e não-governamentais, ocupando, inclusive, um assento no Fórum Nacional
de Áreas Protegidas, através de um convite do Ministério do Meio Ambiente (WIEDMANN,
2004).
2.5.1 A decepção com o Decreto Regulamentador das RPPNs
O otimismo que os Rppnistas, em geral, apresentavam na lista de discussão em relação
ao decreto era contraposto à postura mais cética que assumiam alguns Profissionais do Meio
Ambiente, como os biólogos de ONGs que apoiavam as RPPNs, Bruno Valverde e Cristina
Matos.
Bruno Valverde recomendava aos Rppnistas que contivessem seus ânimos e não se
deixassem levar pela idéia de que o decreto resolveria todas as dificuldades na gestão das
RPPNs:
Não se pode criar ilusões. Estas não nos levarão a nada, só a mais e mais frustração. É preciso
ter claro que o decreto de regulamentação de RPPNs não poderá permitir nenhuma forma de
extrativismo vegetal ou animal nas RPPNs, como forma de garantir sua sustentabilidade
financeira. Não há confusão nisso. É preciso ter claro que um decreto não pode permitir o que
uma lei (superior ao decreto) proíbe. Mas este decreto pode, e deve, apontar outras
alternativas para o financiamento das mesmas. É essa que deve ser nossa luta! (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2004b).
Para Cristina Matos, o decreto trouxe avanços, porém os “retrocessos” foram
expressivos. Permaneceram as exigências burocráticas consideradas altamente onerosas pelos
Rppnistas, como a necessidade de um complexo levantamento de documentação e a
elaboração de planos de manejos para reconhecer as RPPNs junto aos órgãos ambientais.
A despeito da reivindicação dos Rppnistas por um processo mais simplificado na
ordenação do espaço da RPPN o decreto estabelece que para desenvolver pesquisas científicas
e visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais seria necessária a formulação
do plano de manejo, que deveria ter o aval do IBAMA. Até que este fosse aprovado as
65
atividades e obras realizadas na RPPN deveriam se limitar àquelas destinadas a garantir sua
proteção e a pesquisa científica (BRASIL, 2009b).
Elaborar um plano de manejo não é um trabalho simples; a sua redação exige uma
linguagem técnica que talvez não seja dominada por todos os Rppnistas. Para Cristina Matos,
era importante que os Rppnistas participassem do processo de regulamentação do SNUC para
acompanharem como seria tratada a exigência de planos de manejo em RPPN:
Retornando do III Seminário de Treinamento dos Técnicos Responsáveis pelo Programa
RPPN, promovido pelo IBAMA, nos dias 12, 13 e 14, formulamos uma minuta para
adequação do decreto 1922/96, como forma de contribuir no processo de regulamentação do
SNUC. Nessa minuta sugerimos que fosse deixado que o plano de utilização só seja
imprescindível se o proprietário tiver interesse em desenvolver alguma atividade. A esse
respeito é necessário também estarmos atentos ao termo “plano de manejo”. O Decreto
1922/96 falava em plano de utilização. O IBAMA disponibilizou um manual que continha um
plano de utilização bastante simplificado, e que o próprio proprietário poderia fazer sem uma
ajuda externa. A Lei do SNUC fala em Plano de Manejo, sabidamente um processo muito
mais complexo e oneroso e totalmente fora das possibilidades da maioria dos proprietários.
Acho que exigir plano de manejo para fins educativos também está totalmente fora de
propósito, já que implica em intervenções muito insignificantes na área para exigir a
apresentação de um plano de manejo. Todos aqueles que conhecem os roteiros metodológicos
dos planos de manejo sabem do que eu estou falando (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2008j).
E os Rppnistas, realmente, estiveram atentos a isto, já que a CNRPPN também
participou, juntamente com o IBAMA e o Ministério do Meio Ambiente (MMA), na
elaboração do Roteiro Metodológico de Planos de Manejo em RPPN. Conforme estabelece a
Lei do SNUC, cabe ao IBAMA elaborar e disponibilizar roteiros metodológicos para a
elaboração de planos de manejo para as diferentes categorias de unidades de conservação
federais, criando as principais referências para a orientação e uniformização das questões que
regem o manejo e a gestão das unidades (BRASIL, 2002).
Outra questão também bastante polêmica entre os Rppnistas é à exigência de consulta
pública via internet, prevista pelo Decreto Regulamentador das RPPNs. Costa considera que,
dessa forma, o governo abria espaço para o público interferir no domínio privado, o que
contrariaria o direito de propriedade protegido pela Constituição Brasileira. Além disso, Costa
afirma que se criaria mais um entrave ao processo de instituição dessas unidades de
conservação, uma vez que é comum que as RPPNs sejam malvistas pelos seus vizinhos, que
acreditam que “a existência de uma reserva atrai o IBAMA e a fiscalização para a região”.
Desse modo, a RPPN poderia receber um parecer desfavorável dos moradores no processo de
consulta pública (COSTA, 2007).
A respeito do “direito de propriedade” que seria afetado pelo decreto, Carlos
Gonçalves chama atenção para o artigo 23:
66
Art. 23. No exercício das atividades de vistoria, fiscalização, acompanhamento e orientação,
os órgãos ambientais competentes, diretamente ou por prepostos formalmente constituídos
terão livre acesso a RPPN.
Acredito que isso até seja inconstitucional. Uma RPPN é uma propriedade privada e acesso a
minha propriedade, eu informo a todos os interessados, será apenas feito com meu
conhecimento e anuência (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006a).
Na mensagem supracitada de Carlos Gonçalves, se verifica como estão em confronto
duas reivindicações de autoridade em relação ao espaço natural. A autoridade político-legal,
que imbui os órgãos ambientais do poder e legitimidade para “vigiar” as formas de utilização
das RPPNs, tendo livre-acesso a estes espaços e a autoridade do proprietário, do “dono da
terra”, através da qual se reivindica o direito de controlar o acesso a ela.
O Decreto Regulamentador reproduz, de outra forma, estas formas de manifestação de
poder sobre a RPPN (o poder do Estado sobre o Proprietário de RPPN e do Proprietário de
RPPN sobre a sua propriedade) na medida em que passou a exigir a:
planta da área total do imóvel indicando os limites; os confrontantes; a área a ser reconhecida,
quando parcial; a localização da propriedade no município ou região, e as coordenadas dos
vértices definidores dos limites do imóvel rural e da área proposta como RPPN,
georreferenciadas de acordo com o Sistema Geodésico Brasileiro, indicando a base
cartográfica utilizada e assinada por profissional habilitado, com a devida Anotação de
Responsabilidade Técnica – ART (BRASIL, 2009b).
Através do georreferenciamento os órgãos ambientais podem perceber se existe
alguma irregularidade fundiária. Verifica-se como os mecanismos legais e também técnico-
científicos têm sido meios de limitar e controlar a “livre iniciativa” do candidato a
proprietário de RPPN. Além da vontade de criar uma RPPN é preciso se submeter à exigência
de elaboração de uma planta georreferenciada que irá delimitar com precisão os limites e da
localização da área a se tornar RPPN.
Já os proprietários de RPPNs, com este mecanismo, podem garantir não apenas a
delimitação da RPPN, mas também a demarcação de sua propriedade, se assegurando contra
possíveis invasões em suas terras. Conforme afirma Bruno Valverde:
É inegável que exigências como o georreferenciamento dos limites da RPPN oneram a sua
criação. Mas é inegável também que este procedimento empresta maiores garantias na
perpetuidade e proteção dessas áreas, como unidades de conservação que são! Inclusive
contra eventuais futuros empreendimentos impactantes (estradas, barragens, usinas,
mineração, etc.), bom como contra invasões e ocupações irregulares. Alguém duvida que ter
seus limites muito bem definidos e geodesicamente demarcados não seja algo extremamente
positivo para a proteção e o manejo das unidades de conservação, incluindo as RPPNs? Me
parece que o problema aqui não é a exigência. O problema é a escassez de recursos e de apoio
para cumpri-la, de maneira a potencializar ainda mais a enorme demanda por RPPN que
existe hoje (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006c).
67
Carlos Gonçalves também acredita que os Rppnistas devam se “cercar de todo
cuidado” para defender suas “fronteiras”, e neste sentido, tanto uma normatização específica
para as relações do Rppnista com a sua vizinhança (que ele reivindica), como o
georreferenciamento, seriam importantes medidas a serem tomadas:
Há dois anos a prefeitura local resolveu destinar para loteamento de pessoas sem teto uma
área imediatamente adjacente à minha RPPN e absolutamente nada pôde ser feito porque não
existe uma legislação atual que proteja o entorno. No segundo momento, há poucos meses a
RPPN foi invadida por duas famílias e eu não pude fazer também absolutamente nada a não
ser entrar com um processo de reintegração de posse, que pode demorar alguns anos, no qual
a invasão de outras famílias e o desmatamento teriam levado à destruição da RPPN. Como
poder-se-ia proteger o entorno e como evitar invasões? ( LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2008k).
De acordo com o SNUC toda unidade de conservação deve ter uma “zona de
amortecimento”, ou seja, uma área circundante das UCs “onde as atividades humanas estão
sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos
negativos sobre a unidade” (BRASIL, 2002, p.11). Mas esta exigência não se estende às
RPPNs.
Para Cristina Matos a ausência de uma regulamentação sobre o entorno das RPPNs
tem sido vista como um problema para os Rppnistas:
Entre os problemas identificados pelos proprietários seria o impacto de atividades
desenvolvidas em propriedades vizinhas às RPPNs que desenvolvem o ecoturismo, por
exemplo. A instalação de uma atividade poluidora ou de grande impacto visual são exemplos
que afetariam completamente o ecoturismo. Da mesma forma, as RPPNs que forem reservas
produtoras de água, e que quiserem em algum momento "negociar" o seu produto, podem
sofrer com o uso dado à água pelos seus vizinhos. Assim, embora seja claro que não há como
se contrapor ao previsto na Lei, seria interessante que fossem discutidas possibilidades de
adotar para as RPPNs, ações semelhantes àquelas verificadas nas zonas de amortecimento das
demais unidades, ou seja, garantir um planejamento adequado de uso no entorno dessas
reservas. Um dos pontos levantados na Carta de Peti é a "obrigatoriedade das prefeituras
considerarem a existência das RPPNs e a necessidade de conservação ambiental de seus
entornos na elaboração dos seus planos diretores". O termo "obrigatoriedade" reflete um
pouco a ansiedade dos proprietários em ver equacionado o problema da zona de
amortecimento. Não há como obrigar os municípios a fazerem isso, no entanto, os planos
diretores, envolvendo um macrozoneamento do município, deve considerar o planejamento
de uso menos impactante para o entorno de unidades de conservação. Se no processo de
regulamentação do SNUC, talvez do próprio artigo 25, seja interessante discutir a
possibilidade de prever um planejamento de uso para o entorno das RPPNs. A RPPN é
identificada como a melhor estratégia para promoção de conectividade entre UCs de proteção
integral, previsto nos corredores ecológicos, e formação de zonas tampão de UCs. Para
assumir esse papel, é fundamental que as áreas vizinhas a essas reservas tenham algum nível
de planejamento de uso, como o proposto para as áreas de amortecimento de qualquer UC. O
que queremos é que sejam discutidas possibilidades de interferência no nível de uso do
entorno das RPPNs, que possam ser normatizados na regulamentação do SNUC e na
adequação do Decreto 1922/96 (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008l).
Percebe-se como as RPPNs estão relacionadas a distintos “projetos de
territorialização” do espaço natural. Cunha, Silva e Nunes (2008) chamam de “projeto de
68
territorialização” ou “dinâmicas territoriais” as intervenções dos atores sociais sobre o espaço,
no sentido de influir sobre as formas de organização e utilização destes.
Inspirada pela discussão de Cunha, Silva e Nunes (2008) sobre conflitos ambientais
em assentamentos rurais afirmo que é possível compreender as RPPNs como “territórios”,
como “espaços de poder” e “espaços de projeto”. Segundo estes autores os “territórios” são
constituídos pela confluência simultânea das dimensões jurídica, política e pelas práticas
daqueles que instituem esses espaços. São construções em que confligem os regimes de
propriedade, em que são contestadas e reafirmadas autoridades em relação às formas e
possibilidades de acesso e regulação dos recursos naturais. Mais que tudo, está em questão a
legitimidade sobre a ordenação e domínio do espaço.
Little chama de “territorialidade” o “esforço coletivo de um grupo social para ocupar,
usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-a assim em seu ‘território’ ou ‘homeland’.” (LITTLE, 2002, p.3) Assim, estão
em cena, no universo das RPPNs, distintas condutas de territorialidade, em que grupos
sociais, instituições, indivíduos buscam expressar, através de suas particularidades
socioculturais, como compreendem e defendem os usos sociais e as formas de proteção dos
territórios representados pelas RPPNs.
Observa-se como, ao se tornar “guardião”, através da criação da RPPN, o “dono” da
propriedade amplia o seu poder e ganha legitimidade para interferir não apenas nos seus
domínios, mas também nas terras vizinhas. É curioso como se coloca em risco o “direito de
propriedade” e a liberdade de ação de outrem (o vizinho) com o propósito de assegurar o
“direito de posse” sobre a RPPN.
2.6 “RPPNs reais”, “RPPNs fajutinhas”, ou “o que faz a RPPN, uma RPPN”?
Embora eu vá, no próximo capítulo, discutir mais detidamente sobre como percebo a
instauração de circuitos dadivosos na criação de RPPNs e como o paradigma da dádiva é
fundamental para a compreensão do discurso Rppnista, gostaria de já adiantar algumas
questões.
69
Podemos observar que a “espontaneidade” e o “desinteresse” são noções-chave nas
disputas que envolvem a construção do conceito de RPPN, a comprovação da legitimidade e
mesmo “autenticidade” dessas reservas como “patrimônio da humanidade”.
Para a advogada Sônia Wiedmann, “a mola propulsora, a fonte geradora da RPPN é a
vontade do proprietário de proteger.” A criação da reserva deve estar alicerçada na vontade do
proprietário rural, no seu próprio desejo e não na obediência a alguma condição imposta pela
administração pública:
Partindo do princípio da livre iniciativa, defendido no capítulo constitucional dos Direitos e
Garantias Individuais (art. 5o), o proprietário, de sua livre e espontânea vontade, sem
submeter-se a nenhuma pressão ou outro motivo maior do que o “animus” de proteger,
destina sua propriedade, ou parte dela, à preservação ambiental, voluntariamente. Opera-se
aqui, o engajamento dos cidadãos no processo de conservação, não somente com ações, mas,
destinando, ad perpetum parte de seu patrimônio imobiliário a esta finalidade
(WIEDMANN, 2004, p.7).
É possível se dizer que a “premissa da espontaneidade” no reconhecimento da RPPN
fundamenta a normatização dessas unidades de conservação. De acordo com o SNUC é ilegal
criar reservas privadas como compensação de dano ambiental17 nos processos de
licenciamento de empreendimentos que causam impacto sobre o meio ambiente.
Sônia Wiedmann (2008) acredita que se um empreendedor se vê obrigado a criar uma
RPPN, o que comprometeria a premissa da espontaneidade, a reserva se torna inválida:
Ele não pode ser obrigado por nenhum motivo e se assim for, a RPPN é nula, de pleno direito.
RPPN não é moeda de troca, sabe.
O já referido funcionário do IBAMA, Lúcio Artur, considera que se cria um problema
para a “sustentabilidade das RPPNs a longo prazo” quando se submete uma empresa a
instituir uma unidade de conservação privada, como medida mitigatória para danos
ambientais. É o que argumenta ao afirmar que nem todas as empresas que criaram RPPNs
com este fim assumiram com responsabilidade essas reservas. Algumas, inclusive,
posteriormente, se utilizaram do questionamento dessa obrigatoriedade como base legal para a
anulação da RPPN.
17 Como medida de compensação ambiental o SNUC prevê o pagamento correspondente a, no mínimo, 0,5% do valor do
empreendimento em: (1) regularização fundiária e demarcação das terras; (2) elaboração, revisão ou implantação de Plano de
Manejo; (3) aquisição de bens e serviços necessários à implantação, gestão, monitoramento e proteção da unidade,
compreendendo sua área de amortecimento; (4) desenvolvimento de estudos necessários à criação de nova unidade de
conservação; (5) desenvolvimento de pesquisas necessárias para o manejo da unidade de conservação e área de
amortecimento. (BRASIL, 2002).
70
A decisão de proibir a criação de RPPNs como medida compensatória foi um processo
repleto de embates, como afirma Sônia Wiedmann :
Eu vi que a coisa tinha que ser muito cuidadosa. Extremamente cuidadosa pra ser feita, sabe?
Então escrevemos uma portaria interna do IBAMA de quem criava, porque criava, o que era
importante ali. Aí entra mil interfaces, como... e a reserva legal? E as Áreas de Preservação
Permanente? Como é que fica isso dentro de uma reserva? Superpõe? As perguntas eram
centenas. Mas a minha grande preocupação é que começaram a aparecer os grandes
problemas. Por exemplo, governos estaduais, secretaria de Meio ambiente, queriam a RPPN
como compensação ambiental de danos. Minas Gerais fez isso. Eu entrei em parafuso e falei,
aquelas mineradoras de Minas todas, arrasando com o estado, aí pega um pedacinho delas,
que elas compraram, faz uma RPPN bem fajutinha e pronto! Pode furar o buraco que for,
pode tirar o minério que for e tá a medida compensatória. Foi aí que eu debati pesado em cima
disso. Olha, foi uma luta, viu? Uma luta enorme (WIEDMANN , 2008).
De acordo com Sônia Wiedmann, o órgão ambiental de Minas Gerais, o IEF, indicava
nos processos de licenciamento ambiental, a criação de RPPNs como medida compensatória.
Mas até hoje, segundo o depoimento de um funcionário do IEF, ainda existe essa prática no
estado; os processos de licenciamento ambiental e as formas de mitigação dos danos são
analisados caso a caso.
Comparando o número de RPPNs criadas por empresas nos estados observa-se que o
estado de Minas Gerais lidera o ranking, apresentando 53 reservas, seguido pelo Paraná, com
19. Nos demais estados o número de RPPNs de empresas é inferior a 10.
No gráfico abaixo se pode visualizar melhor o número de RPPNs de empresas nos
estados:
71
Figura 4
Fonte: CNRPPN, 2008.
Embora o IEF não admita a criação de RPPNs como medida mitigatória, observa-se
que a criação de RPPNs por empresas é amplamente apoiada pelo órgão ambiental do estado
de Minas Gerais.
Esta polêmica foi intensificada através de uma prática que tem sido adotada em Minas
Gerais pela FEAM (Fundação Estadual de Meio Ambiente)18 como compensação ambiental: a
criação e gestão de RPPNs por grandes condomínios que necessitam de licenças ambientais
para serem implantados. Um exemplo é a RPPN que foi criada como medida compensatória
pela mineradora Anglo Gold para o recém lançado condomínio Vale dos Cristais, em Nova
Lima, MG. O condomínio passaria a ser o proprietário e o responsável pela gestão da RPPN em
caráter permanente.
18 “A Feam tem por finalidade executar, no âmbito do Estado de Minas Gerais, a política de proteção, conservação e melhoria
da qualidade ambiental no que concerne à prevenção, à correção da poluição ou da degradação ambiental provocada pelas
atividades industriais, minerárias e de infra-estrutura, bem como promover e realizar estudos e pesquisas sobre a poluição e
qualidade do ar, da água e do solo (MINAS GERAIS, 2009).
72
Para Lúcio Artur, ao invés da empresa compensar a sociedade pelos danos ambientais
causados, na verdade, ela estaria sendo “premiada”. A reserva ambiental, que deveria ser
usufruída por todos estaria sendo controlada pelos moradores do condomínio:
O meio ambiente é de todos, não só dos donos das mineradoras, dos donos dos condomínios; é
de toda a população brasileira. Então, para eu compensar aquele impacto negativo eu tenho que
compensar toda a sociedade; essa área natural, essa unidade de conservação a ser criada, tem
que ser disponibilizada para toda a sociedade, ser pública e não particular; tem que estar dentro
do que foi proposto na lei (ARTUR, 2006).
O IBAMA, que nunca adotou e não pretende adotar tal mecanismo e que, ainda, tem
sido mais rígido nas exigências para que tais unidades de conservação sejam criadas, teve
bastante limitada a criação de RPPNs. Já, com relação às RPPNs reconhecidas pelo IEF, que
continua utilizando os mecanismos de criação de RPPNs como medida compensatória de
empreendimentos impactantes, a expansão tem sido mais significativa.
Agora, se formos comparar em Minas Gerais as reservas criadas pelo órgão federal, o
IBAMA e pelo estadual, o IEF, verificamos que o número de RPPNs deferidas pelo estado é
muito superior: 38, enquanto foram instituídas pela esfera federal apenas 15.
O gráfico a seguir evidencia essa afirmação:
Figura 5
Fonte: CNRPPN, 2008.
73
Na opinião de Maria Tereza Schmidt, proprietária de RPPN e ex-presidente da
Associação de Proprietários de RPPNs de Minas Gerais, o IBAMA tem sido extremamente
ineficiente no processo de reconhecimento de RPPNs. Em entrevista, realizada em 2007, ela
afirmou:
O IBAMA tem promessas e promessas de agilizar esse processo. Parece que agora tá andando
um pouco mais. Pra falar a verdade, eu não estou mais acompanhando o processo do IBAMA
porque eu me recuso a mandar qualquer processo de criação de RPPN pro IBAMA. E todos os
proprietários de Minas que se aproximaram, eu falei, “olha, vocês querem mandar pro IBAMA,
eu não recomendo mesmo”. Inclusive tirei algumas que estavam no IBAMA e foi graças a eu ter
tirado do IBAMA que elas foram aprovadas. Ave Lavrinha tava lá emperrada no IBAMA, uma
RPPN linda em Bocaina de Minas. Foi aprovada porque eu convenci a proprietária a mandar pro
IEF e tá lá aprovada. Os outros todos eu estou convencendo a tirar. Se mandaram pro IBAMA,
tirar do IBAMA e mandar pro IEF. Eu peguei e mandei a minha pro IEF e a coisa andou. Tava
parada. Em Minas eu acho que não faz sentido. Você tem um governo estadual que está todo...
tá toda hora reconhecendo RPPN, e tá assim, todo ligado. É um governo que acredita no
programa RPPN. Então, porque você vai perder tempo em mandar pra Brasília? Um governo
que não está preocupado com a questão ambiental. Não tá preocupado com RPPN. Tem técnicos
do IBAMA que são legais, que tão preocupados, gostam e tal. Mas em algum momento a coisa
emperra. A presidente [da associação de RPPNs] do Rio ainda tá tentando ver se deslancha
algumas, mas agora vai ter o programa do Rio, né? São Paulo vai ter o programa de São Paulo.
Cada vez mais a coisa vai sair de Brasília. Com esses programas que estão trazendo verbas,
sobretudo, pra projetos coletivos e projetos individuais, agora, por exemplo, uma coisa
interessante (SCHMIDT, 2008).
Diversos participantes da lista de discussão também acreditam que, para que haja a
efetiva descentralização no processo de reconhecimento de RPPNs seja necessário que os
estados criem legislações específicas, estabelecendo normas para a instituição de RPPNs em
seus limites territoriais. Ressalta-se, contudo, que essas regras devem estar em consonância
com a Lei do SNUC. Até o momento, 15 estados possuem uma legislação relativa às RPPNs,
quais sejam: Mato Grosso do Sul, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, Mato Grosso, Paraíba, Paraná, Tocantins, Alagoas, Espírito Santo, São Paulo,
Amazonas e Bahia (WIEDMANN, 2007).
Sônia Wiedmann também não acredita que o IBAMA e o Poder Público no nível
federal, de maneira geral, estejam cumprindo adequadamente o seu papel no que se refere à
proteção ambiental. E vai mais longe ainda que Maria Tereza, ao dizer que, de fato, é a
sociedade civil, na figura das ONGs e associações que devem assumir a frente na criação das
reservas, de modo, que o Estado participe cada vez menos desse processo:
Então, o que é importante agora, no momento, tendo em vista todo esse cenário político que nós
temos, que realmente a propriedade privada como reserva, como um lugar de conservação não
encontra eco no governo... não encontra. Pouquíssimo. Se não são as ONGs batalhando para
conseguir recursos, pra implementar os programas e se não são as associações impondo e a
gente lá dentro do IBAMA e a gente correndo atrás, não existe uma política de governo pras
RPPNs. O governo federal não tem uma política. Não tem. Então, isso é muito grave. Então a
minha esperança é o fortalecimento das associações, até que realmente os estados também
assumam. Por isso que eu quis que isso fosse para os estados e lutei por isso. Porque eu vi o
descompromisso do poder público federal com as RPPNs. Isso foi muito flagrante, todo mundo
viu isso. Então, uma vez que não tem esse engajamento forte, não tem uma política, o que tem?
74
Os proprietários, as associações, as ONGs vão lá e pedem um recurso para um congresso, eles
dão aquele recursinho e pronto. Mas não tem uma política. Não tem mesmo! Então isso precisa
muito ser implementado pelos governos estaduais e, sobretudo, a nível das associações. Eu não
vejo um futuro dentro do órgão ambiental federal pras RPPNs. A não ser que mude
completamente as diretrizes, a diretiva. Mas não está no ideário político deles. O próprio decreto
não dá muitas atribuições ao poder público. Dá muito mais atribuições ao proprietário. Então
você vê que isso é uma coisa que é do proprietário. Então o importante é que eles se fortaleçam.
Mesmo porque eu acho que esse engajamento de reservas privadas, é interessante, não tem
muita ligação com o poder público. É uma coisa fora do poder público. É uma tendência da
própria RPPN (WIEDMANN , 2008).
Segundo Costa, a inoperância do IBAMA, no que se refere ao reconhecimento das
RPPNs e à falta de uma política mais sistematizada, conforme foi dito por Sônia Wiedmann,
pode ser percebida através da extinção do Programa de RPPNs:
O incipiente Programa de RPPN que existia no IBAMA foi excluído antes mesmo de ser
efetivamente reconhecido pelo órgão. Embora apresentasse problemas operacionais e
gerenciais, o programa, além de ser uma instância para obtenção de informações e
acompanhamento dos processos, garantia a existência de pessoal dedicado especificamente às
RPPNs, dando um tratamento específico para essas reservas dentro do órgão.
Uma das atividades mais interessantes do programa era a realização de reuniões anuais de
capacitação, envolvendo a equipe do programa em Brasília, os técnicos alocados nas
gerências regionais do IBAMA de cada estado, representantes das associações de
proprietários e representantes das associações de proprietários e representantes de ONGs que
apoiavam as RPPNs. Essas reuniões sem dúvida foram de extrema importância para fortalecer
a figura da RPPN não só no IBAMA, mas em todo o país. Com o fim do programa, os
proprietários ficaram sem um interlocutor que pudesse o apoio que o Decreto no 1.922/96
previa (COSTA, 2007, p. 21).
Embora o número de RPPNs criadas pelas esferas administrativas federal e estadual
seja um critério fundamental para os Rppnistas avaliarem a eficiência do Poder Público na
proteção ambiental do país, uma avaliação sobre essa questão de cunho qualitativo tem se
processado concomitantemente. Diversos Rppnistas acreditam que não basta criar RPPNs, é
preciso criar unidades de conservação “autênticas” ou “reais”. A seguir tentarei demonstrar
duas percepções contrastantes, no que se refere aos parâmetros considerados relevantes para se
identificar a “autenticidade” das RPPNs
2.6.1 Tamanho é documento?
Embora se tenha atribuído às RPPNs um “papel inquestionável na conservação
ambiental” (FUNDAÇÃO BIODIVERSITAS, 1996) a efetividade dessas áreas na proteção da
biodiversidade tem sido discutida, quando se fala na sua dimensão territorial e no seu grau de
conectividade com outros remanescentes florestais. Na verdade, verifica-se que, lado a lado a
um discurso de estímulo à criação de RPPNs e de reconhecimento desse esforço por parte de
proprietários rurais, há um “ceticismo científico” sobre a real importância dessas áreas na
75
proteção ambiental, na medida em que estas, não necessariamente, estariam atendendo a
critérios considerados essenciais pelas ciências naturais.
De acordo com Primack e Rodrigues, a biologia da conservação tem alertado sobre a
existência de questões-chave que devem ser consideradas na criação de reservas naturais,
quais sejam:
1. Qual a extensão que reservas naturais devem ter para proteger as espécies
2. É melhor criar uma única reserva ou muitas de tamanho menor?
3. Quantos espécimes de uma espécie ameaçada devem ser protegidos em uma reserva
para evitar a extinção?
4. Que forma deveria ter uma reserva natural?
5. Quando várias reservas são criadas, elas deveriam estar próximas uma das outras ou
bem distantes e deveriam ser isoladas ou interligadas por corredores? (PRIMACK e
RODRIGUES, 2001, p, 225).
Segundo a biologia da conservação, uma das principais causas de perda da
biodiversidade é a “fragmentação dos habitats19”. Os fragmentos florestais seriam geralmente
isolados uns dos outros por uma “paisagem altamente modificada ou degradada” (PRIMACK
e RODRIGUES, 2001, p. 95). Assim, seria necessário se criarem “corredores ecológicos20
entre esses remanescentes, de forma a possibilitar o livre trânsito de animais e a dispersão de
sementes, garantindo o fluxo de gens entre as espécies da fauna e flora. Ao serem
estabelecidas em áreas próximas a UCs públicas, as RPPNs deveriam servir como corredores
ecológicos, a fim de aumentar o fluxo de espécies entre as áreas protegidas.
Uma antiga controvérsia se refere ao tamanho das unidades de conservação. O que
seria melhor, criar uma grande reserva natural ou várias reservas pequenas? Para Primack e
Rodrigues (2001), a decisão sobre o tamanho das reservas depende do grupo de espécies que
está sendo considerado. Grandes reservas são mais adequadas para manter muitas espécies,
em razão do tamanho das populações de animais e da maior variedade de habitats. Já as
pequenas reservas teriam seu valor, principalmente para a proteção da flora. Também se deve
considerar que pequenos remanescentes podem estar situados em áreas estratégicas de
interligação de fragmentos florestais.
19 “A fragmentação dos habitats é o processo pelo qual uma grande e contínua área de habitat é tanto reduzida em sua área,
quanto dividida em dois ou mais fragmentos. Quando o habitat é destruído, fragmentos de habitat geralmente são deixados
para trás” (PRIMACK e RODRIGUES, 2001, p. 95).
20 Corredores ecológicos são áreas que conectam remanescentes florestais, de forma a possibilitar o livre trânsito de animais e
a dispersão de sementes, garantindo o fluxo de gens entre as espécies da fauna e flora. A aplicação deste conceito, segundo a
biologia da conservação, é de grande importância para a manutenção da biodiversidade, já que a grande maioria dos
remanescentes estaria fragmentada, sendo necessária, desse modo, a criação de corredores entre essas “ilhas de
biodiversidade” (PRIMACK e RODRIGUES, 2001).
76
Sob esta perspectiva, as RPPNs deveriam ser pensadas de maneira estratégica, como
forma de estabelecer conexões entre os fragmentos de ecossistemas, principalmente
interligando as unidades de conservação públicas e outras RPPNs, sob pena de não serem
significativas em termos de proteção da biodiversidade (FUNDAÇÃO BIODIVERSITAS,
1996).
Embora não haja dados sistematizados acerca das propriedades rurais onde foram
criadas RPPNs, mas apenas em relação ao tamanho das reservas, arrisco dizer, que em sua
maioria as RPPNs são criadas em pequenas e médias propriedades rurais. Logo, não há como
se esperar muitas RPPNs de grande dimensão.
No gráfico a seguir observa-se que a maioria das RPPNs possui entre 10 e 50 hectares.
Figura 6
Fonte: Costa, 2007.
Para Haroldo Neves, atual responsável pela coordenadoria de unidades de conservação
do Instituto Estadual de Florestas (IEF) de Minas Gerais, com quem foi realizada entrevista
77
em 2006, o fato de serem grandes ou pequenas não é o mais importante na avaliação das áreas
a serem escolhidas para se tornarem uma RPPN:
Devem ser áreas de relevância, consideradas como de grande importância para a proteção da
biodiversidade; devem contribuir para a conservação de ecossistemas frágeis ou ameaçados
através, por exemplo, da formação de corredores naturais entre paisagens isoladas de um
determinado ecossistema; devem possuir características ambientais que justifiquem ações de
recuperação, se necessário (NEVES, 2006).
Já para Lúcio Artur, representante do IBAMA, é necessário se limitar a criação de
RPPNs de pequeno porte:
Hoje, em Minas, há o predomínio das pequenas RPPNs. Se o proprietário quer preservar uma
pequena área, não tem problema; é ótimo. Mas quando se coloca todo aquele esforço de trabalho
para se reconhecer essa pequena área como reserva, às vezes não compensa. Há também todo
um esforço de trabalho dos órgãos oficiais para avaliar sua criação e manter uma equipe lá para
fiscalizar. O que se pensa hoje é democratizar mais esse processo, descentralizando as
responsabilidades. A federação passaria a cuidar das grandes RPPNs, e as médias e pequenas
ficariam por conta dos estados e dos municípios; estes, aliás, ainda não estão criando suas
RPPNs; estados e municípios estão mais capacitados para isso (ARTUR, 2006).
Grandes ou pequenas, localizadas em áreas ecologicamente estratégicas ou não, não há
um consenso sobre o que, de fato, deve ser considerado para se designar uma área como
RPPN. Verifica-se, inclusive, que estes critérios se contrapõem ao “papel pedagógico”
atribuído a estas reservas, por alguns Rppnistas, como promotora de uma “consciência
ambiental”. Dessa forma, por menor que fosse a “efetividade ecológica” das RPPNs, no que
se refere à sua capacidade de proteção da biodiversidade, ainda assim, se justificaria criar
essas reservas, como uma forma de estimular o interesse da sociedade pela causa
conservacionista.
Deve-se considerar também, principalmente quando falamos dos indivíduos que criam
RPPNs e não de ONGs ambientalistas ou empresas, que a decisão sobre onde criar a reserva
é, muitas vezes, tomada com base em uma lógica distinta: não se escolhe a área; se é
escolhido por ela. Essa relação mágica entre o indivíduo e suas terras, que antropomorfiza a
natureza, seja através da intercessão de entidades espirituais, da “energia cósmica” que aí
circula e mesmo do afeto que se tem à terra será discutido no capítulo 5.
2.6.2 Identificando “interesses escusos”
A integridade moral e o altruísmo são características consideradas por muitos
Rppnistas e por funcionários dos órgãos ambientais essenciais ao proprietário dessas reservas.
78
Lúcio Artur, funcionário do IBAMA, referindo-se ao georreferenciamento e à
realização das vistorias, afirma que o rigor no processo de reconhecimento das RPPNs, além
de possibilitar que a unidade de conservação a ser criada fosse melhor avaliada, de forma a
alcançar maiores “benefícios ecológicos”, seria uma forma de revelar “interesses escusos”,
que se encontram “por detrás da decisão de se criar uma RPPN”. Lúcio Artur acredita que:
Embora a grande maioria esteja com o intuito da preservação ambiental, há casos comprovados
de que os interesses foram meramente financeiros ou políticos. Já existem casos de RPPNs
criadas para impedir a implantação de projetos públicos. Ia passar uma avenida, uma estrada do
governo federal, por exemplo, e o cara criava uma RPPN para impedir a obra que ia passar no
quintal da casa dele. Então, aí está a necessidade de se avaliar mais e colocar a consulta pública
por que, muitas vezes, conservar um pedaço de terra não é uma decisão tão de boa fé (ARTUR,
2006).
As intenções, a “boa ou má fé”, da qual fala Lúcio Artur, devem ser levadas em conta.
Até mesmo, porque é através delas que se poderia identificar o grau de “autenticidade” da
RPPN.
Destaca-se que há tentativas de se mensurar este “grau de autenticidade” das RPPNs
através do laudo de vistoria realizado pelos órgãos ambientais. Este seria medido pelos reais
interesses do proprietário através de algumas questões que constam no documento a ser
preenchido pelo técnico que visita a área. São elas:
1. Os limites da RPPN estão corretamente georreferenciados?
2. A área da RPPN incide sobre unidades de conservação?
3. Existe proposta em andamento ou estudos para criação de unidades de conservação
públicas que coincide com a área da reserva em análise?
4. Existe algum empreendimento ou obra pública planejada ou em execução que tem
interface com a RPPN proposta? (BRASIL, 2009b).
Ao responder essas perguntas o técnico pode obter algumas pistas para descobrir se na
realidade o proprietário da área quer é evitar a desapropriação, criando a reserva apenas como
um subterfúgio. Se isso for constatado, segundo Lúcio Artur, o processo de reconhecimento
da reserva é imediatamente indeferido.
A posição do IEF de Minas Gerais, frente a essa maior rigidez no processo de criação
das RPPNs, tem sido muito diferente da adotada pelo IBAMA. A determinação do
georreferenciamento para o reconhecimento de uma RPPN, por exemplo, ainda não foi
adotada pela instituição. Segundo Haroldo Neves “o IEF não tem apresentado estas exigências
para os interessados em criar RPPNs”. O IEF estaria interessado na disseminação de RPPNs,
de forma a potencializar seu papel no sistema de preservação criado pelo SNUC. Assim, só
79
estaria indeferindo projetos para a criação de RPPNs em áreas com “baixa relevância
ecológica”.
Para Carlos Gonçalves aqueles que se utilizassem da criação da reserva visando
alcançar benefícios próprios não estariam instituindo RPPNs de verdade, e sim “fictícias”.
Eu me pergunto quantos não estariam interessados em transformar suas terras numa RPPN
fictícia só para não pagar impostos ou ainda solicitar verbas, auxílios e outras formas de
patrocínios (quem tem terras usualmente tem um bom lobby no governo) e que no final das
contas não reverteriam em benefício da própria ecologia? (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2008m).
Observa-se que as “reais” RPPNs seriam aquelas cujos proprietários tivessem nobres
interesses e intenções.
Para Sônia Wiedmann, lidar com “pessoas mal intencionadas” foi uma das grandes
dificuldades no processo de formalização jurídica da categoria RPPN:
Criamos quatro reservas particulares assim, em três meses. E de repente a gente recebeu uma
denúncia, uma delas era no interior de São Paulo. Coisa de 6 meses depois que nós criamos, a
gente recebeu uma denúncia do departamento, na época chamava... a empresa que construía
estrada, grandes estradas no estado de São Paulo. Enfim, tinha...que essa reserva de São Paulo
tinha sido mal intencionada. Mas foi assim uma ducha fria. Eu tive um frio na barriga: o que
eu fiz? Nós fomos lá, peguei o avião, o IBAMA mandou a gente lá na época, já era IBAMA, o
IBAMA foi criado em 89. Aí nós vimos que o cara queria justamente criar uma reserva pra
evitar que essa empresa de construção, que já estava com um projeto de desapropriação e era
uma estrada importantíssima dentro do plano viário de São Paulo. O cara tinha sabe o que?
Não era uma RPPN, era uma granja. O cara enganou todo mundo. A vistoria foi enganada,
enfim uma coisa assim. Aí nós fomos para lá e eu falei: a gente tem que acabar logo com esse
decreto, tem que revogar isso, não vai dar certo. Sabe, as pessoas não entenderam o que é isso
(WIEDMANN , 2008).
Para Carlos Gonçalves, não basta se criarem RPPNs; é preciso que as RPPNs criadas
sejam fruto da “boa intenção” dos seus proprietários. Ele mostra sua posição ao responder um
e-mail em que Jussara Valadares, gerente do Programa RPPN do IBAMA em 2000, propõe
que seja instituída uma meta de criação de 5.000 RPPNs até o ano de 2010:
Como, infelizmente estamos num país onde o oportunismo corre solto teremos de ter muito
cuidado para que as RPPNs não fujam a um controle. Não será aumentando o número de
reservas particulares que vamos conscientizar nosso povo e nosso governo ou salvar o país da
depredação que está sofrendo. Concordo que é importante haver uma “massa crítica” inicial,
mas deveremos ter cuidado para não criarmos um número grande, sem real significado
(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008m).
A fim de se evitar que fossem instituídas RPPNs “sem real significado” Carlos propõe:
Acredito que devamos ser maduros e ao invés de passarmos diretamente para um aumento do
número de reservas, como se números, no caso, fossem um melhor índice de conscientização
ou de trabalho efetivo, passemos, isto sim, a dar inicialmente ênfase a um monitoramento de
todas as reservas já existentes e aumentemos o número de reservas apenas quando houver
80
possibilidade de um monitoramento racional, contínuo, cuidadoso e tecnicamente adequado
(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008m).
Segundo Jussara Valadares, já que não é possível se ter acesso às intenções dos
proprietários, o importante é controlar suas ações. Isso já pode ser feito, através do
aprimoramento dos instrumentos legais:
Quanto a pessoas inescrupulosas criarem RPPNs não dá para adivinhar. No entanto, ele vai
estar contribuindo para a proteção ambiental e as atividades permitidas são restritas. Não é
como antigamente que se descaracterizasse a área ela era revogada sem nada acontecer com o
infrator. Agora é diferente. A reserva não é mais revogada e o infrator responderá
criminalmente por seus atos contrários à reserva (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs,
2008n).
Já Antônio Vilaça acredita que a criação de RPPNs deve ser “estimulada de todas as
formas” e concorda com Jussara Valadares que os instrumentos de controle do Estado, bem
como a “vigilância” da sociedade são instrumentos cerceadores das ações de tais “pessoas
inescrupulosas”:
Fico pensando e tenho uma dúvida: o IBAMA é o único órgão autorizado a oficializar
RPPNs? Sabemos que o IBAMA tem passado por transformações e que poderá não contar
com quadro suficiente de funcionários para o cumprimento de todas suas tarefas. Não
poderiam as Secretarias Estaduais e Municipais de Meio Ambiente também desempenharem
esta função? Quanto a alguns poderem usufruir dos benefícios das RPPNs sem criá-las de
fato, poderá acontecer inevitavelmente, mas acho que a existência desta possibilidade não
deve desencorajar nenhuma ação visando sua criação. Como acontece em todo lugar onde há
possibilidade de corrupção e irregularidades, é necessário desenvolver mecanismos de
controle, de preferências os chamados mecanismos sociais: a própria comunidade, imprensa,
etc. As coordenações estaduais de RPPNs podem fazer vistorias periódicas nas RPPNs
cadastradas e fiscalizar se estão constituídas realmente como tal. Uma estratégia que tem sido
usada é utilizar pessoas da comunidade interessadas na preservação que moram na área e
"vigiam" a unidade, comunicando qualquer tipo de agressão por ela sofrida. Por fim, creio que
não está distante o dia em que poderemos entrar na Internet e abrir a imagem da última
passagem do satélite e verificar como está determinada área. Tecnologia para isto já existe,
basta a vontade política de tornar isto realidade (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs,
2008o).
De acordo com Carlos Gonçalves, corria-se o risco de que, com a criação de “RPPNs
fajutas” ou “fictícias”, a imagem do Rppnista fosse maculada, que este perdesse sua
“reputação e legitimidade” (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008m).
“Pessoas de bem”, “guardiões das águas, dos bichos”, “visionários”, tais expressões
estão associadas às idéias de integridade moral, altruísmo e abnegação, que são recorrentes no
discurso destes atores. Observa-se, inclusive uma preocupação para não ferir essa imagem,
construída a partir de um decoro, de um comportamento de correção moral sobre o qual seria
necessário zelar.
81
Observa-se, portanto que as RPPNs estão muito longe de serem espaços que possam
ser definidos apenas sob seus aspectos materiais e muito menos, sob uma categoria jurídica.
As RPPNs são o resultado de relações, produtos históricos de processos sociais e políticos.
A frase a seguir é bastante elucidativa:
Há um distanciamento enorme de vivências no que é uma RPPN para um burocrata e um
proprietário de uma reserva (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006b).
Esta fala nos sinaliza para o fato de que convive no universo das RPPNs uma
multiplicidade de sentidos sobre o que de fato é ou deve ser uma RPPN e que esta confluência
de sentidos resulta em várias formas de embate e disputas.
Gostaria de concluir ressaltando que no esforço de normatizar e de re-configurar a
categoria RPPN o Rppnista constrói-se a si próprio enquanto portador de uma identidade
social através das relações que estabelece com seus adversários e aliados.
No capítulo 3 irei me valer da lista de discussão e de outros depoimentos obtidos
através de entrevistas e de publicações para evidenciar como a idéia positiva de “natureza” e
uma compreensão objetificadora das RPPNs, que cria uma aparente homogeneidade na
Comunidade Rppnista, caem por terra diante da dinâmica da vida social.
82
3 A NATUREZA DOS RPPNISTAS
Neste capítulo proponho-me a refletir sobre o pensamento rppnista acerca da relação
entre natureza e cultura. Busco desnaturalizar as reificadas noções de “biodiversidade” e
“natureza”, através das histórias relatadas pelos Rppnistas sobre as suas experiências diretas
com o “mundo natural”, bem como procuro encontrar no discurso naturalista os vestígios da
agência humana e de uma prática política no processo de transformação das “coisas” e “seres
da natureza” em signos. Revendo os limites estabelecidos pelo pensamento ocidental
moderno entre as esferas humana e natural, no micro-cosmos dos Rppnistas, pretendo
demonstrar como, mesmo sem ser manipulada, a “natureza” e seus componentes são
categorias sociais que podem e devem ser analisados na sua relação com os homens e por
meio deles.
3.1 Desnaturalizando a “biodiversidade”
“Biodiversidade” é a palavra-chave quando se trata de unidades de conservação e em
especial, de RPPNs. Com efeito, a variedade de espécimes da fauna e flora tem sido apontada
como um dos principais critérios para a seleção e instituição de áreas protegidas.
Observa-se, por exemplo, que a concentração de projetos conservacionistas na Mata
Atlântica tem como o argumento central a grande biodiversidade aí encontrada.
Recentemente, inclusive, foi publicada a Lei da Mata Atlântica, que dispõe sobre a proteção
dos remanescentes desse bioma. Após tramitar durante 14 anos no Congresso, a aprovação da
lei foi considerada como uma grande vitória pelos conservacionistas em geral.
Da mesma forma, um importante programa de apoio às RPPNs desenvolvido pelas
ONGs Conservação Internacional, Fundação SOS Mata Atlântica e The Nature Conservancy,
tem se concentrado em dar suporte à criação e manutenção de reservas privadas no bioma
Mata Atlântica. Segundo o edital de seleção de projetos de 2009, o Programa Aliança para a
Conservação da Mata Atlântica justifica-se por atuar em “um dos maiores repositórios de
biodiversidade e um dos mais importantes e mais ameaçados biomas do mundo”.
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De acordo com a Convenção Internacional sobre a Diversidade Biológica, documento
elaborado na Conferência do Rio para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, do qual o Brasil
é signatário, a biodiversidade é definida como “a variabilidade de organismos vivos de todas
as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros
ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda
a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. (BRASIL, 2009a).”
Percebe-se que a noção de biodiversidade tem sido empregada em referência à idéia de
“natureza” como dimensão em que se encontram as formas de vida que escapam da esfera do
social e que se opõem às obras humanas.
Todavia, o conceito de biodiversidade, que surge nos anos 80 com os estudos de
ecologia, implica, necessariamente, no desenvolvimento de uma taxonomia que exige a
manipulação direta do homem sobre o elemento “natural”. Organizar, hierarquizar, relacionar
as espécies “naturais”; com a noção de biodiversidade consolidam-se as práticas nos estudos
da natureza que buscam mais que descrever e listar as espécies compreender “as interações e
o processos que fazem os organismos, as populações e os ecossistemas preservarem sua
estrutura e funcionarem em conjunto” (LEWINSOHN, 2009, p.4).
Conforme nos esclarece Latour (2001), ao transpor os elementos da natureza para os
laboratórios, ou mesmo, ao estudá-los no campo, o pesquisador transmuta a “natureza” em
objeto, fato científico. Realizando as operações de deslocamento, separação, reunião,
redistribuição, classificação e conceituação, inevitavelmente, o cientista altera o estado das
plantas e animais que estuda. Tudo isso porque, como afirma Latour: “o conhecimento deriva
desses movimentos, não da mera contemplação da floresta” (LATOUR, 2001, p. 55).
No caso das RPPNs, a apreensão e a conseqüente transformação da “natureza” em
“biodiversidade” implicam não apenas na utilização dos princípios classificatórios das
ciências naturais, mas também na correlação dos sujeitos com o mundo natural e no
estabelecimento de associações que informam as trajetórias dos indivíduos e seus projetos
pessoais. Assim, conforme veremos a seguir, o discurso dos Rppnistas sobre a natureza é
transversalmente construído sobre referências da ecologia e da biologia e pelas histórias
individuais, através das quais os sujeitos puderam ler o “mundo natural”.
Percebe-se, dessa forma, um discurso que oscila ora nas referências a uma “natureza
genérica”, descrita através de códigos estabelecidos pela ciência, ora na interpretação de uma
84
“natureza” integrada ao cotidiano, ou pelo menos esporadicamente experimentada, visível e
imediata.
Uma primeira constatação: os “Amantes da Natureza”, como se autodenominam os
proprietários de RPPNs, não “amam” todos os animais e plantas da mesma forma. Os seres
identificados como espécies “endêmicas”, “nativas” e “ameaçadas de extinção” são aqueles
em relação aos quais se tem maior simpatia.
Da mesma forma, nem todos os seres são bem-vindos às unidades de conservação.
Acredita-se que aqueles considerados “invasores” ou “exóticos”, que pertenceriam
originalmente a outro “habitat”, acabariam por se reproduzir e expulsar as espécies “nativas”,
dominando todo o seu espaço.
Este pressuposto tem orientado tanto os trabalhos de proteção das “matas nativas”
quanto a recomposição florestal de áreas degradadas. Trata-se de manter distantes os animais
e plantas exóticas dos remanescentes florestais “originais” e de retirá-los ou não deixá-los
“invadir” as áreas que se quer recuperar.
Tentarei agora refletir sobre como alguns bichos, plantas e (por que não?) homens são
dispostos nas esferas natural e social. Através dos depoimentos dos Rppnistas pretendo
discutir sobre como são erguidas neste campo social as fronteiras entre os domínios da
“natureza” e do “humano” e como estas são experimentadas pelos sujeitos da pesquisa.
3.2 Bichos
Bois
Os bois são vistos com ressalvas pelos Rppnistas. Embora nas médias e grandes
propriedades onde existem RPPNs seja comum se encontrar rebanhos bovinos, estes animais
têm sido considerados os grandes vilões da conservação ambiental. Não apenas em razão do
corte de vegetação, necessário para a constituição das pastagens, mas também pela emissão do
gás metano, liberado pelas fezes desses animais, o que colaboraria para o aquecimento global.
Da mesma forma, o pisoteio do gado vem sendo descrito como uma das dificuldades para a
regeneração das matas e como uma das causas de erosão do solo.
85
Os pastos são o extremo oposto das matas. A terra “limpa”, a substituição das árvores
pelo capim braquiara afrontam a exuberância da floresta, muito apreciada pelos Rppnistas.
Estes, na grande maioria das vezes, escolheram suas propriedades atraídos por seus atributos
naturais e beleza cênica. É o que se observa nos depoimentos de proprietários de RPPNs que
se seguem:
Comprei essa área em 1992, tinha tudo o que sempre sonhei: nascente, mangue, estuário, mata
primária e vista panorâmica para Ilhéus (p.26) .
Fomos envolvidos pela exuberância da floresta, floresta seguida de mais floresta. Naquela
época Itacaré era só uma cidadezinha dentro da mata. Quando chegamos à propriedade eu
disse na hora: é essa! (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007, p. 95)
Joaquim Venceslau, proprietário da RPPN Fazenda Bela Aurora, que vinha criando
gado na sua fazenda, após um levantamento do potencial de conservação e visitação da sua
RPPN, realizado pela ONG Valor Natural, já pensa em abandonar a criação de gado nas
adjacências de sua reserva. Os técnicos da ONG constataram a diminuição da disponibilidade
de água e a falta de cobertura vegetal ao longo do rio, devido ao pisoteio do gado:
[Os pesquisadores] trouxeram fotos que me deixaram impressionado com o processo de
erosão provocado por bovinos na fazenda. Daqui pra frente terei que limitar a área do gado e
pensar num programa gradual de revegetação (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA,
2007).
Já para o Rppnista Sandro Lima é possível se conciliar criação de bois e a prática
conservacionista; pasto e floresta podem conviver sem serem excludentes. No entanto, Sandro
cria bois não como uma atividade econômica. Ele acredita que, sendo pecuarista e Rppnista
ao mesmo tempo, poderia mais facilmente se aproximar dos produtores rurais de sua região e,
assim, ganhar adeptos para a causa das RPPNs:
No nosso caso, em particular, como é uma região voltada à pecuária, embora de baixa
produtividade... eu também crio boi, eu também tenho pasto, eu também tenho braquiara, eu
também planto. Mas o que eu procuro mostrar é que pecuária e preservação não são
necessariamente excludentes. Você pode ter um pedaço de pasto e você pode ter um pedaço
de mata preservada. Por que? Inclusive o Novo Testamento já ensina isso. Jesus entrava na
casa de pecadores, ele tomava vinho, ele era uma pessoa simples, do povo. Se você fica
beijando árvore, não produz nada, é muito fácil um produtor dizer assim, fulano tá com o boi
na sombra, tem a sua renda lá no Rio de Janeiro, ele não precisa produzir, então é fácil pra ele
manter tudo de mato. Então é preciso que você se insira no contexto local, faça aquilo que
eles também fazem, mas que o faça com critério, que seja uma pessoa então acessível à
comunidade. Eu hoje, por exemplo lá, pertenço à diretoria do sindicato local, tenho inscrição
na cooperativa de leite, embora não esteja direcionando leite para lá. Tenho uma criação
muito pequena, mas tenho. Justamente pra não ficar caracterizado ou estigmatizado como
alguém que não tem compromisso com produção. Porque muitas vezes é isso que faz a
diferença. As pessoas, muitas vezes, que têm um alto nível de escolaridade, isso já dificulta o
acesso ao produtor, porque ele é uma pessoa de um outro nível, e sem qualquer prática
produtiva. Então cria uma separação que não é boa. O importante é mostrar que ele pode
continuar, o produtor local pode continuar dentro da sua atividade, vamos dizer assim,
vocacional da região, mas com critérios menos gravosos ao meio ambiente (LIMA, S., 2008).
86
A presença de gado bovino nas terras vizinhas a RPPNs tem sido um importante ponto
de conflito. O proprietário de RPPN Gilberto Dantas relata em sua entrevista como os
integrantes do assentamento vizinho a sua fazenda cortam a cerca que divide as terras para o
gado passar e realizam queimadas para criar novas pastagens em sua fazenda.
A relação entre degradação ambiental e as pastagens bovinas também é direcionada
para a esfera das preferências alimentares. Maria Tereza Schmidt, proprietária de RPPN,
afirmou na ocasião do seminário de Reservas Privadas, realizado em 2007, que estava
abstêmia da carne de boi. Dizia-se indignada com os danos ambientais causados por estes
animais e não queria contribuir com esta forma de degradação da natureza.
Pedro Miceli vai mais longe e afirma em entrevista que acredita que o problema
ambiental era, na realidade, um problema alimentar. Diz isso se referindo às monoculturas de
soja e à pecuária extensiva, que têm sido apontadas como grandes responsáveis pelo
desmatamento da Amazônia. Segundo Pedro, para reverter essa situação as pessoas deveriam
deixar de consumir carne de boi e derivados da soja.
Para Danilo Soares, proprietário de uma RPPN em Alto Paraíso de Goiás, além da
criação bovina ser extremamente impactante sobre o meio ambiente, também contribui para
agravar o problema da fome no Brasil. Em entrevista Danilo afirmou:
Então o que a gente tem hoje? Nós temos uma coisa chamada agronegócio. O que é o
agronegócio? Agronegócio faz o Brasil ser o maior exportador de carne bovina. Agora, como
é que um país faminto como esse exporta carne bovina, né? A pecuária é uma das atividades
agrícolas mais devastadoras do meio ambiente. Porque você tem que tirar a mata, tem que
derrubar a mata, tem que botar capim, que é um ser estranho. O capim que tem aqui,
braquiara, vem de fora do país, é estrangeiro. E como o gado... o sujeito põe dez cabeças de
gado, cinquenta cabeças de gado quando podia estar produzindo comida. E é pra fora. Está
produzindo pra fora.
A proprietária de RPPN, Regina Pacheco, relaciona a atividade da pecuária leiteira à
desagregação familiar que tem observado no município onde mora, Auiruoca, MG. De acordo
com Regina, o laticínio que havia em Aiuruoca foi transferido da cidade, mas manteve muitos
homens empregados. Estes passam a semana fora, só retornando a Aiuruoca nos fins de
semana. Regina atribui ao trabalho dos homens as brigas entre casais, as separações e o
distanciamento dos filhos. Para resolver essa questão, só mesmo criando uma nova alternativa
de trabalho.
Através das falas de Danilo e Regina percebe-se que a crítica à política econômica
brasileira e a identificação da família como valor maior, colaboram na construção de um
87
discurso ecológico. Dessa maneira, verifica-se como o olhar sobre a “natureza” e,
especificamente sobre os animais, neste caso, os bois, pode ser compreendido como um
prisma de leitura da vida social.
Cachorros
Maria Tereza Schmidt possui pelo menos uma dezena de cães em sua fazenda e eles
transitam livremente pela RPPN. Inclusive, os animais acompanham os visitantes em seus
passeios pelas matas.
Os cachorros também são utilizados para inibir a entrada de pessoas estranhas na
RPPN e nas fazendas. Segundo Luíza de Mendonça, uma das proprietárias da RPPN Água
Branca:
Na reserva tem cachorro. A gente cercou a casa, o pátio da casa porque entrou ladrão. Aí tem
cachorro, cachorro bravo. Eu morro de medo. Tem uns rotweilers. Isso aí deu uma intimidada
nas pessoas de entrarem na fazenda. Quem toma conta disso é esse rapaz que eu te falei. Ele
que olha os cachorros, que solta à noite (MENDONÇA, 2008).
Mas essa não é a conduta mais freqüente. Os cães domésticos são considerados
“animais invasores”, predadores da fauna silvestre, devendo ser mantidos à distância dessas
áreas.
João Marcelo Cunha, da Reserva Guainumbi, enviou uma mensagem para a lista de
discussão onde relatou que após expulsar os cachorros de sua reserva diversos outros animais,
que há muito não eram vistos por ali, reapareceram:
O que uma RPPN pode fazer para controlar cães e gatos invasores? Estou na fase de
legalização da documentação para criar uma RPPN, que sempre foi meu sonho.
Já recuperei com reflorestamento toda área que era pasto do antigo proprietário e doamos os
animais exóticos da área. Todos cães e gatos que achamos na região, castramos e levamos
para adoção na minha clínica, mas e os errantes e selvagens??? E os animais que são de
estimação de pessoas que moram, às vezes, a mais de 5 km de onde eles estão? Não tenho
muito problema com isso, mas a região tem... Só para terem uma idéia o governo, com auxílio
financeiro da Alemanha, conseguiu indenizar algumas áreas que já estavam desapropriadas
nos limites do parque estadual e os proprietários saíram com suas dúzias de cães. Um mês
após a saída dessas 10-15 famílias, um monte de mamíferos começou a aparecer na nossa
Reserva que faz divisa com essas propriedades, ou seja, estas áreas faziam um muro de
contenção dessa fauna devido aos cães. Hoje, estou tendo relatos de bandos de porcos-do-
mato que nunca tínhamos visto, pegadas de anta, cutias, que não apareciam na região há anos
e outros bichos... (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RRPNs, 2008p).
Pode-se dizer que os cães são extensões morais dos caçadores. A eles é atribuída,
muitas vezes, à semelhança dos seus donos, uma personalidade ardilosa, astuta.
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Compreendidos como exterminadores potenciais da fauna silvestre, em algumas ocasiões os
cães têm voltadas para si a indignação que os caçadores despertam entre os Rppnistas:
Se for necessário matar cachorro de caça, para impedir esta atividade na reserva, mataremos
quantos forem necessários, afinal são animais criados como predadores para destruir a fauna
(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006d).
Onças
As onças parecem despertar um sentimento ambíguo entre os Rppnistas. Por um lado
exercem um grande fascínio sobre estes, são motivo de orgulho; afinal a onça é um
importante “indicador” do grau de preservação da reserva. Porém as onças também
amedrontam e são vistas como um problema para os animais de criação e domésticos das
fazendas onde existem as RPPNs. Esse dilema transparece no depoimento abaixo de Luiz
Agnaldo, proprietário da RPPN Cafundó:
Onça teve muito. E hoje, para nossa felicidade como ambientalistas e infelicidade como
pecuaristas, tem uma onça-pintada habitando a fazenda. Digo infelicidade porque ela pega os
animais de criação nossos e dos vizinhos. Começou atacando animais silvestres e nós
adoramos: “nossa, tem onça, que beleza!” Depois pegou animais domésticos e achamos que
poderíamos absorver o prejuízo. Mas ela começou a extrapolar. Chamamos uma equipe de
pesquisadores do IBAMA, mas eles não ajudaram em nada; perguntaram se prendíamos o
gado, se tínhamos cerca elétrica e foram embora. Então, recebi uma carta deles dizendo que
iam tirá-la da fazenda. Questionei em que se baseavam e onde ficaria a onça, o que aumentou
a confusão. Falaram à imprensa que o proprietário era contra pegar o animal e a população
começou a ficar com medo de ser atacada. Queríamos que o IBAMA fizesse uma ponte entre
a gente e uma universidade, alguém com vontade de estudar um felino da Mata Atlântica. Só
queremos que vejam como ela se comporta na natureza para, aí sim, chegar à conclusão de se
aqui é o lugar dela. Nossa postura acaba sendo um ônus; certas pessoas até disseram que se a
onça pegasse alguém iam nos processar. Agora os culpados pela onça somos nós
(FUNDAÇÂO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
As onças são as vítimas dos caçadores, dos criadores de gado enfurecidos com a perda
de animais do rebanho; mas também são os algozes dos animais da fazenda e da vizinhança. É
tamanha a ambigüidade que se chega a colocar em dúvida se ela deve permanecer ou não na
RPPN.
Adelmo Sampaio, morador do condomínio onde se localiza a RPPN Rio dos Pilões,
em São Paulo também se aflige com a proximidade das onças. Diz ele;
É preciso pensar em como lidar com animais perigosos. Já constatamos a presença de onças,
cobras. Não podemos ignorar a proximidade entre os bichos e os moradores (FUNDAÇÃO
SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
89
Cobras
Das cobras, nem todos Rppnistas dizem ter medo. Mas observa-se que existe sempre
alguma forma de precaução para se evitar os ataques do animal. Botas de borracha de cano
alto, tornozeleiras de couro são indumentárias obrigatórias nas fazendas e são encontradas,
inclusive, em número suficiente para atender aos visitantes.
Segundo Rômulo Filho, proprietário da RPPN Alto da Boa Vista, à medida que as
matas se regeneravam na sua fazenda os “bichos do mato” começaram a se aproximar da casa.
Era preciso redobrar a atenção com estes animais, inclusive com as cobras e onças. Para
proteger sua família Rômulo contava com um cachorro:
Menos de 30% estava preservado quando chegamos. Desde então, várias espécies retornaram
e passaram a usar isso aqui como a casa delas, vêm até comer fruta no quintal. Há bichos que
chegam a entrar dentro de casa, ouriço, gambá, cuíca, cobra... chega a assustar. Temos um
cachorro pra controlar isso, senão fica perigoso, já vi jaguatirica em volta de casa
(FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
Luíza de Mendonça se preocupa com a proibição de se matar as cobras nas RPPNs:
E eu te falo uma coisa: não mata cobra lá. Nem cobra pode matar. Teve um dia que meu filho,
achei interessante, tava lá. Eu não fui não. Daniel tava na fazenda e minha irmã foi com os
amigos dela pra fazenda. Aí colocou os meninos, os rapazes para dormirem no chão. Aí o
Daniel acordou de madrugada com um grito. Assim, um grunhido. E ele tem mania de andar
de lanterna. Ele pôs a lanterna pro teto, quando ele olhou pra cima tinha uma cobra.
Dependurada, porque não tinha forro, hoje tem forro, não tinha forro. Na madeira do telhado,
dependurada, comendo, tinha abocanhado um rato. Ela tava amassando o rato. Aí o rato deu
aquele gritinho e ele acordou. Aí Flávio conta que o Daniel levantou, pôs a lanterna, ficou
com medo da cobra cair. Aí saiu correndo, porque ia cair em cima do menino. Aí foi lá, tio
Flávio, tio Flávio vem ver uma coisa! Na madrugada. Aí o Flávio viu, foi lá e chamou a
minha irmã: vem ver uma coisa! A Célis chegou lá e falou: Ana, impressionante, a cobra
comendo o rato. Ela dependurada, contorcendo, abriu uma boca de um tamanho, engolindo.
Aí foram acordando todos pra poder assistir a cobra comer o rato. Aí todo mundo gritou, ah,
eu não vou dormir mais com essa cobra aqui. Flávio falou: não. Ela comeu o rato e saiu.
Flávio falou, ela vai dormir, porque está alimentada. No outro dia ela estava no teto. Flávio
foi lá, enrolou ela num pau e jogou ela no meio do mato. Então, não mata mais cobra na
fazenda. Então, eu acho que vai ser difícil dormir na fazenda (MENDONÇA, 2008).
A família de Luíza, na verdade, se surpreendeu não com a cobra se alimentando do
rato, mas com o fato de fazê-lo dentro da casa.
Percebe-se que a disposição dos animais no espaço colabora para estabelecer as
fronteiras entre a esfera doméstica e a floresta. Cães e bois não podem entrar na mata; onças e
cobras não devem chegar até a casa. O deslocamento de um animal de um espaço para o outro
traz desconforto, medo, desordem.
Diante disso, não há como não nos remetermos a Mary Douglas: a desordem, o
deslocamento das coisas e seres do seu local devido ameaçam; o que está “fora de lugar” é
90
sempre “perigoso” (DOUGLAS, 1991). É possível perceber o ordenamento entre as espécies
como parte da visão a respeito da ordem do universo. Há uma referência implícita ao lugar de
origem do animal. Este é “autóctone” de um certo lugar e o seu deslocamento o transforma
em ser “estrangeiro” e por isso perigoso.
Caramujos
Em 2006, Ronaldo Vasquez, proprietário da RPPN Feliciano Abdalla, enviou para a
lista de discussão uma mensagem solicitando informações sobre caramujos que haviam
“tomado” as suas terras. Ronaldo dizia-se preocupado com as conseqüências para a Mata
Atlântica da “invasão generalizada” desses animais “exóticos”.
Várias mensagens se seguiram a esta, tentando esclarecer de que animal se tratava.
Conhecido como “caramujo africano”, uma vez que se acreditava que seria “originalmente”
deste continente, a disseminação deste bicho por todo o Brasil estava preocupando também
outros participantes da lista de discussão.
Segundo Aline Rizzieri, também participante da lista, os caramujos foram trazidos
para o Brasil para serem criados e servidos como opção mais barata de escargots na década de
80, mas não foram bem aceitos entre os que consumiam este alimento. Diante disso, vários
produtores de caramujo tentavam se livrar dos bichos jogando-os no lixo, em terrenos baldios
ou nos rios. Desse modo, sem um devido controle, acabaram se espalhando.
A solução apontada por vários participantes da lista de discussão referia-se à
exterminação dos bichos:
Tem duas maneiras que, embora um tanto quanto "sádicas", têm se mostrado extremamente
eficientes e que vêm sendo recomendadas também. Entretanto, ambas exigem encontrar e
catar os bichos (e acho que não dará para se livrar disso). Uma é jogar sal sobre eles,
provocando sua morte por desidratação. A outra é catá-los, juntá-los em um balde ou outro
tipo de recipiente de metal (ou ainda em algum canteiro cimentado) e, com ajuda de algum
líquido inflamável, eliminá-los com o uso de fogo. Eu sei que pode parecer estranho,
sobretudo para as pessoas mais sensíveis, recomendar tais práticas (que tipo de ambientalista
é esse?!?), mas lembro a todos que tais animais são extremamente nocivos para a fauna e flora
nativas e que precisam ser controlados rapidamente, antes que se tornem um problema grave
de saúde pública e ameaça à biodiversidade, como já o são em algumas localidades. E não é
recomendável o uso de pesticidas químicos, que também podem alterar o equilíbrio local e
afetar outros elementos da biota (LISTA DE DISCUSSÃO, 2007d).
Não teremos piedade para eliminarmos os bichinhos e não usaremos o pesticida. (LISTA DE
DISCUSSÃO, 2007e)
91
Constata-se, dessa forma, que a interdição à matança de animais não se estende a todos
eles: há os que podem e devem ser mortos, mesmo que de maneira sofrida e dolorosa.
O seu status de “espécie invasora” retira os caramujos do grupo dos bichos os quais se
deve proteger, pois ameaçam a “a fauna e flora nativas”. Assim, sua morte e sofrimento são
considerados necessários e benéficos para o homem e para a “natureza”.
Brandão, em seu trabalho sobre agricultores, criadores e sitiantes da Serra da
Mantiqueira, observa como os animais “perigosos” e “ameaçadores” são ética e afetivamente
destituídos do direito à vida. São mortos sempre que possível. Matá-los é um “bem” e uma
obrigação (BRANDÃO, 1999).
Porém aos cães, embora também sejam considerados “invasores” quando encontrados
nas unidades de conservação, não se admite que lhes seja imputado forma alguma de
sofrimento.
Fernando Figueiredo, respondendo a um e-mail da lista de discussão sobre o que fazer
com os cachorros que estavam transitando em uma RPPN faz a seguinte ressalva:
Presumo que a captura dos cães terá como finalidade encaminhá-los a centros de controle de
zoonoses ou adoção, certo? Nenhum método de captura que implique em maus-tratos aos
animais deverá ser utilizado. O ideal é que essa atividade seja feita com a ajuda de um médico
veterinário (LISTA DE DISCUSSÃO, 2008).
Talvez se faça tal distinção entre cães e caramujos porque, mesmo sendo considerados
“animais exóticos” nas unidades de conservação, os cães estão inseridos no espaço doméstico,
são os “amigos” e “companheiros” do homem. Já os caramujos africanos são “estrangeiros”
tanto na esfera doméstica quanto na “natureza”. Estão fora de lugar.
O IBAMA produziu um folder advertindo os riscos da manipulação dos caramujos
africanos e do seu consumo alimentar. É interessante observar como esse material, através de
recursos imagéticos e lingüísticos, procura reforçar a ameaça que o animal representa para a
saúde humana: o destaque dado às palavras “cuidado”, “perigo”; a figura de um círculo
cortado ao meio, onde se vê, ao centro, uma mão segurando o caramujo, indicando a
“proibição” do toque; a construção das frases que, de modo dramático, advertem o leitor dos
perigos que ele corre. Segue o panfleto para observação:
92
93
Figura 7
Diana Rios, secretária geral da Associação Mico Leão Dourado, enviou para a lista de
discussão instruções para o extermínio do animal que não deixam de ser bastante curiosas: os
94
caramujos devem ser coletados manualmente, com a indispensável utilização de luvas; devem
ser enterrados em cova de 1 metro cúbico, forrada com uma camada de cal virgem, recobertos
com outra camada de cal virgem e terra. Diana ainda faz uma ressalva com relação às galinhas
caipiras que comem os caramujos menores: ainda não se sabe se é seguro consumir a sua
carne.
Tais prescrições podem bem ser pensadas como ritualísticas; são orientações que
buscam evitar a contaminação do homem pelo animal “impuro” e, ao mesmo tempo, instruem
a respeito da purificação do local tocado pelo animal. Da mesma forma, observa-se que a
recomendação de precaução em relação ao consumo da carne de animais que se alimentam do
caramujo como, a galinha caipira, assume a forma de tabu. A advertência é clara: estes bichos
devem ser mantidos sob suspeição e interditos, até que se “comprove” se tornaram-se ou não
“impuros”. Conforme afirma Douglas (1991), há uma semelhança perturbadora entre a
higiene ocidental e os ritos simbólicos...
É certo que as explicações apresentadas no folder são bastante convincentes: os
caramujos são animais que destroem hortas, pomares e plantações, transmitem doenças que
podem levar o ser humano à morte. Mas, não consigo deixar de pensar que o aspecto desse
molusco, assemelhando-se a fisionomia dos vermes, sua forma de deslocamento, deslizando
ou rastejando, o coloque em situação de “desvantagem” em relação a alguns animais. Como
afirma Douglas, “os vermes dizem respeito ao reino da sepultura, da morte e do caos”. São
espécies impuras.
A propósito das classificações e de um possível princípio de ordenação que oriente as
concepções de impureza e poluição Douglas faz uma análise das “abominações do Levítico”.
Através do texto bíblico e das análises dos seus exegetas, procura refletir sobre os tabus e
prescrições alimentares em relação à carne de certos animais. Douglas conclui que aqueles
animais que por alguma razão não podem ser incluídos em determinadas classes ou se
apresentam como espécies híbridas e com anomalias são considerados impuros.
Assim, se as principais categorias de animais são definidas pela bíblia pelo seu tipo de
movimento (voar, nadar, caminhar ou saltar sobre a terra) os vermes não participam dessa
ordem. Sua movimentação indeterminada os torna inadequados a qualquer uma dessas
classes; o seu consumo, portanto, deve ser proibido (DOUGLAS, 1991).
95
A correlação estabelecida por Douglas entre “pureza” e “ordem” parece, da mesma
forma, ser extremamente adequada para se pensar a respeito do status dos animais no estudo
aqui realizado. Em princípio, não há impureza ou pureza absolutos; “a impureza absoluta só
existe aos olhos do observador” (p.6). Seres e coisas se tornam impuros em sua relação uns
com os outros. A idéia de impureza se presta como uma forma de repelir os elementos não
apropriados (DOUGLAS, 1991).
Portanto, podemos entender que os animais, quando deslocados e inseridos em outro
contexto (as espécies “exóticas” ou “invasoras”) são percebidos como “perigosos”, afrontam
as regras classificatórias, ameaçam a ordenação dos nossos sistemas, instauram confusões e
contradições.
Como forma de chamar a atenção do público para a necessidade de proteção de
determinadas espécies ou habitats a ecologia tem se utilizado de alguns animais, exatamente
por se oporem ao aspecto asqueroso dos caramujos e por serem afáveis e atraírem para si
simpatia e compaixão. São as chamadas “espécies-bandeira”. O golfinho e o urso panda são
bons exemplos de “espécies-bandeira”.
Miriam Braga, da RPPN El Nagual, fala sobre os problemas que vem enfrentando em
sua reserva com o mico-estrela, também uma “espécie-bandeira”:
Uma praga local, que já prejudica espécies de aves. Ninguém tem coragem de matar porque é
um animal carismático, mas prevejo o que irá acontecer quando encontrar um grupo de mico-
da-serra na APA Petrópolis. Será uma guerra sem chance para o mico-da-serra, que vive em
bandos menores (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
Talvez por essa razão, por não considerar os caramujos animais carismáticos (muito
antes pelo contrário), Sônia Wiedmann, procuradora do IBAMA, tenha se mostrado bastante
surpresa com o pudor que Bruno Valverde demonstrou em seu e-mail, em relação ao tipo de
morte que deveriam ter os caramujos:
Então é muito interessante... você está fazendo parte da lista de reservas privadas? Pois é,
você vê assim, as discussões técnico-científicas são muito interessantes. Então teve uma
discussão recente muito interessante sobre um negócio de um caramujo africano. Você
seguiu, você viu a discussão? Você vê a preocupação deles em queimar uma fauna, mesmo
que seja uma fauna exótica, uma praga. É considerado no Brasil uma praga, aquilo ali. Mas
eles preocupados: meu Deus do céu, mas nós vamos queimar esses animais (WIEDMANN ,
2008).
Parece-me, portanto, que existe uma ética que interdita alguns bichos do sofrimento e
da morte e outros não, a qual parece se fundamentar na posição em que estes se encontram em
relação ao mundo humano e natural. Os caramujos africanos não são reconhecíveis na fauna
96
brasileira, vieram não apenas de outro habitat, mas de outro continente, o que os torna
duplamente “exóticos” e perigosos.
Na fala abaixo, percebe-se como a “nacionalidade” do caramujo deve ser considerada
na sua caracterização como animal perigoso:
Alguém já se lembrou de tomar o máximo de cuidado para que ninguém não confunda o
caramujo africano com o NATIVO, que não tem nada a ver com a invasão daqueles? Nosso
caramujo terrestre pode ser confundido com o invasor e acabar pagando o pato (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2007f).
Também é preciso se considerar o processo de subjetivação e identificação que o
homem impõe aos animais, reconhecendo sua correspondência com virtudes ou defeitos que o
ser humano possui ou se deve evitar (BRANDÃO, 1999).
Para Descola, as manifestações de simpatia pelos animais se ordenam em uma escala
de valor que geralmente é inconsciente e está diretamente relacionada a tradições culturais.
No mundo ocidental moderno a indignação com os maus-tratos infligidos a animais e os
sentimentos de compaixão e estima são direcionados, em geral, às espécies vistas como mais
próximas ao homem, em função do seu comportamento, fisiologia, faculdades cognitivas ou
da possibilidade de sentir emoções. Descola afirma que o antropocentrismo, ou a capacidade
de se identificar com não-humanos, baseada em uma suposta proximidade destes com os
humanos, é uma tendência das sensibilidades ecológicas contemporâneas, até mesmo as que
“professam as teorias mais radicalmente humanistas” (DESCOLA, 1998, p.24).
Mico Leão Dourado
O mico leão dourado é encontrado exclusivamente nas matas da baixada costeira do
Rio de Janeiro, que compreendem os municípios de Silva Jardim, Rio Bonito, Casimiro de
Abreu, Rio das Ostras, Cabo Frio, Armação dos Búzios e Saquarema.
Segundo os técnicos da ONG Associação Mico Leão Dourado o fato deste animal só
ocorrer nesta região justifica o esforço de um trabalho de proteção.
Curiosamente, os métodos para garantir a preservação dessa espécie passam
justamente pelo seu deslocamento das áreas onde inicialmente viviam. Ou seja, o que a
biologia e a ecologia chamam de “manejo”, a intervenção humana sobre a fauna e flora, acaba
por tornar mais complicado estabelecer o que de fato é “nativo” e “exótico”.
97
Como forma de assegurar a conservação do habitat destes primatas a Associação Mico
Leão Dourado tem incentivado a criação e a manutenção de RPPNs na sua área de atuação.
Utilizando um laboratório de geoprocessamento a ONG elabora as plantas e o memorial
descritivo da propriedade que se pretende tornar uma RPPN. Além disso, a ONG tem
trabalhado com a “reintrodução” e “translocação” dos micos.
A “reintrodução” consiste na transferência de micos criados em cativeiro nos
zoológicos para as florestas de Mata Atlântica onde eles “naturalmente” ocorrem, com o
objetivo de aumentar a população de animais e a diversidade genética da espécie. A
“translocação” se refere à soltura de animais em um local diferente de onde eles foram
capturados, mas onde a espécie pode ocorrer ou ocorreu “naturalmente” no passado. De
acordo com técnicos da ONG a translocação é feita com o objetivo de:
salvar grupos de micos-leões-dourados isolados em pequenos fragmentos florestais e,
conseqüentemente, o banco genético que eles representam. Estes fragmentos isolados –
pequenos demais para garantir a sobrevivência dos micos, também estavam sujeitos ao
desmatamento, à caça e captura de animais (ASSOCIAÇÃO MICO LEÃO DOURADO,
2009).
Em seu site, a Associação Mico Leão Dourado afirma que Silva Jardim tornou-se o
município com o maior número de RPPNs federais do Brasil (10 reservas) graças a sua
presença e atuação na região.
O proprietário de RPPN Sandro Lima concorda:
Um município tipo Silva Jardim leva uma vantagem. Por que? Ali existe uma associação de
escala mundial, de conhecimento mundial, que é a Mico Leão Dourado. Então, ela reflete em
toda região seu raio de atuação. Porque o mico leão dourado existe dentro da reserva
biológica como nas propriedades circunvizinhas. Então, ela tem uma influência, o proprietário
lá, ele recebe uma influência direta, benfazeja, da Associação Mico Leão Dourado (LIMA, S.,
2008).
Já Leonardo Silva, cuja RPPN se localiza na região de atuação da ONG, diz que a
Associação Mico Leão Dourado se excede no seu trabalho de proteção ao animal e acaba
excluindo os moradores da região do processo. Conforme ele afirmou em sua entrevista:
A Mico Leão acha que é dona do macaco. Ela o esconde do resto da comunidade. Cobram
190 dólares só pra ver o bicho. Só estrangeiro dá conta de pagar. A comunidade é excluída
(SILVA, L., 2008).
Leonardo Silva foi um dos proprietários de RPPN que recebeu um casal de micos para
abrigar em sua reserva. Os animais ganharam uma coleira com um localizador e eram
monitorados pela Associação Mico Leão Dourado.
98
Esse tipo de manipulação humana dos animais é percebida por alguns Rppnistas, em
especial pelos “Profissionais do Meio Ambiente”, como “perigosa”. Como foi dito, interferir
na ordem e nos sistemas classificatórios estabelecidos é sempre arriscado. Desastres podem
acontecer, pessoas podem adoecer, animais podem morrer e mesmo, espécies podem deixar
de existir.
Em 2002, surgiu na lista de discussão um debate, que é elucidativo dessa questão,
sobre que destino deveria ser dado a animais silvestres apreendidos pelo IBAMA em poder de
traficantes e colecionadores. De acordo com uma matéria jornalística, encaminhada à lista de
discussão, o IBAMA havia apreendido 241 mamíferos e aves silvestres no sul da Bahia, os
quais foram soltos na RPPN Estação Vera Cruz, pertencente à empresa Veracel Celulose.
Abaixo transcrevo a mensagem de uma bióloga que nos ajuda a visualizar melhor em
que termos se processou esse debate:
Para quem não me conhece, sou bióloga especialista em biologia da conservação
e coordenadora de vários projetos de pesquisa com espécies ameaçadas, principalmente
primatas. Quando li a matéria jornalística sobre a soltura de animais na Estação Veracruz
fiquei bastante preocupada. Os animais apreendidos e soltos em áreas de mata podem causar a
extinção das populações nativas seja por competição, disseminação de doenças ou mesmo por
desequilíbrio ecológico, quando um recurso no qual uma espécie nativa depende é
totalmente extinto em consequência da espécie invasora.
Pode parecer exagero falar em espécie invasora e as pessoas podem alegar que os animais
soltos ocorrem naturalmente na área de soltura. O problema é que ninguém sabe por quanto
tempo esses animais ficaram em cativeiro em contato com pessoas e para serem soltos
precisariam passar por uma quarentena para não contaminar a fauna local com doenças. Além
disso, animais que passaram a maior parte de suas vidas em cativeiro, normalmente não se
adaptam tão facilmente à vida selvagem e, soltar o animal na natureza é crueldade, porque ele
com certeza não vai sobreviver.
Além disso, outra preocupação é o fato desses animais terem sido soltos na área da Veracruz,
um dos maiores e mais bem preservados remanescentes de Mata Atlântica na região do
Extremo Sul da Bahia. A área da Veracruz, devido ao tamanho e estado de
conservação, abriga provavelmente populações de espécies raras e que já desapareceram em
outras regiões de Mata Atlântica. Soltar animais sem o menor controle e monitoramento nessa
área, pode causar a extinção de muitos desses animais.
Um outro problema seria quantos indivíduos e quais foram as espécies soltas na área. Algum
especialista nessas espécies foi consultado? Um aumento artificial da densidade da maioria
das espécies pode causar um prejuízo irreparável tanto para a população nativa quanto para a
população que foi solta. O retorno à normalidade para algumas espécies pode demorar muitos
anos. Isso sem falar na parte genética.
Eu não sou contra reintroduções e translocações, já até trabalhei com isso e acho, inclusive,
que isso pode ser a solução para a recuperação de algumas espécies na natureza. No entanto, é
necessário um trabalho bastante sério de monitoramento da fauna nativa e dos animais soltos
antes e depois da soltura, para que as consequências não sejam devastadoras ou mesmo
catastróficas (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2009a).
99
Seria a combinação entre a utilização dos procedimentos “corretos” e a expertise dos
peritos que minimizaria os riscos das “conseqüências devastadoras ou catastróficas”. Porém, o
perigo ainda existiria: como saber se os animais trazidos de fora estariam contaminados? O
isolamento do animal seria necessário, até que se tivesse certeza que ele não se encontrava em
um “estado de impureza”.
Os animais que passaram grande parte de suas vidas em cativeiro estariam mais para o
reino humano que para o “mundo natural”; esse deslizamento de classe, que os retira de sua
condição “original”, completamente integrados na esfera da “natureza”, é um grande
problema para o próprio animal: ele passa a representar um perigo para si mesmo,
possivelmente não conseguirá sobreviver sob as novas circunstâncias.
3.3 Plantas
A sobrevivência dos bichos nas matas, segundo os “Profissionais do Meio Ambiente”,
tem sido colocada em risco, em razão da fragmentação e do isolamento dos remanescentes
florestais. Com pouco espaço para se deslocar, estes animais se reproduziriam sem que
houvesse uma grande variabilidade genética. Com isto, a tendência seria que essas espécies se
fragilizassem geneticamente e, conseqüentemente, viessem a desaparecer em um futuro
próximo.
Desse modo, a “recomposição florestal” ou “reflorestamento”, que exerça a função de
interligar essas “ilhas de natureza”, vem sendo considerada como extremamente importante
para se garantir a conservação da biodiversidade.
De maneira paradoxal ao discurso conservacionista hegemônico, que apresenta as
“espécies exóticas” como prejudiciais à proteção da biodiversidade, uma dupla de
pesquisadores que trabalhou com recomposição florestal em RPPNs afirmou que a vegetação
“nativa” nem sempre seria a melhor opção para se recompor a paisagem. Em algumas
situações, seria preciso formar mosaicos, através de usos diferenciados do solo, que
favorecessem o fluxo genético entre as espécies nativas. Cultivos agrícolas em sistemas
agroflorestais e o plantio de eucaliptos seriam exemplos deste tipo de consorciamento que
integraria espécies “nativas” e “exóticas” (SIQUEIRA e MESQUITA, 2007).
100
Porém, não há um consenso no que se refere ao uso de vegetação “exótica” como
forma de contribuir para a conservação da biodiversidade. De acordo com uma publicação da
ONG Conservação Internacional, estudos realizados em plantio de cacau na Indonésia e no
sul da Bahia revelaram que a perda da biodiversidade pode ser bastante significativa, mesmo
em sistemas agroflorestais. Segundo estes autores, recuperar áreas degradadas utilizando
espécies exóticas só faz sentido se os fins são puramente econômicos e não “ambientais”
(MACHADO et al., 2007, p.6).
Quer o reflorestamento seja feito exclusivamente com espécies “nativas”, quer ocorra
a partir da sua combinação com espécies “exóticas”, a presença do especialista tem sido
apontada, com freqüência, como fundamental, até mesmo quando a idéia é deixar que a
vegetação cresça “espontaneamente”. Parece-me, no entanto, que essa “espontaneidade” não
existe de fato; o controle, o monitoramento humano tem sido sempre indicado nos estudos
que tratam da recuperação de áreas degradadas.
Ocorre que, se a presença de fauna e flora “nativas” pode dar a determinados espaços
um status superior, justificando, inclusive, a sua transformação em unidades de conservação,
isso não significa que estes devam ser deixados à sua própria sorte. A idéia de “manejo”, da
atuação humana direta sobre o espaço natural, é bem-vista e desejável. Certamente, não é
qualquer intervenção humana nas áreas protegidas que se considera adequada e necessária.
Pé de Laranja Lima, Pé de Mata Atlântica
Segundo Siqueira e Mesquita (2007), mesmo que a recomposição da cobertura
florestal seja evidente e inegável ainda assim não se pode garantir que tais ações de
reflorestamento estejam efetivamente reduzindo os efeitos da fragmentação do hábitat
“natural”.
Assim, buscando verificar a eficiência dos projetos de reflorestamento desenvolvidos
em RPPNs, no que concerne à manutenção da biodiversidade nessas áreas, foi realizada por
técnicos da ONG Instituto Bioatlântica uma análise de algumas experiências em reservas de
empresas de celulose e de proprietários rurais, a qual deu origem ao livro Meu pé de Mata
Atlântica.
101
Primeiramente, vale a pena uma rápida digressão sobre o título do livro, Meu pé de
Mata Atlântica, que faz uma alusão ao romance O meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro
de Vasconcelos. O “Pé de Laranja Lima”, que se torna amigo e confidente do protagonista, o
menino Zezé, revela a “natureza” antropomorfizada em seu mais alto grau. Apresentando
emoções e atitudes humanizadas, a árvore do quintal da casa de Zezé representa a hibridação
dos espaços humano e natural. Mas pode-se, também, pensar na “natureza humanizada” ou no
“humano naturalizado”, afinal, quem falava a língua de quem?
Já o “Pé de Mata Atlântica” nos remete à idéia da vegetação “nativa” no quintal de
casa, a wilderness21 no espaço doméstico. Na verdade, o que se percebe no livro é que não se
duvida que a intervenção humana seja necessária para se alcançar a “originalidade” da
vegetação nativa. Fica evidente que se busca a re-construção na natureza através da agência
humana.
Os resultados do estudo apresentados em Meu pé de Mata Atlântica apontam para
diferenças importantes nas ações de reflorestamento executadas pelas empresas e por
proprietários rurais. Embora tanto as empresas como proprietários rurais não tenham
desenvolvido um monitoramento sistemático para acompanhar os resultados obtidos com a
recomposição vegetal, o que seria um grande problema na visão dos técnicos, as primeiras
estariam em vantagem em relação aos proprietários que são pessoas físicas. Isto porque, as
empresas contam com um corpo técnico qualificado e com recursos tecnológicos. Já os
indivíduos proprietários de RPPNs conduzem suas ações de recomposição florestal dispondo
de pouca ou nenhuma assistência técnica. O conhecimento técnico acerca de que espécies
devem ser plantadas, quais devem ser retiradas e as formas de plantio, a delimitação da área a
ser replantada, bem como outros aspectos técnicos acerca da conservação, segundo os autores
é determinante para o “sucesso” do reflorestamento (SIQUEIRA e MESQUITA, 2007).
Porém, as idéias do que seja um reflorestamento “bem- sucedido” têm variado, de
acordo com o ponto de vista dos atores sociais em questão. Para os agentes técnicos um
processo de reflorestamento alcança seus objetivos quando consegue ser eficaz para a
conservação da biodiversidade, mantendo ou atraindo as espécies “endêmicas” de
determinado habitat. Como critério para identificação da efetividade do reflorestamento foi
21 O conceito de wilderness refere-se à noção de natureza selvagem não domesticada. Esta noção tem fundamentado a idéia
de que não deve haver presença humana nas áreas naturais protegidas, afim de que estas possam se manter conservadas
(DIEGUES, 1999).
102
utilizada, neste trabalho, a observação da avifauna, como bioindicador da “qualidade dos
ecossistemas naturais”:
A utilização de elementos bioindicadores se baseia no fato de que as espécies, de acordo com
suas características morfológicas e funcionais, respondem diferentemente à deterioração de
seus habitats, constituindo-se em parâmetros úteis para a identificação de impactos oriundos
da intervenção humana e para o monitoramento ambiental. (SIQUEIRA e MESQUITA,
2007:93).
Para as empresas de celulose, que mesclam o plantio da “espécie exótica” eucalipto
à vegetação “nativa”, com objetivos comerciais, o “sucesso” do reflorestamento refere-se ao
que ele oferece em termos de disponibilidade de matéria-prima para as suas atividades
produtivas, associada à possibilidade de construção de uma imagem positiva, vinculada à
proteção ambiental, junto a seus potenciais consumidores.
Já os proprietários rurais, cujos processos de reflorestamento foram avaliados no
livro, apresentam outros parâmetros para verificar se suas ações alcançaram um bom
resultado. Estes estão pautados na observação de animais que há muito tempo não eram vistos
na RPPN.
Segundo o Sr. Anthenor Pianna, proprietário da RPPN Fazenda Pianna, a beleza da
paisagem é um dos principais objetivos a serem alcançados com a recomposição da floresta:
Em 1999, minha família e eu pensamos em usar a parte da fazenda às margens da
lagoa Juparanã como área de lazer. Mas chegamos à conclusão que, infelizmente,
naquela época não tínhamos uma paisagem agradável o suficiente para isso. A área
estava bastante degradada. Ficaria muito feio, com aquele solo cheio de erosão e
voçorocas” (SIQUEIRA e MESQUITA, 2007, p.129).
E, novamente, aponta uma das grandes conquistas com o replantio da vegetação: a
alteração estética da paisagem:
Na nossa floresta temos árvores com oito, sete, seis e cinco anos. A minha preferida é a
sapucaia, que no mês de outubro floresce e fica toda rosa. Espero que daqui a uns quinze anos
quem passe por aqui nesta época possa ver a mata toda pontilhada de rosa. Talvez não seja
mais para mim, isso é Deus quem sabe, mas eu tenho certeza que os jovens de hoje verão e
tirarão muito proveito desse reflorestamento” (SIQUEIRA e MESQUITA, 2007, p. 131).
A despeito da avaliação positiva que os proprietários rurais fizeram acerca dos
processos de recuperação de suas RPPNs, os autores do livro Meu pé de Mata Atlântica
concluem que estas ações de recomposição florestal não foram satisfatórias no que se refere à
conservação da diversidade biológica. As falhas detectadas pelo estudo são apontadas como
conseqüência da falta de um planejamento prévio e de orientações técnicas adequadas:
(...) boa parte das áreas em restauração avaliadas não está ainda favorecendo a composição da
avifauna florestal (ou de outros grupos de vertebrados), basicamente em decorrência do fato
de que essas áreas se apresentem como ambientes muito simplificados em relação à sua
condição original (SIQUEIRA e MESQUITA, 2007, p. 120).
103
Orquídeas
Os proprietários de RPPNs, embora com freqüência recorram aos técnicos da
conservação para tirarem dúvidas que se refiram ao “manejo” de suas reservas, muitas vezes
vêem com ressalvas essa sobrevalorização do conhecimento técnico-científico e reivindicam
para si a autoridade para intervirem no espaço natural.
Um episódio ocorrido no Seminário de RPPNs de Minas Gerais, realizado em Rio
Preto, Minas Gerais, em outubro de 2007, é ilustrativo dessa questão. Um dos palestrantes,
biólogo do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, falou sobre um projeto de conservação de
orquídeas que desenvolvia nesta instituição. A sua apresentação, bastante incisiva em relação
aos “perigos” da intervenção leiga nos espaços “naturais”, foi vista com muita antipatia por
diversos participantes do evento.
O biólogo iniciou sua palestra apresentando um slide onde se podia ver uma foto de
uma orquídea ao lado da seguinte frase: “Achou que eu ficaria bem em sua casa? Imagine na
natureza!”. Após desenvolver uma longa argumentação sobre como era “ridículo” o
comportamento do homem que “corta flores para deixar sua sala bonitinha” o palestrante faz
uma afirmação que deixa a platéia em ponto de ebulição: “Plantar é tão perigoso quanto tirar
da natureza”. Não convencidos pelos argumentos do biólogo alguns proprietários de RPPNs
se manifestaram contra o que foi exposto na palestra e se disseram aptos a cuidarem da
proteção e da recuperação vegetal de suas reservas.
Ficus, Flamboyãs, Quaresmeiras, Ipês
Da mesma forma que os bichos fazem a ruptura entre a wilderness e o “mundo
doméstico”, também as plantas podem exercer essa função. Luíza de Mendonça, uma das
proprietárias da RPPN Água Branca, desenvolve uma curiosa argumentação ao tentar definir
o lugar do “verde”:
Às vezes eu brinco com o pessoal verde da cidade e aí a gente trabalha, por exemplo, a
questão do verde na cidade. Às vezes o verde, ele atrapalha. Você tem, por exemplo, o
passeio. Você tem uma árvore que não é adequada para a cidade. Aí o cara responsável pela
árvore não quer que tira a árvore. Você pensa: poxa, como é que eu vou fazer o cara ter a
sensibilidade, o passeio dele tá legal. Se a árvore arrebenta o passeio dele? Arrebenta a casa
dele? A árvore veio pra humanizar o espaço do homem. Se ela não humanizar, se ela não tiver
essa função na cidade ela tá atrapalhando o homem. Aí eu brinquei com meu amigo que é
verde. Ele é verde à beça. Que eu ia virar bruxa e queimar todas umas árvores que tem aqui
pra poder plantar a árvore certa (MENDONÇA, 2008).
104
Luíza chama de“verde” tanto os colegas de trabalho, nos quais identifica uma fala
“ecologizada”, quanto as plantas e a própria questão ambiental. Assim, ao dizer que “às vezes
o verde atrapalha”, ela pode estar se referindo àqueles que dificultam a retirada das árvores a
partir de um discurso construído sobre referências ecológicas, bem como pode estar fazendo
menção às próprias árvores que considera inadequadas para a cidade.
Segundo Luíza, existem as árvores “certas” para a cidade:
Porque você tem a árvore da cidade, né? Você não pode ter árvore que tem raiz radial. Você
não pode ter Flamboyã na cidade. Castanheira, que tem muito em Belo Horizonte. Você pode
ter Ipê, Quaresmeira, Ipiruna. Tem diversas árvores que é da cidade. Flamboyã é pro campo,
para um parque. Agora, na cidade não pode. Eu brinco com ele, vamos queimar essas árvores.
Tem uma árvore, que eu fico assim, como arquiteta de Belo Horizonte... sabe aquela igreja...
outro dia eu tava com uma arquiteta lá, a gente tava num casamento. Tem a igreja que eles
falam, igreja dos turcos. Fica perto da Santa Casa, do pronto socorro. Na frente dela tem um
fícus enorme, enorme. Horroroso! Porque eu tenho certeza que quem pensou na cidade, quem
pensou naquela igreja, o ponto dela, estratégico, foi de que as pessoas que passassem na
Afonso Pena, passassem na Carandaí, tivessem o ponto de vista de ver a arquitetura da igreja.
Aí eles puseram o fícus e o fícus cresceu, cresceu, você não enxerga a igreja mais. Não pode
tirar aquele fícus. Você vê, a arquitetura perdeu por questão daquela árvore, que não é árvore
de cidade, que a raiz dela... você pode passar em algumas ruas de Belo Horizonte, que ela é
assim. É raiz de fícus, ela arrebenta o asfalto. Arrebenta a drenagem. Então, assim, ela tem
toda uma conseqüência para a cidade. Aí é um detalhe, não é árvore da cidade. É a briga do
pessoal do meio ambiente. A arquitetura da copa é bacana e a casa caindo. E o cara vai perder
a casa dele. Tem casa que tá trincada, trinca toda a estrutura da casa. Abre. E o cara não quer
deixar tirar a árvore. Aí eu fico, mata a árvore, mata a árvore! Não matar, tem que plantar
outra (MENDONÇA, 2008).
As árvores certas são as que não interferem na arquitetura da cidade. Aquelas que, de
uma forma ou de outra, estão a serviço do homem. Afinal, como bem disse Luíza, a árvore
veio para humanizar o espaço do homem. Por isso, teria que se adequar à paisagem urbana;
não deveria estar mais visível ou ofuscar as obras humanas.
3.4 Homens
O mundo “natural” não parece ser exclusivo de plantas e bichos. No discurso dos
Rppnistas pode-se observar “classes de humanos” que gradualmente se aproximam ou se
distanciam da esfera da “natureza”.
As condutas impelidas pelas paixões, pela transgressão às regras e a ausência de
constrangimentos morais diante da ruptura com as normas caracterizariam estes seres, mais
próximos de uma condição de “animalidade” que de “humanidade”.
105
Segundo Ingold (1995), no contexto da tradição ocidental, vêm sendo estabelecidas
associações entre os conceitos de animal e humano, repletas de ambigüidades. De fato, os
animais têm ocupado uma posição central na construção do conceito de “homem”. Tem
persistido, ao longo do tempo, a concepção que relaciona a animalidade a uma deficiência de
tudo o que os humanos supostamente possuiriam: linguagem, razão, intelecto, consciência
moral. Em tal perspectiva, a qualidade humana teria sido adquirida por etapas, completando-
se apenas com a emergência da razão e do intelecto. A condição humana seria essencialmente
ambígua: de um lado temos o homem imerso na condição física da animalidade e de outro,
submetido à condição moral da humanidade. Esses dois estatutos coabitariam no “conceito
problemático e disjuntivo de natureza humana”. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 129)”.
Assim, ao buscar definir o estatuto humano, Ingold fala sobre uma suposta
“animalidade humana” como uma concepção de comportamento do homem, bastante
difundida no pensamento ocidental. Segundo o autor, a “animalidade humana” transmite uma
noção de qualidade de vida no estado de natureza, onde se encontram os seres em “estado
cru”. A tese da “animalidade humana” perceberia que as diferenças entre seres humanos e
animais seriam mais de grau que de espécie. De acordo com a visão “gradualista”, segundo a
qual a condição de pessoa emerge com o “desenvolvimento” ou “evolução”, seria adequado
pensar que, da mesma forma que os homens, os animais também possuiriam linguagem,
inteligência e engenhosidade. Não haveria uma separação definitiva entre os humanos e as
demais espécies do reino animal.
Sob essa perspectiva, poderíamos conceber seres humanos “primitivos”, cujo aspecto
da humanidade ainda estaria pouco desenvolvido: “linguagem relativamente pobre,
inteligência pré-racional e capacidade de autodomínio muito limitada” (p. 51). Em algum
ponto na escala das gradações encontraríamos o homem civilizado moderno, de inteligência
superior e cientificamente esclarecido. A abordagem gradualista, certamente, se revela
carregada de etnocentrismo (INGOLD, 1995).
É possível perceber a visão gradualista no discurso de vários Rppnistas,
principalmente, quando buscam reafirmar sua identidade social, diferenciando-se dos
“Inimigos da Natureza”, seres rudes, desprovidos de uma “consciência ambiental”,
embrutecidos pelo desejo de lucrar a qualquer custo, conforme já pudemos observar nas falas
sobre os Sem Terra. Mais à frente irei apresentar outras situações em que a visão gradualista
fica mais evidente.
106
Caçadores, palmiteiros, madeireiros, passarinheiros
Os caçadores, palmiteiros, madeireiros, passarinheiros são aqueles que,
indevidamente, se apropriam de bichos e plantas que vivem nas matas. Estes ferem as regras
primordiais das RPPNs, que buscam assegurar que os bens naturais permaneçam nas reservas,
sob a posse e controle do proprietário, já que entram sem autorização em propriedades
particulares e retiram daí bens interditos. São considerados como “ameaças ao patrimônio”,
tanto em sua expressão privada, quanto pública.
Chamados de “usurpadores do patrimônio natural”, expressão que pode ser encontrada
na “Moção de Apoio às RPPNs”, elaborada no Congresso de RPPNs realizado em 2004,
transcrita no capítulo 1, caçadores, palmiteiros, madeireiros, passarinheiros são
freqüentemente associados a pessoas de má índole, criminosas. Caberia à justiça decidir o
destino destes “infratores”:
Conheço bem a realidade local no agreste pernambucano. O fato é que não existe mais
pobrezinho, coitadinho e gente passando fome na região. Há muito marketing com a TV
guiando nosso raciocínio e deturpando os fatos. O que existe é basicamente ignorância,
crueldade. Ninguém cria uma galinha, ninguém planta um pé de coentro, mas cria cachorro,
compra pólvora no armazém, planta fumo e passa o dia no mato em cima de uma espera
baforando o cigarro pra pegar um preá. Existe toda uma geração que não tem mais jeito, está
condenada (LISTA DE DISCUSSÃO, 2009b).
Direito de propriedade é direito de propriedade, garantido constitucionalmente. Minha
preocupação é com a segurança. Estas pessoas, em situação emergencial ou não, estão
armadas. Toda cautela é pouca. Retomo meu posicionamento de que melhor é conversar
primeiro com o delegado do local, talvez até fazer por escrito, para que depois ele não negue
que tinha conhecimento do fato. Adotar o mesmo procedimento com o promotor de justiça da
comarca. Divulgar o fato é uma forma de afugentar os perigos (LISTA DE DISCUSSÃO
SOBRE RPPNS, 2009c).
Gert Hortmann, participante da lista de discussão, chama os extratores de palmito de:
ladrões comandados pelas indústrias de palmito e pelos consumidores que compram palmitos
roubados, muito baratos, sem rótulos, fabricados por quadrilhas de saqueadores que agem
impunemente e se apropriam do trabalho alheio. A arrogância desse povo inculto e
desrespeitador da propriedade alheia é realmente preocupante (LISTA DE DISCUSSÃO,
2009d).
Caçadores e coletores são colocados lado a lado com outros animais predadores e
percebidos como “espécies invasoras”, que ameaçam a “biodiversidade”. Vistos muitas vezes
como pessoas que agem mais por instinto que pela razão, são considerados homens perigosos,
com os quais todo cuidado ainda é pouco. É o que se observa no depoimento abaixo:
Caríssimos Amantes da Natureza. Acredito que fazem dois anos que enviei um SOS para
todos a respeito da caça predatória na nossa reserva. Pois bem, volto de novo a denunciar esse
tremendo crime onde impotente me sinto, a exemplo de tantos utopistas que acreditam na
107
importância da natureza para o bem-estar do planeta. Somos apenas uma reserva de 9 hectares
e todas as noites, literalmente armados, atacam indiscriminadamente o que resta de nossa
fauna (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2005a)
Nem todos os Rppnistas compartilham desse posicionamento. Há aqueles que
acreditam, por exemplo, na “conversão” dos caçadores e passarinheiros em “parceiros da
conservação”, até mesmo porque seriam grandes conhecedores dos bichos e das matas. Para a
Rppnista Maria Teixeira:
De nada adianta reflorestar se não conseguirmos transformar as pessoas em parceiras. O
melhor exemplo é do caçador: não reconheço a maioria dos passarinhos, mas o rapaz que caça
na mata pode explicar quais são, fazer roteiros para ver bichos à noite. É uma mudança de
mentalidade, de mostrar: “você ganha cinqüenta reais por quatro horas de caminhada e não
precisa matar” pois ele sabe dizer onde tem toca de paca, casa de gambá, sabe as espécies de
cobra (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
Maria chegou a empregar um caçador em seu sítio, durante um tempo:
Vários anos depois, quando a gente foi construir o centro de visitantes nós empregamos um
cara que é um caçador. Ele parou de caçar durante todo o tempo que trabalhou com a gente.
Mas a gente dispensou ele por causa dele ser muito estressado e terminado todo o quadro
funcional da gente, senão a gente teria conservado ele até para ele não caçar mais
(TEIXEIRA, 2007).
Reginaldo Novaes, da RPPN Mãe da Mata, também acreditava que era possível
cooptar os caçadores:
É muito duro fiscalizar, os animais não estão só nas matas da propriedade, andam por toda
região. Não é justo eu cuidar sozinho de uma unidade de conservação que é de todo mundo.
Denuncio, vou ao IBAMA, mas sabe como é o ser humano. O caçador desaparece por um
tempo, depois volta. Aqui, se acham ouriço-preto, matam, pois gostam de comer. Paca e tatu
caçam para vender. Já identifiquei vários desses caçadores e penso num projeto que troque
punição por reintegração, transformando-os em defensores da fauna e flora (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNS, 2005b).
Pode-se dizer que existem três tipos de caçadores: os que caçam para comer, os que
caçam para vender o animal e os que caçam por esporte. Destas três classes de caçadores
haveria uma certa “compaixão” por aqueles cuja caça serve como alimento. Ainda assim, em
qualquer situação, a caça é terminantemente recriminada pela grande maioria dos Rppnistas:
No meu entender, e no que diz respeito à lei RPPN é uma unidade de conservação, como um
Parque Nacional cujo objetivo principal é preservar os ecossistemas e não alimentar uma
população. Acredito que a RPPNs não poderia sozinha acabar com o problema da fome
(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs 2004e).
Seja por serem reconhecidos como “predadores da biodiversidade” ou como profundos
conhecedores de bichos e plantas, destaca-se nos caçadores e demais coletores, sua
agressividade, sua ignorância, sua aproximação de um estado de natureza. Para se tornarem de
fato “parceiros da conservação” estes teriam que passar por uma transformação profunda, que
108
os sensibilizasse e informasse sobre os danos causados pelas atividades que praticam. Como
afirma Maria Teixeira: “é uma mudança de mentalidade” (FUNDAÇÃO SOS MATA
ATLÂNTICA, 2007, p.190).
Gente da cidade, gente do campo
Nota-se, que os indivíduos proprietários de RPPNs, ainda que afirmem uma
identificação afetiva com o mundo rural, se vêem de maneira distinta em relação aos demais
moradores do campo. O fato é que, em geral, estes atores possuem um forte vínculo com as
cidades, tendo aí vivido grande parte de suas vidas. Mesmo aqueles que moram nas fazendas
transitam, com freqüência, pelos centros urbanos. Sua trajetória, marcada por constantes
deslocamentos entre os mundos rural e urbano, parece torná-los pessoas que podem ser
facilmente distinguíveis da “comunidade”, dos “moradores locais”, ou do “povo da região”,
algumas das classificações utilizadas para se referir a este “outro”.
Isso não quer dizer, porém, que os Rppnistas se vejam alinhados com a “gente da
cidade”. A expressão “urbanóides”, que volta e meia pode ser encontrada em diversas falas,
revela o desdém demonstrado em relação ao estilo de vida e à “falta de consciência
ambiental” dos citadinos.
Na verdade, o que percebo é que a RPPN faz a mediação entre esses dois domínios:
projeta no espaço físico da ruralidade as “idéias da cidade”, absorvidas no cruzamento do
direito ambiental e da ecologia e biologia. Não se pode esquecer, contudo, que tal “ideologia
conservacionista” é relida através das lentes individuais e dos projetos pessoais dos Rppnistas.
Vejamos como o antagonismo “gente da cidade”/ “gente do campo” é criado e vivido
em algumas experiências de proprietários de RPPNs e como a categoria Rppnista se coloca
transversalmente nessa relação de oposição. Observa-se como a “tese gradualista” discutida
por Ingold (conforme explicitei anteriormente) pode ser esclarecedora dessa relação.
Sandro Lima se utiliza dos conceitos de “proprietário rural” e “produtor rural” para
pensar sobre os universos da cidade, do campo e para demonstrar em que grau o Rppnista se
distancia do que ele chama de “pessoas do mato”.
“Proprietário rural” é a categoria em que se enquadra o Rppnista, que possui pequenas
áreas e não vive do que suas terras produzem. Segundo Sandro, com um maior nível de
escolaridade e “cultura” o “proprietário rural” é mais sensível à problemática ambiental e
109
pode ser mais facilmente convencido a aderir à causa conservacionista. Já na categoria
“produtor rural” se encontram os pecuaristas de Rio Claro, município onde possui sua RPPN,
que degradam o meio ambiente e inevitavelmente acabam exaurindo suas terras, criando as
pastagens, para conseguirem sua subsistência.
Visando distinguir o “proprietário rural” do “produtor rural” Sandro compara
Teresópolis e Rio Claro e os diferentes “níveis intelectuais” dos respectivos habitantes das
áreas rurais:
Porque embora difere, haja uma diferença de um município pra outro em termos de níveis de
escolaridade médio do proprietário... por exemplo: um proprietário rural de Friburgo tem um
nível superior, ou de Teresópolis, que são propriedades pequenas, propriedades rurais
pequenas, de lazer, do que um município, como por exemplo, Rio Claro. Dedicado à pecuária.
O nível é mais baixo. Não são zonas de turismo. Então, a compreensão do proprietário de
Friburgo ou de Teresópolis é superior; A resistência dele é menor. Primeiro que ele não é
produtor rural. Ele é proprietário rural. Agora, o produtor rural, aquele que eu costumo dizer,
da mão grossa, da unha suja, que vive da terra, esse oferece mais resistência. Porque cada
palmo de terra que ele dedica à preservação é menos pasto. Então, ele sempre pensa numa
compensação. Ele não tá voltado para a consciência preservacionista.Claro que vai ter
prejuízo. A médio e a longo prazo vai ter prejuízo. Mas ele ta preocupado com o momento
dele. E você mudar paradigma não é muito fácil. Em geral são necessárias ações de governo
(LIMA, S., 2008).
Para Sandro, o proprietário de RPPN “compreende um grupo ligado à área de meio
ambiente, moralmente melhor colocado (LIMA, S., 2008).”
Logo após adquirir as terras em Rio Claro, Sandro teve que enfrentar um vizinho que
articulava com o prefeito a construção de uma estrada, a qual iria atingir sua propriedade. A
decisão de criar a RPPN baseava-se na tentativa (que foi bem-sucedida) de impedir este
empreendimento. Para Sandro, se o projeto de construção da estrada tivesse sido levado
adiante teria comprometido a reserva de matas, a sua segurança e sua privacidade.
Sandro acreditava que o seu vizinho, na verdade, queria prejudicá-lo:
Ele teve cem anos pra fazer a estrada. Mas ele quis fazer a estrada e cortar a propriedade
depois que ele pegou um carioca bobalhão que comprou a propriedade. Ou seja, massacrar
aquele que veio de fora (LIMA, S., 2008).
Instituindo a RPPN, Sandro conseguia cercar a fazenda:
Eu fiz, a minha RPPN tem o formato de uma cuia, mal comparado. Todas as minhas medidas
são em meia vertente. Então se o pingo da chuva correu pra cá é porque caiu dentro da minha
propriedade, se correu pra lá ta cercado de morro. É como se fosse uma cuia ou prato fundo.
Vamos mentalizar assim. Aí eu fiz a RPPN numa faixa de cem metros percorrendo todo o
perímetro da propriedade como se fosse uma moldura interna. Com essa moldura interna de
100 metros da divisa deu justamente garantias às cabeceiras de morro, evidentemente que eu
preservo bem mais, por exemplo, se é só essa divisa, a mata vem aqui embaixo. Em alguns
pedaços vem até aqui embaixo (LIMA, S., 2008).
110
Observa-se como, em termos geográficos, a área pensada para se tornar RPPN
representa uma espécie de cinturão, circundando a fazenda e criando uma barreira (nos
sentidos literal e simbólico) para guardar as matas dos possíveis invasores: os vizinhos.
Resguardar as matas da fazenda, mas também resguardar a si próprio: esses eram os grandes
objetivos de Sandro na criação da RPPN, uma vez que, conforme ele afirma abaixo, estava
rodeado por “predadores e canalhas”:
Mas às vezes nesse pedaço aqui já está de pasto. Eu ainda não tive tempo de fazer uma cerca,
porque eu tenho que fazer a cerca dela toda do lado de fora, que teoricamente, sempre que
você tem a divisa, metade da divisa com aquele vizinho, metade da divisa é feita por você,
metade é feita por ele. Mas quando você tá com proprietários que são predadores, canalhas,
pessoal ali dentro do mato você não vai bater de frente com eles. Você vai dormir lá, dentro
mato, cercado de inimigo? Você não sabe. Você tem que ser político. Aí você faz a parte da
sua cerca. O vizinho faz a dele? Então, ele acaba com a mata dele e depois vai buscar dentro
da sua mata pra fazer a cerca dele. É assim que funciona. Então você, tem que... acaba fechar
a sua parte, fechar a que era do vizinho. Só que se eu fizer a moldura eu tenho uma cerca
interna também. Então eu tenho que fazer a de fora e tenho que fazer a de dentro. E eu tenho
vários pedaços que não têm. Você não acha justo que o fundo ambiental ajude eu fazer esse
trabalho? Não é para produzir nada para mim não. Não é para comprar boi (LIMA, S., 2008).
Lidar com a “gente do campo”, com as pessoas do “mato” exigia uma certa habilidade.
Era preciso “ser político”, agir com um certo cuidado, principalmente com os empregados:
Você está com a cascavel dentro de casa. Sujeito rude, sabe manusear uma foice e você dentro
do mato com ele. Totalmente diferente. A habilidade que você tem de lutar é totalmente
diferente. Você tá ali, no mato, o cara tá atrás de você, com uma foice, você não pode ser
ingênuo (LIMA, S., 2008).
A rudeza, as unhas sujas, a mão grossa, o vocabulário restrito e um desempenho
intelectual inferior, essas eram as características não apenas do “produtor rural”, mas das
“pessoas do mato”.
Para conseguir o apoio destes na conservação das RPPNs e das demais áreas de mata
da região era preciso adequar o discurso e se mostrar próximo, semelhante, acessível. Assim,
Sandro sempre fazia questão de também se apresentar como “produtor rural” e mostrar como
a criação de uma RPPN pode proteger o seu proprietário e facilitar a sua relação com as
autoridades locais. Na fala abaixo, Sandro relata uma situação em que se dirigiu aos
produtores rurais de seu município em um evento promovido pelo IBAMA:
Que eu sei é que sou um proprietário rural e que fiz RPPN. Eu falei, gente, eu quero dizer a
vocês que eu sou um proprietário rural igual a vocês. Eu tenho uma terrinha. há uma
diferença. E eu já sabia que havia esse incidente brabo. E felizmente eu fiz uma RPPN. O
pessoal já tinha falado sobre RPPN. E com isso lá eu me sinto protegido. Porque tem uma
placa, dizendo que eu tenho um RPPN. Existe uma associação de proprietários de que eu faço
parte. Então, quando chega a polícia, cheia de truculência, ela tem que respeitar, sabe que eu
não estou sozinho, que o IBAMA me dá proteção. Então eu planto meu feijãozinho, eu planto
111
meu milhozinho, eu tenho minhas vaquinhas (de preferência sem o “s” no final, né). Um
negócio meio grosso: “eu tenho minhas vaquinha”. Aí os caras foram chegando. No final
falou assim “tá vendo, tivesse o senhor falado no início não tava essa porrada toda, essa
discussão” Porque o pessoal que vai falar, vai cheio de academicismo. Não pode. Pra você
buscar o produtor rural tem que falar na linguagem dele. Falar em biotas, em biomas e coisas
da natureza, o cara, qualquer ser humano... O sujeito, daquilo que ele ignora ele se afasta. Pra
não pagar mico. Ele vai puxa um papo e você falando em bioma? O cara sabe lá o que é
bioma? Ele se afasta. Então ele fica refratário em função da ignorância. Ele não vai perguntar
em público, escuta, o que é bioma? Ele vai falar isso? (LIMA, S., 2008)
Observa- se que o uso dos diminutivos, a infantilização da fala, evidenciam como
Sandro subestima esse “produtor rural”. Com um certo escárnio, Sandro demonstra como o
considera ignorante e grosseiro, incapaz de absorver qualquer informação mais elaborada.
***
A partir das histórias dos bichos, plantas e homens relatadas pelos Rppnistas somos
levados a indagar: onde se colocam os limites entre os mundos humano e natural, quando o
natural não é o que ocorre sem a ação do homem e quando o humano é que constrói o natural?
Será que, de fato, procede afirmarmos que a sociedade moderna funciona através de uma
separação radical entre cultura e natureza, que fundaria seus sistemas de representação do
mundo (LATOUR, 1997)? Existiria uma “natureza naturalmente natural” (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996)?
Essas questões encontram eco nos atuais debates que repensam o conceito de
biodiversidade como produto da própria “natureza”, sem intervenção humana.
De acordo com Diegues, trabalhos recentes do Banco Mundial apontam na direção da
desmistificação das “florestas intocadas” e na importância das populações tradicionais na
conservação da biodiversidade. Em uma das recomendações para o Banco lê-se:
A composição e distribuição presente das plantas e animais na floresta úmida são o resultado
da introdução de espécies exóticas, criação de novos habitats e manipulação continuada pelos
povos da floresta durante milhares de anos. Por causa da longa história de pousio da
agricultura itinerante, junto com os povos nômades/pastores na África Central, todas as
florestas atuais são realmente patamares de vários estágios sucessivos de crescimento criados
pelo povo e não existem áreas que muitos relatórios e propostas chamam de ‘pristinas’,
‘intocadas’, ‘primárias’ ou ‘floresta madura.’ Em resumo, essas florestas podem ser
consideradas artefatos culturais humanos. A atual biodiversidade existe na África não apesar
da habitação humana, mas por causa dela (DIEGUES, 1999, p. 16).
O que se tem afirmado é que a manutenção e mesmo o aumento da diversidade
biológica nas florestas tropicais foi o resultado das práticas tradicionais de agricultura
itinerante.
112
Para Descola, a floresta amazônica é um exemplo de como a natureza é bem pouco
“natural”, podendo ser considerada, ao contrário, o produto cultural de uma antiga
manipulação da fauna e da flora (DESCOLA, 2000).
Se a emergência de campos de conhecimento científico como a biologia da
conservação e a ecologia, que cada vez mais esperam submeter a “natureza” ao controle e à
inteligência humana, nos fazem repensar os limites entre estes dois domínios, as RPPNs
contribuem ainda mais para redefinir as fronteiras entre as esferas humana e natural. Percebe-
se, ao longo destas análises, que tais domínios ganham novas nuances e seus limites são
reconfigurados com a presença da RPPN na propriedade rural. Novas fronteiras são erguidas
através da delimitação entre o ambiente doméstico e selvagem. Não que os homens não
devam penetrar no mundo natural, nem os animais no mundo humano. Porém existem
prescrições a serem seguidas: um domínio não deve invadir o outro.
Cria-se uma nova idéia de equilíbrio e harmonia na convivência entre as esferas de
atuação dos seres, dada não pela intocabilidade da natureza, mas por uma manipulação
cuidadosa e especializada, que separa o “puro” do “impuro”, o “exótico’ do “nativo”.
As RPPNs são o “mato” particularizado, subjetivado, sobre o qual o indivíduo se
estende e se projeta. Será que foi por mera coincidência que Ronaldo Santana tenha decidido
comprar terras e criar uma RPPN justamente onde era o antigo Engenho de Sant’Anna, onde
correm as “águas límpidas e fartas do rio Santana?” Será que o cantor Ney Matogrosso não se
deixou seduzir ao descobrir que as terras pelas quais se interessou se localizavam entre a
cadeia de montanhas chamada de Serra do Mato Grosso?
Ao se tornar “dono da natureza” ao Rppnista é concedido o mana, “aquilo que permite
produzir efeitos que estão fora do poder ordinário dos homens, fora dos processos ordinários
da natureza” (DURKHEIM, 1989, p. 96). Ele se torna o “produtor das águas”, recompõe as
matas, traz de volta animais que já não existiam em suas terras, cria e recria a natureza à
semelhança de Deus. E a natureza, comumente entendida como “dádiva divina”, se torna,
então, “dádiva humana”.
No capítulo 4 me dedicarei à discussão sobre os circuitos de dádiva que são
instaurados a partir do processo de patrimonialização da natureza.
113
4 POR UMA ECONOMIA DAS TROCAS DADIVOSAS
A idéia de “doação”, que aparece implícita ou explicitamente no discurso dos
Rppnistas, a recusa do princípio da equivalência mercantil, são inspiradoras de uma reflexão
que inscreva a instituição de RPPNs no campo das trocas dadivosas. O que e a quem se doa?
De que forma ocorre essa “doação”? Como podemos pensar a reciprocidade? São questões
que nos orientarão na tentativa de decifrar o “enigma do dom” (GODELIER, 2001) no
universo das RPPNs. Porém, já adianto que as RPPNs não se prendem ao sistema de dádivas.
Desenvolverei esse argumento mais adiante.
Pode-se dizer que é sobre o solo da retórica dadivosa que os discursos dos Rppnistas
se assentam: a negação do interesse, a ênfase na gratuidade, a incerteza e a não expectativa de
um retorno compõem um discurso que busca, a todo o momento, negar a razão utilitária. Esta
afirmação se torna possível principalmente se trabalharmos com a definição de dádiva de
Godbout:
De modo negativo, entende-se por dádiva tudo o que circula na sociedade que não está ligado
nem ao mercado, nem ao Estado (redistribuição), nem à violência física. De modo positivo, é
o que circula em prol ou em nome do laço social (GODBOUT, 1998, p.44).
O paradigma da dádiva também pode ser esclarecedor do fenômeno das RPPNs do
ponto de vista metodológico; ajuda a perceber as sutilezas de que se constitui esse campo
social; inspira uma reflexão que não se detenha nos extremos de uma compreensão utilitarista
(centrada nos interesses práticos e egoístas dos indivíduos) nem ingênua (que focalize uma
abnegação e um altruísmo desmedidos). Cito Caillé para afirmar a riqueza da dádiva enquanto
diretriz analítica:
O que nos importa, de fato, não é que nos afirmem que os sujeitos humanos têm interesses ou
preferências, coisa de que ninguém duvida, mas que nos digam em que consistem esses
interesses e preferências num dado período histórico ou numa dada situação social, e como se
articulam com a exigência de desinteresse, enunciada vigorosamente por todas as morais e
todas as religiões (CAILLÉ, 2001, p. 29).
Aceitando a sugestão de Caillé, começo, discutindo agora, como no bojo do debate
político-jurídico sobre a temática socioambiental tem se solidificado a relação cidadania-
meio ambiente- dádiva, que transparece na construção normativa dessa questão. Dessa forma,
busco compreender o conceito de “natureza” formatado pela Constituição de 88 e reeditado
pelos Rppnistas e como esse novo entendimento tem favorecido essa correlação.
114
4.1 A Constituição de 1988 na instauração de um discurso fundador das RPPNs
O mito de origem das RPPNs encontra na Constituição de 88 a sua principal
inspiração. Batizada de “Constituição Cidadã”, por propor diversas mudanças institucionais
que abriram canais de comunicação entre o Estado e a sociedade, instaurando instâncias de
negociação e diálogo, a Constituição de 88 é sempre revisitada pelos Rppnistas, através das
constantes remissões ao Artigo 225:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações
(BRASIL, 2009c).
Depreendidas do Artigo 225 as noções “participação”, “cidadania”, “sociedade civil”,
“parceria” compõem um verdadeiro mantra, repetido, repetido sempre, alimentando o
discurso fundador das reservas privadas, o qual sempre se remete à Carta para legitimar a
existência das RPPNs no universo da conservação ambiental.
Nas narrativas sobre a gênese das RPPNs, seja em suas versões político-jurídica,
técnico-científica ou sob a forma de histórias pessoais relatadas por indivíduos que criaram
essas reservas, tais noções ganharam o mágico poder de dar às reservas sua eficácia
simbólica. Encantam os que articulam e os que ouvem o seu discurso. E aí está a sua força,
pois as RPPNs foram alocadas na esfera do sagrado, lugar onde ficam as coisas das quais não
se duvida.
Não é à toa que podem ser encontradas as mais diferentes explicações mágicas sobre a
conversão de um espaço natural profano em RPPN, conforme os relatos dos indivíduos que
criaram essas reservas.
Carlos Eduardo Farias, proprietário da RPPN Resgate I, conta como escolheu a área
que transformaria em RPPN:
Meu carro pegou fogo na estradinha local e, sozinho, não tinha condições de apagar o
incêndio. Uma pessoa que estava passando viu e veio me ajudar com o extintor, aí falei para
ela: se tiver alguma terra, troco, compro, faço qualquer coisa. Esse fogo é um sinal
(FUNDAÇÂO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
A advogada Sônia Wiedmann, conhecida pelos Rppnistas como “mãe das RPPNs”, em
razão de sua atuação na elaboração legal do conceito das reservas privadas diz:
115
Há algo de mágico que induz seus tutores a proteger essas áreas naturais. Deus é mais fácil de
ser encontrado ali do que em um templo erigido pelo homem para adorá-lo (WIEDMANN,
2002).
Compreender o mito de origem das RPPNs exige mais do que uma iniciação no tema.
As referências jurídicas, as justificativas centradas em argumentos da biologia da conservação
constroem um discurso sólido, impenetrável. Participação, cidadania, sociedade civil são os
conceitos que erguem este labirinto discursivo, nos conduzindo sempre a um mesmo lugar.
Acredito, porém, que estas noções, na medida em que são “desencantadas”, podem ser
um verdadeiro “abre-te-sésamo”; ajudam-nos a desenovelar a trama de sentidos que constitui
o campo social das RPPNs.
“Participação’, “cidadania”, “sociedade civil”, referências centrais nas atuais
discussões sobre a questão ambiental, assumiram uma grande proporção no universo das
RPPNs e podem ser encontradas facilmente em documentos, publicações e no discurso dos
Rppnistas.
Certamente a Constituição de 88 teve um papel muito importante na disseminação
dessas noções, não só em seu texto final. Seu processo de elaboração representou uma
emblemática articulação de diversos segmentos sociais na tentativa de fazer com que este
documento contemplasse suas demandas.
A força simbólica que o processo constituinte exerceu sobre o imaginário brasileiro
deve-se, em larga medida, por este ser representativo da instauração da democracia, da
ruptura definitiva com o regime militar.
Segundo Leite (2001), nos anos 80, a agenda política dos partidos e dos movimentos
sociais, bem como as análises que se debruçavam sobre esse período, foram fortemente
influenciadas pela idéia de que o Brasil vivia um processo de consolidação da sociedade civil
frente ao Estado. Presumia-se a expansão da cidadania, em termos da institucionalização de
novos direitos e de novas formas de ação política, consideradas participativas.
De fato, a Constituinte mobilizou uma considerável parcela da sociedade centrando
esforços para superar o estrito modelo de cidadania. Refiro-me à chamada “cidadania
regulada”, inventada sob o governo Vargas, que havia instituído um acesso diferenciado aos
direitos sociais através do direito do trabalho. Ou seja, circunscrevia a “cidadania” aos
segmentos sociais incorporados às relações de trabalho capitalista (LEITE, 2001).
116
A decadência do modelo corporativista e da lógica que privilegiava as categorias de
trabalhadores mais organizadas, com maior poder barganha, somada ao processo de
construção da institucionalidade democrática no Brasil colocaram na agenda brasileira a
“expansão da cidadania”, rumo a uma “cidadania universalizante”, uma medida de igualdade,
a realizar-se através de iguais direitos políticos, civis e sociais (LEITE, 2001)22.
A Constituição representou um grande marco na transformação do sistema jurídico
brasileiro, alterando o paradigma do direito moderno, centrado no indivíduo, uma vez que
reconhece a existência de direitos coletivos e os faz perder a invisibilidade. Ressalta-se,
porém, que não há uma ruptura total com esse modelo, uma vez que o indivíduo ainda
permanece como sujeito de direito (MARÉS, 2002).
Destacam-se na Constituição quatro questões, apontadas por Marés como responsáveis
por abalar as bases do direito moderno: (1) o direito autônomo e originário dos indígenas; (2)
o direito a um meio ambiente equilibrado; (3) preservação do patrimônio cultural brasileiro;
(4) função social da propriedade. De acordo com Marés, esses temas, apesar de terem sido
trabalhados separadamente no processo constituinte, têm ligação entre si, dando coerência ao
texto constitucional.
Os temas “direito a um meio ambiente equilibrado” e “função social da propriedade”
dizem diretamente respeito ao universo das RPPNs e representam a ambigüidade indivíduo-
coletividade que o caracteriza. Podem ser entendidos como limitações sobre a propriedade
privada, instituindo uma regulação específica sobre os imóveis rurais.
No plano da formulação legal, Leite identifica problemas na compatibilização entre a
definição dos direitos individuais, em sua matriz liberal, e a sua limitação ou regulação
visando a realização de interesses públicos (LEITE, 2001). Leite afirma que tal conflito não
está expresso claramente no texto constitucional, no entanto, se manifesta, por exemplo, no
constante adiamento de uma regulamentação específica da lei. Isto tem inviabilizado a
efetivação dos direitos23.
22 Destaca-se que a idéia de universalização da “cidadania”, através de medidas que assegurassem o direito de todos
usufruírem de um certo padrão de bem-estar (LEITE, 2001) convive no texto constitucional com a perspectiva
multiculturalista, que reverberou no texto da Constituição de 88. O processo constituinte consagrou-se pela intensa
mobilização de movimentos sociais e foi marcado pelas pressões populares em prol do reconhecimento de direitos fundados
na idéia de pluralismo, na tolerância aos valores culturais locais e suas formas de expressão, na multietnicidade, rompendo
com o direito único do Estado Constitucional (MARÉS, 2003).
23 Marés também compartilha dessa visão e afirma que quando a Constituição foi escrita os chamados “ruralistas” foram
construindo dificuldades no texto constitucional para que o artigo que dispõe sobre a “função social da propriedade” não
117
4.2 O público e o privado reconfigurados
Através do Artigo 225 o “meio ambiente” passa a considerado um bem jurídico, de
titularidade coletiva. Entende-se por bem jurídico tudo o que é suscetível de apropriação e
recebe proteção legal (SMANIO, 2009).
Ao ganhar o status de bem jurídico e se tornar de titularidade difusa24, o “bem
ambiental” adquire uma conotação híbrida, que, embora não esteja evidente no texto
constitucional, permanece subentendida. Tal hibridismo refere-se aos sujeitos de direito a
quem cabe a titularidade sobre esse bem. Todas as coisas, frutos, animais, plantas e minerais
podem ser objetos do direito individual, podem estar integrados a um patrimônio individual, a
terra (MARÉS, 2002). Entretanto, com a Constituição, através do Artigo 225, estes bens
passam a ser de titularidade difusa, pertencentes ao patrimônio mundial, são “bens de uso
comum” da humanidade. Essa é a concepção que prevalece e ganha cada vez mais espaço no
senso comum.
O bem natural, dessa forma, agrega dois tipos de titularidade. O que se observa na
esfera do direito individual é o seu aspecto tangível, a natureza expressa materialmente. Já os
valores ético-sociais que este bem representa, intangíveis e inalienáveis, são direito difuso.
Percebe-se na Constituição a noção de meio ambiente como “patrimônio”, na acepção
adotada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura), ao qual se deve assegurar a possibilidade de transmissão “intergeracional25”.
A UNESCO tem sido uma das grandes instituições responsáveis pela difusão e
atualização do conceito de patrimônio como conjunto de bens difusos que devem ser
assegurados através de medidas como o “tombamento”. Um bem é tombado quando é posto
pudesse ser aplicado. Segundo o autor, onde a Constituição diz como se cumpre a função social, acrescenta-se que será
necessário outra lei para que esta possa ter aplicabilidade. O artigo 185 afirma que a propriedade produtiva não pode ser
desapropriada, ou seja, transfere o conceito de função social da propriedade para o de produtividade, invertendo sua lógica.
Por força do texto constitucional somente serviriam para a reforma agrária áreas improdutivas do ponto de vista econômico
(MARÉS, 2003).
24 O bem ambiental é de direito difuso na medida em que não se pode precisar o número de seus titulares, porque essa
titularidade não se prende às pessoas, ou seja, não é individualizada, mesmo que este integre um patrimônio público ou
particular. A especificidade deste bem jurídico é que o proprietário individual de um bem protegido é titular junto com toda a
sociedade do direito coletivo difuso (MARÉS, 2002).
25 Wiedmann afirma que quando o Artigo 225 se refere à “preservação ambiental para as presentes e futuras gerações” está
sendo utilizada uma dimensão temporal que opera sob o “princípio da equidade intergeracional”, segundo o qual, “cada
membro de uma geração de seres humanos, como espécie, herda um patrimônio natural e cultural de gerações passadas. Estas
tornam-se beneficiárias e guardiãs, com o dever de transmitir esta herança às futuras gerações (WIEDMANN, 2006).
118
sob a guarda do Estado, que se torna responsável por conservá-lo e protegê-lo, em função do
seu valor histórico, artístico, arqueológico, paisagístico.
Em 1972, a UNESCO redigiu a Convenção do Patrimônio Mundial, em que
convergiram propostas de proteção dos patrimônios cultural e natural. A Convenção define os
tipos de sítios que os Estados podem submeter à apreciação do comitê para compor a Lista do
Patrimônio Mundial e explicita o papel dos signatários na proteção e preservação dos
patrimônios nacionais. O parâmetro básico para que os sítios figurem na Lista do Patrimônio
Mundial é seguir um ou mais dos seguintes critérios: ser exemplo representativo de estágio
histórico do planeta, incluindo traços vitais, processos geológicos e desenvolvimento de
formas terrestres; corresponder a testemunho de evolução ecológica e biológica em curso, de
flora e fauna, aquática ou terrestre; representar fenômenos ou zonas de beleza natural
excepcional; conter habitações naturais representativas, em particular de espécies ameaçadas
(BO, 2003).
A denominação Reserva Particular do Patrimônio Natural não imprime à área natural
assim identificada a condição de integrante da lista do patrimônio mundial da UNESCO.
Contudo, as RPPNs, como os demais áreas naturais, são assim reconhecidas pela constituição
brasileira, pela legislação ambiental e pelo discurso hegemônico sobre o meio ambiente em
razão da importância que se atribui a estes espaços para a coletividade, inclusive para as
“futuras gerações”.
A fala abaixo demonstra como a titularidade difusa do bem ambiental é percebida por
um proprietário de RPPN:
Por acaso essa foi a primeira RPPN do Espírito Santo. Depois soubemos que era a maior área
de Mata Atlântica do estado. Fomos ficando cada vez mais orgulhosos; percebemos que
tínhamos uma mata nossa, mas também de todo mundo (FUNDAÇÃO SOS MATA
ATLÂNTICA, 2007).
Observa-se como a relação entre o “meu” e o “deles” pode ser complementar e não
contraditória. Neste caso, fica claro que a natureza é um bem público, contudo, sem deixar de
ser particular. É importante se ressaltar, porém, que o status de “guardião” do Rppnista
possibilita uma hierarquização de um direito em relação ao outro. Em diversas falas observa-
se como o direito privado sobre a natureza tem preponderância sobre o público. Isto porque,
segundo estes atores, para que o bem natural seja usufruído por todos tem que ser guardado,
protegido por um proprietário particular.
119
Se o texto constitucional tem o efeito de patrimonializar os bens ambientais, a
legislação sobre RPPNs permite que o que é patrimônio seja privatizado. A fala abaixo é
elucidativa:
Há muitos anos vi um morro cheio de árvores floridas e disse: um dia vou ter um morro só pra
mim. Hoje sou dona de vários e estou tratando de trazer a paisagem natural de volta
(FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
Já no trecho de uma mensagem que circulou na lista de discussão se observa como a
apropriação particular dos bens naturais se faz através do controle sobre os mesmos:
Com relação a rios e cachoeiras, queria acrescentar que, embora estes sejam bens públicos, o
acesso aos mesmos depende da propriedade das margens. Ninguém é dono de uma cachoeira,
mas o proprietário das terras onde fica a cachoeira pode regular ou até mesmo vedar o acesso
à mesma, uma vez que o mesmo se faz por suas terras (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2005c).
É com base no Artigo 225 que os Rppnistas constroem argumentos para justificar a
sua atuação como “agentes da conservação”. É também a partir dele que as noções de
“participação”, “cidadania” e “sociedade civil” são relidas, à luz das questões trazidas pelas
reservas privadas, no que concerne aos simultâneos processos de patrimonialização da
propriedade privada e da privatização da natureza. Tais noções assumem a importante tarefa
de demarcar os terrenos do público e privado, do individual e coletivo, deixando claro como
estes domínios se separam e se entrecruzam. Aliás, é possível se dizer que essa ambigüidade,
que pode parecer em um primeiro momento incoerente, paradoxal, é constitutiva do fenômeno
das RPPNs.
Observa-se que os atores deste campo social lidam com o deslocamento dessas
fronteiras sem grandes problemas e articulam discursos que se contradizem se colocados
frente a frente. Contudo, na verdade, fazem bastante sentido, se pensados sob a lógica através
da qual os Rppnistas compreendem estes espaços socioambientais, entendendo-os como
particulares, mas patrimônio da humanidade; do indivíduo, mas destinados ao “uso comum”.
4.3 O “patrimônio” e a instauração de um circuito de dádivas
É curioso perceber como as duas acepções de “patrimônio” que fazem menção ao bem
ambiental operam sob o mesmo registro lógico-lingüístico: este é pensado enquanto riqueza
(simbólica e material), passível de ser transferido através de sucessão geracional. A herança é
120
uma idéia-chave para compreendermos esse sistema de trocas entre gerações e da “circulação
do dom”, os bens ambientais, através das RPPNs.
De acordo com Bourdieu (1997), as relações de parentesco perpetuam uma lógica
muito específica observada através do sistema de herança, a dádiva. Para este autor a razão
econômica ameaça a família, como unidade integrada. É através da herança que o patrimônio
é ao mesmo tempo distribuído e concentrado, mantendo-se a unidade dos herdeiros.
A criação de uma RPPN tem sido vista por inúmeros proprietários como uma forma de
fortalecer esse vínculo familiar. Constitui-se com a reserva um território unificado, interdito
às divisões entre os membros da família, que acaba integrando os herdeiros em torno da
proposta de conservação.
Desse modo, no momento da partilha dos bens, herda-se não apenas uma propriedade,
mas o “patrimônio natural”. Os pais deixam para os filhos o seu projeto, que de uma forma ou
de outra, deve ser perpetuado através da RPPN. Afinal, uma vez criada a reserva, o processo
não pode ser revertido.
O depoimento do Rppnista Helvécio Rodrigues é ilustrativo dessa questão:
Até já consultei advogado pra saber se há uma forma de não mexerem nisso quando eu me
for. Minha idéia é deixar uma estrutura tão bem montada que quando minhas filhas herdarem
a reserva ela continue funcionando e gerando renda, mesmo que não queiram tocar
(FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA, 2007).
Sandro Lima, proprietário da RPPN Roça Grande, em entrevista realizada em 2007,
fala sobre esse assunto:
Possivelmente, uma pessoa que tem filhos e netos ele sabe que quando ele morrer, aquilo que
ele preservou, ainda que os filhos vendam, vai continuar sendo RPPN. É muito comum o
patriarca que foi pioneiro, teve propriedade, que preservou, depois que ele morre, os filhos
dilapidam tudo, é tudo dividido, porque tá todo mundo morando numa cidade. Eu conheci um
município que tem muitas histórias, eu visitava muito, conheci muita gente lá. Foi
Leopoldina. Já teve sua fase áurea, depois foi... os pioneiros foram morrendo, os filhos
foram... tá todo mundo no Leblon, morando em São Paulo, Paris, mas foram dividindo as
terras. No caso da RPPN ele é mais que vitalício, ele é perpétuo. Porque, desde que criada a
RPPN, tem que ser respeitada aquela área. E aquele que é idealista ele pensa que, mesmo
depois de morrer, ele quer que a terra continue... pensa nas futuras gerações, né (LIMA,
2007).
Também há casos de RPPNs criadas por herdeiros após o parcelamento das terras. A
honra à memória dos parentes, a homenagem à lembrança do passado familiar têm sido,
recorrentemente, apresentadas como justificativas para a instituição das reservas. Em alguns
casos, busca-se redimir a “má conduta” dos antepassados, como as histórias de Leonardo
121
Silva e Gilberto Dantas, que criaram RPPNs nas áreas verdes que “escaparam” do
desmatamento empreendido pelos familiares.
É também conhecida a história de Sebastião Salgado. Valendo-se do seu renome e
prestígio como fotógrafo arrecadou junto a organismos internacionais uma pequena fortuna,
com a qual reflorestou a fazenda de sua família onde nascera, cujas matas haviam sido
derrubadas pelo seu pai para desenvolver a pecuária.
Por outro lado há aqueles que vêem na “atitude conservacionista” dos antepassados o
seu verdadeiro legado. O relato de Luiz Lindenberg é um exemplo:
Nossa família conserva um pedaço de Mata Atlântica há mais de 60 anos o meu avô já se
preocupava com a possibilidade de os recursos naturais acabarem na década de 1940 e assim,
proibia a caça e a pesca nos limitas de nossa propriedade e as madeiras que precisava ou
retirava das bordas das matas para minimizar os danos a floresta ou simplesmente comprava
de outros. Por este comportamento "estranho" foi várias vezes tachado de louco ou pão-duro,
mão-de-vaca, quando não deixava pescar ou caçar e ainda comprava madeira com tanta ali
muito mais fácil. Este comportamento foi seguido pelo meu pai e agora estamos nós os da 3ª e
4ª geração dando continuidade a estas "loucuras". A grande certeza é que estamos deixando
para as gerações futuras a maior herança que pode-se deixar para alguém, VIDA e VIDA
COM QUALIDADE é isto que nos estimula (LISTA DE DISCUSSÃO, 2006e, ênfase do
autor da mensagem).
Observa-se que neste ciclo de dádivas a reciprocidade dos herdeiros, ou “donatários”
se dá a partir da honra à família, seja redimindo ou enaltecendo sua memória através da
criação da reserva. A instituição da RPPN pode ser compreendida, então, como uma contra-
dádiva ao doador primeiro, aquele que deixou as terras como herança.
Por outro lado, quando é criada a reserva instaura-se um novo circuito dadivoso. Neste
momento, o donatário é a “coletividade”, a “humanidade”, categoria totalizadora que engloba
os sujeitos para além do tempo e do espaço.
Diferentemente do que se deixa aos herdeiros “de sangue”, o que se doa à
“humanidade” não é a natureza, a RPPN, mas o que se acredita que ela possa oferecer, a
manutenção dos mananciais hídricos, a produção do oxigênio e purificação do ar, a
estabilidade climática, as condições de vida no planeta, etc. É o que, no campo da
conservação ambiental tem sido chamado de “serviços ambientais”.
Embora seja uma entidade abstrata, na “humanidade”, donatária dos Rppnistas, se
encontram rostos conhecidos, os sucessores destes indivíduos. Filhos, netos, bisnetos são
chamados, com freqüência, de “herdeiros do planeta”. Estes, além de receberem o patrimônio
122
material gozariam, juntamente com os demais, dos benefícios trazidos pela natureza
preservada.
A expressão “herdeiros do planeta” também se refere a um programa lançado pela
Rede Colombiana de Reservas Naturais da Sociedade Civil (que é como são chamadas as
reservas particulares da Colômbia), dedicado à educação ambiental, mobilização e
“conscientização ecológica” dos filhos e filhas dos proprietários das reservas (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2005d). Na lista de discussão já houve diversas manifestações,
como a de Anne Lourenço, favoráveis à criação no Brasil de um programa semelhante:
Como mãe feliz de ter uma filha companheira e maravilhosa, criada na RPPN Manona e avó
coruja de dois jovens rapazes (10 e 12 anos) também topo o desafio dos Herdeiros.
Encaminharei o assunto para eles para uma consulta sobre a disponibilidade ou compromisso
de cada (LISTA DE DISCUSSÃO, 2007g).
4.4 As noções de participação, cidadania e sociedade civil sob o signo da dádiva
Através do Artigo 225, a Constituição de 88 tem apontado para um caminho, que nos
conduz diretamente ao reino da dádiva. Os novos direitos institucionalizados, as novas formas
de participação, têm se metamorfoseado sob a perspectiva do dom, principalmente através da
reinvidicação dos “cidadãos” em relação ao seu “direito de participar”. Verifica-se que o
chamado lançado à sociedade para atuar junto ao Estado na proteção ambiental tem
estimulado e legitimado práticas dadivosas, o que é claramente visível no discurso dos
Rppnistas. Não apenas o Estado deve garantir a sociedade um “meio ambiente adequado”,
esta deve também “participar”. Tal direito/dever permite que “participação” e “cidadania”
ganhem então um novo tom entre os Rppnistas, que através de uma decisão particular,
responderiam a esta convocação, “desinteressada e espontaneamente”.
Observa-se que o alargamento do processo democrático, que resultou no chamado da
sociedade para efetuar ações complementares à atuação do Estado, como se pode observar no
Artigo 225, no que se refere à questão ambiental, ocorreu lado a lado com a emergência do
Estado Mínimo (DAGNINO, 2004).
O capitalismo, em sua versão neoliberal, tem experimentado mudanças em escala
internacional, relativas à reestruturação produtiva, terceirização e globalização,
correlacionadas à redefinição da atuação dos Estados Nacionais, no que concerne aos padrões
de regulação das relações sociais e de trabalho. Essas novas condições da globalização
123
econômico-financeira têm sido absorvidas pelo imaginário político brasileiro como
justificativas para revisões da Constituição de 88, bem como para os processos em curso de
Reforma do Estado e para a desconstrução dos direitos (LEITE, 1999).
Como conseqüência, esse processo tem sido acompanhado da desconfiança em relação
ao espaço público e da rejeição do aparato institucional do Estado e dos seus agentes.
Entre os Rppnistas essas críticas ao Poder Público são direcionadas ao IBAMA, como
se observa abaixo:
Faz tempo que eu penso assim. Afinal, que contrapartida exatamente o Poder Público irá
oferecer nesta parceria? Até agora, nós profissionais do meio ambiente demos conta do recado
e a cada nova visita aos proprietários recomendamos o mecanismo particular voluntário da
preservação como o melhor substituto para a inútil e mal-amada reserva legal. As ONGs
também fizeram a sua parte, divulgando, publicando folhetos, organizando encontros,
viabilizando eventos, apoiando a criação de novas reservas etc. Os proprietários de terras,
nem vale a pena comentar a sua parte nessa parceria: a Terra abençoada para as futuras
gerações...
E o poder público vai ficar sempre e sempre de carrapato a sugar uns e outros?
A não ser por alguns abnegados Paulinhos e Célias isolados em escritórios regionais do
IBAMA, que, aliás, merecem trabalhar em ONGs e não no serviço público.
Imagine se um dia algum proprietário de RPPN precisar como já foi o caso em Petrópolis, da
ajuda do Poder Público para apagar um incêndio florestal em sua RPPN? Como é de seu
direito, esta ajuda deveria ser privilegiada (LISTA DE DISCUSSÃO, 2009e).
Laís Moura, que assina essa mensagem, é bióloga e proprietária de uma RPPN que
levou cinco anos para ser reconhecida pelo IBAMA. Além da sua evidente impaciência, que
parece ter origem no processo moroso que teve que enfrentar, vê-se no depoimento de Laís
um posicionamento que é recorrente, poderia até dizer, predominante, entre os Rppnistas: a
sobrevalorização das ONGs e dos indivíduos nas ações em prol do meio ambiente em
detrimento das ações do Estado.
Dagnino chama de “perversa” a confluência entre um projeto político democratizante e
o projeto neoliberal que marcaria, segundo a autora, o cenário de luta pelo aprofundamento da
democracia na sociedade brasileira. Estes dois projetos, ambos exigindo uma sociedade ativa
e propositiva, se utilizariam das mesmas referências, as noções de participação, cidadania e
sociedade civil para falar de distintos “projetos políticos26.” Tais noções se apresentam como
significantes que se prestam a constantes deslizamentos e deslocamentos de sentido, o que
pouco colabora para que estes sejam decifrados.
26 O termo “projeto político” é empregado por Dagnino para designar o conjunto de crenças, interesses, concepções de
mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos
(DAGNINO, 2004).
124
Para Dagnino, investigar tais noções, a maneira como são articuladas em seus
contextos discursivos, considerando suas múltiplas apropriações e os usos a que se prestam,
pode nos aproximar do “estado de coisas” em que se encontram os arranjos institucionais pós-
Constituição de 88 e dos “projetos políticos” que os conformam e os sustentam.
Da mesma forma, proponho-me a refletir sobre os usos dessas noções pelos Rppnistas,
uma vez que são elementos essenciais para a eficácia simbólica das reservas privadas.
É importante ressaltar que, embora o discurso dos Rppnistas sobre cidadania e
participação seja construído sobre o solo jurídico-político não se reduz a ele. Há que se
considerar como o sentido político, universalizante de cidadania é reintroduzido através das
relações sociais, como os arranjos institucionais que informam o papel do “cidadão” são
vividos e percebidos. E mais, é preciso se levar em consideração como este vocabulário
político convive com outros códigos de comportamento acionados nas esferas de ação desses
atores.
No âmbito da temática ambiental vários foram os instrumentos e formas legais
instituídos na defesa e na gestão do meio ambiente baseados nos pressupostos da
“participação” e “cidadania”. A legislação ambiental brasileira, especialmente as leis que
instituíram o SNUC e a Política Nacional de Recursos Hídricos, tornou possível que
representantes da “sociedade civil” tivessem assento nos Conselhos Gestores das unidades de
conservação, nos Comitês de Bacia Hidrográfica. Além disso, nos processos de licenciamento
ambiental de empreendimentos que tenham um potencial impacto sobre a natureza se exige a
“ampla publicização” dos documentos que avaliam os impactos ambientais a serem
produzidos e a realização de audiências públicas.
Entretanto, há que se considerar que o “campo ambiental”27, em que se constituem as
chamadas “instâncias de participação da sociedade”, é o resultado de “disputas pelo poder
simbólico de nomear e atribuir sentido ao que seria a conduta humana desejável e um meio
ambiente ideal” (CARVALHO, 2001, p. 37). Os debates, negociações, acordos não ocorrem
num ambiente simétrico de poder, pelo contrário. Dessa forma, os instrumentos de
participação nem sempre estão ao alcance de todos os segmentos da sociedade, nem é
garantido que sejam efetivos na descentralização das decisões.
27 A expressão “campo ambiental” inspira-se na reflexão de Bourdieu sobre o conceito de “campo social” (JUNQUEIRA,
2005; ZHOURI e OLIVEIRA, 2005; CARVALHO, 2001). De acordo com este autor, o campo social se estrutura sob uma
desigual distribuição de poder, medido pelo capital social que os sujeitos detêm e que os dispõe em pólos opostos (ORTIZ,
1983).
125
4.4.1 A noção de “parceria”
Com a consagração do “princípio de participação da sociedade civil”, através da
Constituição de 88 (DAGNINO, 2004), tornou-se cada vez mais comum, principalmente no
discurso das organizações não-governamentais, a co-relação entre “cidadania” e “parceria”.
Desde então, já é lugar comum a aposta na possibilidade da ação conjunta entre Estado e
sociedade para o aprofundamento democrático. Essa leitura da Constituição, que reconhece na
idéia de parceria a maior contribuição da Carta para a vida em sociedade, é predominante no
universo das RPPNs, como pode se verificar a partir dos textos que se seguem, escritos por
uma proprietária de RPPN e pela procuradora do IBAMA, respectivamente:
A Constituição Brasileira determina que o Meio Ambiente é um bem de todos e sua proteção
corresponde não apenas ao Estado mas a todos cidadãos. O estabelecimento de áreas
protegidas em terras particulares se destaca entre os esforços privados que visam
complementar a ação do Poder Público na criação e gestão de unidades de conservação. Mas é
preciso união e organização na busca de maior integração e intercâmbio de informações e
experiências para que formemos um bloco exemplar de cidadania e responsabilidade sócio-
ambiental (BRAZ, 2004).
A Constituição de 1988 apresenta sugestões teoricamente mais adequadas ao exercício da
democracia, com a descentralização do poder e a valorização das parcerias visando a melhor
qualidade de vida. O “Federalismo Cooperativo”, previsto no artigo 23, reparte entre a União,
os estados e os municípios a competência para proteger, fiscalizar e promover ações de
garantia do meio ambiente (WIEDMANN, 2004).
Dentro desse espírito participativo a constituição, no capítulo dedicado ao meio ambiente,
estabelece, de forma pioneira, que compete não somente ao Poder Público, mas também à
coletividade, o dever de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as
presentes e futuras gerações. A constituição consagra a finalidade última da sociedade, no que
tange à sua relação com o ambiente que a compõe: manter o ambiente ou reconstruí-lo para
que todos o tenham ecologicamente equilibrado. O Poder Público, nas suas instâncias
executiva, legislativa e judiciária, federal, estadual ou municipal, tem o ônus para tornar este
preceito factível. E para tanto, a participação da coletividade é indispensável (WIEDMANN,
2004).
A idéia de parceria com que operam os Rppnistas não isenta o Estado de suas
responsabilidades. Não é uma tentativa de substituí-lo, mas de compartilhar com ele as
responsabilidades sobre o meio ambiente. Isso não poupa, todavia, as críticas a sua inação e
ineficiência.
Assim, mesmo que sempre seja destacada a superioridade das RPPNs em relação às
demais UCs públicas, sem dúvida, admite-se que as reservas privadas foram absorvidas pelo
SNUC tendo um papel complementar a desempenhar no sistema de unidades de conservação.
É o que podemos observar, logo abaixo, em um trecho de uma cartilha, escrita por dois
Rppnistas e lançada pela UNESCO, com o objetivo de esclarecer o que são as RPPNs:
Mas a relevância destes mais de 500 mil hectares está no fato de que representam os esforços
concretos e a decisão voluntária e generosa de centenas de cidadãos, empresas e organizações,
126
que mesmo sem muito apoio ou incentivo, despendem tempo e recursos para cuidar de suas
reservas, dando sua parcela de contribuição, em caráter complementar, aos esforços de
conservação da natureza de nosso país.
As RPPN têm, cada vez mais, servido como um instrumento adicional para o fortalecimento
do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, permitindo em várias situações a
manutenção de um grau mais elevado de conectividade da paisagem natural, assim como o
incremento da representação de áreas prioritárias para a conservação,ainda não contempladas
pela rede de áreas protegidas públicas.
Existem ecossistemas ou tipos de vegetação nos quais a única unidade de conservação
existente é uma RPPN. Mais da metade das RPPN está no entorno ou no interior de alguma
unidade de conservação pública. No caso das Áreas de Proteção Ambiental, onde a
propriedade da terra continua particular, a criação de RPPN representa uma considerável
adicionalidade em termos de proteção do patrimônio natural.
A palavra chave na relação entre UC públicas e RPPN deve ser “complementaridade”. Se
considerarmos a necessidade da formação de “corredores ecológicos” (paisagens em mosaico,
apresentando unidades de conservação combinadas com diferentes usos do solo que sejam
permeáveis ao trânsito de animais e sementes), as RPPN aparecem
como uma estratégia fundamental para esta finalidade.
Cabe ao poder público a missão de estabelecer grandes áreas protegidas, que assegurem a
proteção de amostras representativas de ecossistemas e a manutenção dos
processos ecológicos. No caso das unidades de conservação do setor privado caberia, em
caráter complementar, formar uma espécie de rede de proteção ou amortecimento de impactos
no entorno dos parques e reservas públicas, promovendo a permeabilidade ecológica em
paisagens fortemente fragmentadas, como é o caso da Mata Atlântica (MESQUITA e
WEYLAND, 2004).
A necessidade desta “parceria” é freqüentemente reiterada e compreendida como um
direito/ dever da “sociedade civil” (neste caso, ONGs e indivíduos que criam as RPPNs).
Porém os Rppnistas têm entendido que esse “pacto” que efetivaria uma parceria ideal
tem sido quebrado, à medida que não obtêm do Poder Público o apoio na gestão de suas
reservas, uma obrigação prevista em lei. Dessa forma, diversos proprietários de RPPNs
(sobretudo os indivíduos) dizem sentir-se desamparados e destituídos de seu direito a ser
“cidadão”, neste caso, ser “parceiro” do Estado nesta empreitada. Neste contexto é acionada
outra acepção de “cidadania”, como estratégia de reivindicação desse direito à “parceria”. É o
que se observa na mensagem abaixo:
Vamos gente, vamos cobrar dos nossos dirigentes as ações devidas. Vamos insistir que
aceitem as nossas incontáveis contribuições. Vamos auxiliar e colocar ordem neste caos. É
nosso direito de cidadania. Não desistiremos. Precisa se expressar para que a mudança seja
efetuada (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2009f).
4.5 Uma leitura dadivosa da “cidadania
O trabalho gratuito, voluntário em relação ao meio ambiente, tem sido bastante
valorizado entre proprietários de RPPNs e é uma possibilidade de destaque em relação aos
“Profissionais do Meio Ambiente”.
127
Observa-se que, nas disputas sobre qual ator social é mais habilitado a agir em
determinadas circunstâncias, identificadas quando se articula a Comunidade Rppnista, busca-
se definir o “agente da cidadania”, o que estaria apto para agir em prol do meio ambiente, ou,
mais especificamente, quem deveria ter vez e voz para falar sobre as RPPNs.
Verifica-se um embate dessa natureza em uma discussão que ocorre na lista de
discussão. Daniel Justino, proprietário de RPPN e autor da mensagem a seguir, responde a
críticas que havia recebido sobre e-mails, os quais vinha enviando, e que não estariam
restritos ao tema das RPPNs. Estes estariam desviando o foco das discussões. O debate refere-
se, portanto, à definição de quais os assuntos pertinentes para serem abordados ali
Daniel afirma que “os interesses de quem tem um espírito ambientalista” não podiam
se reduzir exclusivamente ao assunto RPPN. E questiona a legitimidade de quem o está
criticando:
Bom pessoal. Já que o assunto é este, ainda gostaria de ver a manifestação de outras pessoas.
Com certeza, estou na berlinda, e então fico aqui para poder receber as pedras. Na boa. Só que
queria ver pessoas de RPPNs falando. Eu acho que um Rppnista não se preocupa apenas com
a sua RPPN.
Eu não conheço o Guto Carvalho, entrei no site do Dedo Verde, e não sei o que é. Se ele é
Rppnista também ou não. Enfim...
Pessoas que vêem na CONSERVAÇÃO, forma de levar suas vidas ($$$$$$$$) não são a
maioria deste grupo.
Então, além da opinião dos colegas funcionários de ONGs e de empresas da área ambiental,
eu também queria saber como pensam os proprietários de RPPNs
Não sei se o Guto é ou não. Mas digo que ele não é a visão do grupo.
Porque se eu me calar, queria que realmente fosse porque a maioria (DEMOCRACIA) pensa
assim.
Daí , com maior prazer, jamais voltarei a enviar UM SÓ EMAIL QUE NÃO TEM A
PALAVRA RPPN OU ESTA UC COMO OBJETO PRINCIPAL!
Não tô querendo ser chato não. Mas a minha SAGA, de ecologista é esta mesmo:
PROVOCAR!!! Então provoco, não por maldade. Por DEMOCRACIA!! (LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006f, ênfase do autor da mensagem).
Ao argumentar, propondo uma distinção entre “pessoas de RPPN” e as que “vêem na
conservação forma de ganhar suas vidas”, excluindo da categoria Rppnista os profissionais
das ONGs, Daniel busca atribuir exclusivamente aos proprietários de RPPNs a autoridade
para dizer o que é relevante ou não para o tema das reservas privadas. Faz isso colocando em
questão a profissionalização do ambientalismo.
Assim, vê-se que o dom é uma ética que dá sentido às ações dos Rppnistas: quanto
menos se espera, mais poderosa é a ação.
Contudo, é tríplice a obrigação: dar, receber, retribuir, de forma que a reciprocidade
deve acontecer, em um momento inesperado, “surpreendendo” o donatário primeiro. O
128
comentário a seguir é ilustrativo de como o rompimento na cadeia da reciprocidade pode
gerar desconforto entre os Rppnistas.
Dos “Profissionais do Meio Ambiente”, como os técnicos de órgãos ambientais,
espera-se o aconselhamento, a orientação técnica, o correto desempenho de suas funções.
Lindomar de Sousa, cobrando uma atitude destes, uma maior atuação na lista de discussão,
repreende o seu “silêncio” na internet, que os colocaria na posição de meros observadores e
até “espiões” e a sua apatia em relação à suas responsabilidades profissionais:
Prezado Beto e amigos da lista. Sempre achei que esta lista envolvia somente proprietários de
RPPN , fico surpreso em saber que existem outros, especialmente funcionários do IBAMA, e
que estes; tirando a nossa digníssima Dra. Sônia que sempre nos apoiou e tem nos ajudado
sempre que possível; nunca vi uma simples manifestação dos mesmos.Você colocou muito
bem, se fazem parte da lista devem também se manifestar, ou será que somente para saber o
que pensamos, como agimos e etc espero que isso não se trate de "espionagem" pois seria
muito desagradável, utilizarem de tão baixo movimento. Posto isto. Aproveitando que
existem, funcionários deste órgão "PÚBLICO" na lista, solicito saber se há, já disponível
algum modo de requisitar ao Ibama a doação de madeiras apreendidas que estão apodrecendo
nos pátios da Policia Florestal de diversos estados, especialmente em Mato Grosso do Sul. Sei
que a REDE GLOBO, recebeu uma quantidade de madeira apreendida pelo Ibama e que a
mesma foi utilizada na serie "MAD MARIA". Será que nós que sempre defendemos o meio
ambiente poderíamos ter o mesmo privilegio que a toda poderosa"GLOBO"? Será que algum
dia, tenho 40 anos, verei em num jornal “Rppnistas recebem apoio para preservar o nosso
Brasil, será?? Salve o Renato Russo - Será que vamos ter de escolher entre o medo de
preservar ou ter de morrer, como o nosso saudoso amigo do Rio de Janeiro. Será???? (LISTA
DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2005e, ênfase do autor da mensagem).
Como eu já havia adiantado, não só entre os Rppnistas, mas de uma maneira geral, no
senso comum, o Poder Público tem sido alvo de descrença e desconfiança. Da mesma forma,
o espaço público não tem sido mais o local privilegiado das negociações. Muito se tem falado
do esvaziamento do conteúdo público e democrático das agências governamentais, as quais
vêm se reduzindo a aparelhos formais de poder, meros apêndices burocráticos (SILVA e
LEITE, 2009).
Mas o que percebo no universo das RPPNs é que os Rppnistas transitam entre os
espaços público e privado na efetivação de suas ações. Conforme foi discutido na análise
sobre a construção do conceito de RPPN e como os Rppnistas se inseriram neste debate, vê-se
que o espaço público ainda continua sendo uma importante arena de negociação. Foi possível
perceber como vários Rppnistas participaram dos trâmites burocráticos altamente
institucionalizados que envolviam a elaboração dos documentos legais. Citam-se:
- Instrução Normativa no 24/2004, sobre os procedimentos administrativos para o
reconhecimento das RPPNs federais;
129
-Decreto no 5.746, de 5 de abril de 2006;
-Roteiro Metodológico do Plano de Manejo.
No entanto, os projetos das RPPNs são desenvolvidos de maneira estritamente
individualizada, e, mesmo, que estejam inseridos em programas mais amplos, como de
educação ambiental e trabalhos que envolvam comunidades vizinhas às reservas, ainda assim,
são escolhas particulares; referem-se a projetos dos indivíduos.
Há que se considerar que a circulação dos Rppnistas na esfera pública tem se
restringido à participação apenas no que concerne à normatização e regulação das RPPNs. E o
que se busca nessas instâncias governamentais é assegurar o direito a ter direito sobre a
RPPN: direito de dizer o que ela é, o que representa, a que fins se presta.
Neste contexto de atuação, “cidadania” tem um sentido político, como se observa na
convocação de Bruno Valverde:
Vivemos um momento que talvez seja único na história das RPPNs. Temos a real
oportunidade de influenciarmos, de maneira responsável e conseqüente os rumos e o futuro da
conservação da biodiversidade em terrenos particulares. Ou seja, há muito trabalho pela
frente! Precisamos de gente com disposição para assumir este trabalho, gente com garra e
compromisso com a natureza (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2009g).
Convive com a conotação política de “cidadania” uma leitura privatizadora,
fortemente relacionada ao terreno da moral. Leite tem observado na sociedade brasileira esse
processo de ressemantização dos direitos civis, concebidos como patrimônio exclusivo dos
“cidadãos de bem” (LEITE, 2001).
É bem instigante como essa valorização de uma correção moral pode chegar aos
extremos. Chega-se, até mesmo, a estabelecer analogias entre a atuação do Rppnista e uma
espécie de “sacerdócio”. É o que se verifica na mensagem abaixo, em que um participante da
lista de discussão parabeniza um proprietário de RPPN por ter conseguido reverter um
processo de ocupação de sua RPPN por sem-terra:
Sua participação no processo foi fundamental, enfrentamos juntos bons e não tão bons
momentos, mas sempre conscientes e determinados na nossa luta. Você foi o exemplo vivo
aquele que saiu na frente criando a primeira RPPN naquela região, um baluarte da
conservação em terras privadas, inclusive enfrentando todo tipo de preconceito, ameaça,
incêndio criminoso, invasão etc. Você e sua família engrossavam as fileiras da Preserva e na
maioria das vezes era o elo entre os proprietários. Sua participação foi fundamental. Aliás nós
como discípulos de Jesus Cristo da Conservação somos apenas instrumentos da sua obra.
O importante é que fomos instrumentos de Deus para podermos contribuir um pouco na
conservação deste mundo criado com tanta perfeição e carinho fica agora o desafio de uma
gestão em parceria, envolvendo os proprietários e o poder público (LISTA DE DISCUSSÃO
SOBRE RPPNs, 2008a).
130
Se por um lado essa apropriação particularizadora, privativa, moralizante da noção de
“cidadania” faz emergir o “cidadão do bem”, produz também o seu oposto, o “não-cidadão”.
Leite, ao tratar do tema violência e criminalidade violenta no Rio de Janeiro fala sobre
a emergência de um pensamento refratário à extensão dos direitos de cidadania a novos
segmentos sociais, como os “favelados”, vistos como incompatíveis com a segurança pública.
Neste contexto, a revalorização dos direitos civis tem se distanciado da universalização das
liberdades e garantias individuais e da democratização do acesso à justiça no âmbito da
cidade. Os direitos civis têm sido reivindicados como patrimônio de alguns (LEITE, 2001).
Os “cidadãos”, identificados com trabalhadores, eleitores, contribuintes estariam de
um lado; do outro lado, poderíamos ver os subcidadãos, moradores do morro, atuando no
campo da ilegalidade, no território da “não-cidadania”.
Se os moradores do morro, favelados, marginais, indistintamente, sofrem um processo
de criminalização, isto ocorre também com os integrantes de movimentos sem terra, tratados
como “Inimigos da Natureza” pelos Rppnistas e, acrescento com a minha observação,
“inimigos da propriedade privada”.
O clamor por uma “cidadania diferenciada” de que fala Leite, que distingue os
merecedores e os não merecedores do título de cidadão pode ser encontrado na voz de alguns
Rppnistas.
Em uma mensagem da lista de discussão, que se refere à denúncia de graves danos
ambientais causados por um programa de eletrificação rural, é possível se observar como a
noção de cidadania como “direito a ter direitos” não é pensada de maneira universalizante. O
fato é que seria beneficiado pelo programa um casal de posseiros, considerados pelo autor da
mensagem como desprovidos de direitos, em razão da sua situação de ilegalidade, já que não
eram proprietários da terra que ocupavam:
Os beneficiados: um casal de posseiros há dois anos no local e com passagem pela polícia
ambiental e civil (com endereço de comércio de sucata e telefones na capital) e que, nas horas
vagas ameaçam de morte quem não lhes convém, além de três outros posseiros instalados
neste ano. Salienta-se que eles colocaram cercas dentro da mata, feitas de arame farpado
(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2005f).
Observa-se a ênfase dada ao comportamento desviante, criminoso dos acusados, o
qual não se limita à ocupação de uma área sobre a qual não detinham o direito de propriedade,
mas também se refere à ameaça que estes representam à integridade física dos demais
membros da sociedade.
Estes também são considerados desviantes porque descumprem obrigações
fundamentais do “cidadão”: ter documentação e portar identificação. Conforme se pode
131
observar na fala abaixo, a noção de “cidadão” não é acionada como forma de reivindicação de
direitos, mas, pelo contrário, é utilizada para desqualificar o indivíduo à obtenção de direitos
sociais:
Qualquer cidadão liga para um 0800 e pede luz, sem critério, sem identificação
(RG/CIC) e sem documentação da área, sem projeto, nada. O restante fica para a
hierarquia contratual, que se for competente, confere in loco. Também incorreu na
difusão de uma falsa idéia de que nenhum cidadão brasileiro ficaria sem luz. Deveria
ter acrescentado cidadão brasileiro "legalizado" (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2005f).
DaMatta (1997) fala a respeito do emprego dessa noção de “cidadão”, típica da
sociedade brasileira, que possui um caráter ofensivo, utilizada para inferiorizar o outro. Nesse
caso, o tratamento impessoal serve para identificar alguém em uma situação de desprestígio,
que não se insere da maneira “adequada” na trama das relações sociais.
Parece-me que tal noção de cidadania, entendida como patrimônio dos “homens de
bem”, que pode ser encontrada no discurso de muitos Rppnistas, resulta de uma apropriação
particularista da idéia de “participação social” lançada pelo Artigo 225 da Constituição
Federal. As ações coletivas, sob essa perspectiva, são compreendidas como dever moral, ou,
para utilizar um jargão muito em voga, “responsabilidade social” do “cidadão” para com a
comunidade.
Ao serem transferidas para o terreno privado da moral individual (DAGNINO, 2004),
a “cidadania” e a “participação social” (neste caso, noções correlatas) são, mais uma vez,
deslocadas para o universo da dádiva, que remete à honra da família e do patrimônio,
constituindo a propriedade privada como um direito dos “homens de bem”.
4.6 No limiar do dom e do sistema mercantil
Na lista de discussão tem sido possível acompanhar um debate que extrapola as
fronteiras do campo das RPPNs, a valoração econômica dos bens ambientais. Trata-se da
associação entre os valores econômicos e os bens e “serviços ambientais”. De acordo com os
princípios da valoração econômica, para que a “insustentabilidade” dos sistemas produtivos
seja demonstrada é preciso se contabilizar os valores não expressos nas planilhas de custo das
132
atividades econômicas, como a contaminação do lençol freático pelo uso de agrotóxicos e a
deterioração da saúde humana pelo contato com tais substâncias, a depreciação do solo, etc
(MARQUES e NICOLELLA, 2006). É o que se tem chamado de “internalizar as
externalidades”.
O processo de agregar valor de mercado à natureza tem se baseado no entendimento
que os impactos ambientais de determinadas atividades produtivas são externalidades geradas
pelo próprio funcionamento da economia não captados na esfera de funcionamento do
mercado e que poderiam ser estimados e quantificados em termos monetários.
Seria necessário, portanto, que recursos naturais e os impactos ambientais tivessem
seus valores economicamente determinados. Dessa forma, se poderia ter mais controle sobre a
utilização dos bens naturais “antes que se ultrapassasse os limites da reversibilidade”
(MARQUES e NICOLELLA, 2006).
Há muita controvérsia em relação ao modo de atribuir valores aos ecossistemas.
Segundo Marques e Nicolella (2006), os economistas sempre fazem referência ao mercado, já
os ecólogos fazem menção à intangibilidade de valores como o ciclo de carbono e da água ou
às informações contidas nos recursos genéticos.
Porém, o pagamento ou compensação pelos serviços ambientais seria uma forma
inversa de se calcular o valor dos bens ambientais, não através do que se utiliza e dos danos
que se causa ao meio ambiente, mas daquilo que se poupa com a conservação de áreas
florestadas. Pauta-se na valoração monetária dos bens naturais para se calcular uma espécie de
recompensa àqueles que protegem a natureza. Neste caso, tenta-se valorar não o bem natural
em sua materialidade, mas o que ele proporciona e que é intangível.
Esse tipo de cálculo se refere ao modelo mercantil, em que há busca de equivalência
nas trocas. Porém, o que se observa é que esse tipo de retribuição nem sempre é aceito pelos
Rppnistas, como se verifica nas falas abaixo:
Eu acredito que os proprietários poderiam ter um “desconto” nas contas de energia elétrica, ou
água, ou de impostos, ou maiores facilidades para poder explorar sua reserva em hotelaria,
parque turístico etc. Francamente, essa idéia de ser pago para manter uma RPPN não me
parece realista ou adequada. (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2008r).
Mas diversos Rppnistas se posicionam a favor do pagamento por serviços ambientais.
Se fizéssemos uma análise rápida e superficial dessa situação, tendo como parâmetro a lógica
utilitária da razão econômica, certamente, seríamos levados a concluir que os Rppnistas
133
querem a sua retribuição, esperam que, através do pagamento pelos “serviços ambientais
prestados” por sua reserva, a dívida da “humanidade” para com eles deixe de existir.
Contudo, nos depoimentos da lista de discussão, bem como nas próprias entrevistas
que realizei pude observar que essa forma de reciprocidade não extingue o débito. Antes, esta
se assemelha mais a uma contra-dádiva. Na verdade, busca-se manter este estado de dívida
deliberadamente, não encerrando o circuito do dom.
Sendo assim, percebo que o sistema econômico tem sido visto como meio de fazer
circular a dádiva. Este pagamento, entendido como uma honraria, uma forma de prestígio e
distinção revela-se também uma forma de manutenção das RPPNs.
Outros “pagamentos”, objeto de desejo dos Rppnistas, podem ser pensados sob essa
perspectiva: o ICMS Ecológico, a doação de madeiras apreendidas em desmatamentos ilegais
para serem utilizadas em cercas e placas da RPPN.
Chamo atenção para a maneira como os recursos financeiros são compreendidos na
falas acima, como apoio, colaboração, o que pode evidenciar como não se procura a
equivalência e o estado de dívida se mantém. É o que se verifica através dos depoimentos
abaixo:
No meu entender temos que buscar aumentar os benefícios para os proprietários de RPPNs,
seja por serviços, projetos de gestão, compensações e outras maneiras de apoios públicos e
privados. Ultimamente, venho colocando sistematicamente este apelo na lista, tentando
sensibilizar os nossos representantes, associações e CNRPPN. Tenho sido pouco apoiado,
talvez até uma pregação no deserto, mas tenho certeza de que aqueles proprietários que não
são ONG e não tem acesso a apoios internacionais sabem das dificuldades de preservar o
patrimônio natural deste país (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2009h).
Creio que a principal ideologia das RPPNs e seu aspecto valioso é seu caráter voluntário. As
RPPNs são unidades de conservação definidas pelos próprios cidadãos no exercício de sua
cidadania. Acho, portanto, que o movimento das RPPNs não pode perder nunca esta
independência e seu sucesso não deve depender de apoios financeiros ou outras atitudes dos
órgãos oficiais, embora estes sejam sempre bem-vindos, mas como coisas acessórios e não
essenciais (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNS, 2004).
Denomina-se ICMS Ecológico o conjunto de procedimentos econômico-
administrativos que trata do rateio entre os municípios de recursos do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. O ICMS Ecológico é calculado a partir de
critérios quantitativos e qualitativos, relativos às características ambientais do município.
Quantitativamente, leva-se em conta o número de áreas protegidas do município em relação à
sua superfície total. Qualitativamente, considera-se a existência de espécies de fauna e flora
(LOUREIRO, 2004).
134
O ICMS Ecológico foi primeiramente implementado no estado do Paraná, já tendo
sido, posteriormente, adotado em outros estados brasileiros. Cada estado cria instrumentos
legais para regular o ICMS Ecológico, incluindo, as regras de repasse dos recursos para as
unidades de conservação.
Conforme o Rppnista Sandro Lima afirmou em entrevista, o ICMS Ecológico deve ser
utilizado pelos proprietários de RPPNs na própria reserva. Existe um controle sobre o
emprego dos recursos:
Isso aí, evidentemente não é uma remuneração, assim, aberta. É alguma coisa voltada à
atividade de preservação, ao meio ambiente. Então, no estado do Rio, com o surgimento do
ICMS ecológico, cada município tem que criar um conselho ambiental, um conselho
municipal de meio ambiente. O dinheiro, que a partir de 2009, com base em 2008 vai chegar
para os municípios, vai chegar num percentual pequeno, no ano seguinte aumenta um pouco,
no terceiro aumenta um pouco. Vai ficar num percentual menor do que no Paraná, mas no
rateio, os municípios daqui vão receber muito mais do que no Paraná. Tomando por base
dados de 2006, o ICMS no Paraná chegou próximo de 10.000. Vamos arredondar, 10.000. Do
Rio de Janeiro, 15, uma vez e meia. No Paraná são mais de 400 municípios, eu posso me
equivocar, 404 ou 440. Há uma inversão aí. No Rio de Janeiro são 92. Então, considerando
que a nossa arrecadação é uma vez e meia, mesmo nosso percentual sendo menor para o
ICMS verde, que aqui tem um nome diferente, lá é ecológico, aqui é verde, não importa.
Embora seja um percentual menor, lá eles têm que dividir, em tese com quatrocentros e
alguma coisa municípios, nós aqui, com um quinto disso. Então, no rateio a tendência é o
município daqui... então o estímulo para as prefeituras locais... então cada município tem que
criar um conselho. Esse dinheiro virá, mas não para o caixa do município. Virá para um fundo
municipal de meio ambiente. E, segundo a lei, o mais importante são justamente, as áreas
preservadas. Depois, vamos dizer assim, o complexo hídrico, vamos dizer assim. São os
municípios que têm uma quantidade maior de água, de mananciais, que estarão melhor.
Depois, a parte de resíduos sólidos, lixo, em um percentual menor. Eu diria que Rio Claro está
muito bem colocado, porque no âmbito do Rio de Janeiro, eu diria que é um município em
termos de água mais estratégico. Porque 85% da água que temos aqui para abastecer a capital
vem do Rio Paraíba. Mas é um rio interestadual, nasce em São Paulo. Os outros, de 12 a 15%
vêm do rio Piraí, que nasce em Rio Claro. Então, o rio municipal, que abastece o Rio de
Janeiro, sem contar a represa da Light que, a represa, mais as terras periféricas da Light
compreendem um quarto do município de Rio Claro. A área de preservação e água. Então me
parece que Rio Claro está muito bem posicionado. Eu faço parte desse conselho municipal,
que deve ter em torno de treze, quatorze pessoas e colegiado evidentemente com a prefeitura,
com a posição mais destacada pra direcionar, mas fora do caixa 1 da prefeitura. É voltada à
preservação. E nada impede que com o decorrer do tempo, parte seja por exemplo... isso eu
advogo, inclusive, melhorar a estrada de acesso a RPPN. Porque é o que pregamos há 10
anos. É chamado o efeito demonstração. Quando alguém perguntar, mas porque que a estrada
do fulano lá foi melhorada e a minha não? Mas lá tem RPPN. Vai gerar uma curiosidade no
mínimo, né? Não é verdade? Então, não precisa ser um benefício dentro da propriedade. Mas
nada impede que seja. Por exemplo, cercar a reserva. Botar placas de sinalização. Trabalho de
educação ambiental, que eu já fiz e a prefeitura não deu o menor apoio (LIMA, S., 2008).
É possível se afirmar que o ICMS Ecológico, além de fazer circular o dom, posto que
pode ajudar a financiar a manutenção das RPPNs e as atividades ali desenvolvidas, também é
capaz de gerar novos circuitos dadivosos, as novas reservas que são instituídas a partir dos
incentivos dados pelo governo estadual.
O Paraná é o estado com o maior número de RPPNs do Brasil. Segue um mapa onde
se pode visualizar bem a disposição das reservas no país:
135
Figura 8
136
A explicação que tem sido dada pelos Rppnistas com que pude conversar sobre a razão
do estado do Paraná possuir tantas RPPNs refere-se à implementação do ICMS Ecológico
pelo governo estadual. Destaca-se que das 195 RPPNs do estado do Paraná, 11 foram criadas
na esfera federal e 184 pela esfera estadual.
Para Sandro Lima:
O ICMS ecológico, as informações que temos é que surgiu no Paraná. Havia municípios
periféricos à capital cuja área praticamente estava toda ela em área de preservação
permanente. Então eles só serviam para dormitório da capital, Curitiba, sem condições de se
desenvolver e fornecer água, porque lá estavam os mananciais principais. Até que um prefeito
um dia parou e pensou: será que tem mais gente igual a mim, na mesma situação. Eu estou
fadado ao atraso. Porque nós não podemos crescer pra garantir o sucesso da capital e
conseguir juntar mais uns tantos prefeitos que foram ao governo do estado. Então, nós temos
que receber uma compensação. Nós não podemos desmatar, não podemos crescer, pra garantir
o fornecimento de água, de energia elétrica pra vocês, etc. Que compensação? Alguém então
do Instituto Ambiental do Paraná, que se assemelha no estado de Minas ao IEF, ou ao IEF
aqui do Rio teve uma idéia. O ICMS que é um tributo estadual. Ele tem percentual que é o
fundo de participação dos municípios, é dinheiro que vai para os municípios. Que
normalmente vai numa escala compreendendo o território, população, a importância do
município na arrecadação do ICMS. Então, o município que tem mais arrecadação, o
município que tem mais população, que tem mais território ele tem uma fatia maior. Então, só
que dentro deste contexto do fundo de participação dos municípios, há uma rubrica que pode
sofrer uma modificação, que seria o percentual do percentual. E alguém então teve a seguinte
idéia, por que nós não criamos uma sub rubrica, vamos dizer assim, de ICMS ecológico.
Estabelecemos um ranking, que o Instituto Ambiental do Paraná passa a controlar. Por
exemplo, aquele município que criar maior unidades de conservação. Aí poderia ser APA,
RPPNs. O que tiver uma coleta de lixo, o que tiver projetos ambientais, trabalho de educação
ambiental junto às escolas, enfim, todo um ranking de atividades a favor do meio ambiente,
então eles terão uma participação maior neste fundo de participação dos municípios. Então o
instituto ambiental do Paraná preparou uma cartilha, um regulamento, vamos dizer assim, e a
partir de então... e é um exemplo que eu conheci. Porque quando eu visitei Lunardeli, o
município, se não me falha a memória ele deveria ele deveria estar entre 6000 e 7000
habitantes. Era deficitário, até que criou duas RPPNs. E em função de ter criado duas RPPNs
virou a conta do município, passou a superavitário. O presidente da associação de lá e que me
acolheu, chamou o prefeito da cidade para me conhecer, tal a importância que tinha a RPPN
para a cidade. Então, o interesse para os prefeitos no Paraná passou a ser a favor da criação de
RPPNs. Ta a explicação aí porque o Paraná tem tanta RPPN estadual (LIMA, S., 2008).
Fica claro que a decisão pela implementação do ICMS Ecológico no Paraná se refere
ao interesse político pela geração de receita para os municípios. No entanto, há que se
considerar que, no funcionamento do sistema econômico, quando o dinheiro circula na
sociedade, ele faz circular com ele realidades materiais e imateriais pelas quais ele é trocado e
nas quais ele se troca (GODELIER, 2001).
Assim, os recursos arrecadados alimentam os caixas das prefeituras paranaenses, mas
também permitem que essas reservas sobrevivam, demonstrando como o sistema mercantil e
o sistema da dádiva se cruzam e se sobrepõem no campo das RPPNs.
Para Bourdieu (1997), na “economia das trocas simbólicas” (uma “economia não-
econômica ou “economia da oferenda”), cujo paradigma é a troca de dádivas, existe o “tabu
137
da explicitação”. Diz isso se referindo às “verdades duplas” que são observadas nas trocas
dadivosas, a obrigação-desobrigada, o interesse-desinteressado de que nos fala Mauss (2002).
Segundo Bourdieu, este tabu se refere à recusa da declaração do valor monetário do dom, bem
como à negação do interesse e à afirmação da espontaneidade do ato de doar.
É o “tabu da explicitação” que faz com que o interesse pessoal (não me restringindo
aqui a ganhos financeiros, lucro econômico) que transparece nas histórias de vida, as quais
pude ouvir, esteja submetido e controlado pelo discurso altruísta e desinteressado. Seguem
algumas frases emblemáticas a este respeito extraídas de e-mails da lista de discussão:
Comprei uma área, exclusivamente com este sonho, de deixar para a humanidade uma parcela
de floresta preservada e vejo que os problemas, neste meio, são muito maiores...(LISTA DE
DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2006g).
Convivo com um grupo de pessoas extraordinárias que transformam parte de seu patrimônio e
do seu conhecimento em bem de toda humanidade ...(LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE
RPPNs, 2004d).
Em geral, o prestígio, a distinção, um movimento de reciprocidade da sociedade em
direção aos Rppnistas são recusados. Certamente, alguns Rppnistas deixam claro que esperam
o reconhecimento, os louros por seu dom, mas não como uma promoção pessoal. Fala-se na
“divulgação” de sua experiência como uma forma de sensibilização de outros possíveis
candidatos a Rppnistas.
Observa-se, portanto, um “silêncio compartilhado” a respeito da “verdade da troca”
(BOURDIEU, 1997). Ou seja, sabe-se que a RPPN é também a realização de um projeto
individual e que se espera de alguma forma ser prestigiado, mas isso não é claramente
explicitado.
É ilustrativo dessa questão o debate instaurado em 2005 na lista de discussão, relativo
à publicação de uma reportagem sobre as RPPNs e seus proprietários pela Revista Veja,
intitulada “Os donos da natureza”. Esta reportagem não teve grande repercussão entre os
leitores da revista, o que trouxe um grande incômodo aos participantes da lista:
Acho, concordo, apoio tudo o que se refere a questão RPPN, contudo- opinião pessoal- não
temos que nos envergonhar se a repercussão da matéria sobre nossa forma de cuidar do meio
ambiente não teve o sucesso esperado pela editora Abril. Temos sim é que arregaçar as
mangas e trabalhar para que a ignorância do leitor da Revista Veja seja menor quando o
assunto é meio ambiente e que a mesma editora não deixe de nos prestigiar ou fazer matérias
porque o assunto agrada B ou C, mas sim porque é um assunto de extrema importância para a
sociedade, como um todo, bem como informar aqueles que têm o privilégio de poder assinar
uma revista. Lembrando que nós temos e fazemos de forma simples e de acordo com o nosso
poder financeiro esse trabalho de informação-Educação Ambiental e muitas vezes nada
cobramos por isso, simplesmente por amor ao nosso pedaço de terra e amor às futuras
138
gerações que serão os beneficiados de todo esse processo. Por isso não se envergonhem, pois
nem tudo que dá Ibope é passível de credibilidade Ex: Collor,George Bush, Bin Laden,Rita
Cadilac,Big Brothers, TV Globo etc Poderia ficar até amanhã, mas vocês entenderam, nossa
luta deve continuar com ou sem ele "ibope" pois é essa luta que é a mais prazerosa, quando
todos acreditarem que dessas "cabecinhas " é que saiu o maior programa de preservação
nacional do Brasil (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2005g).
Concordo plenamente com o que você diz, porém isso não invalida e não diz respeito ao que
se está pedindo a todos os Rppistas, parceiros , amigos e etc..., e em nenhum momento isso se
trata de questão de novela, aliás antes fosse, pois com certeza daria muito mais IBOPE do que
essa matéria. Acredito que se trata antes de mais nada de estratégia de divulgação de nossas
ações, estratégia essa que por sinal está inserida em nosso Planejamento Estratégico da
Confederação Nacional de RPPN´s, e uma vez que faz parte de nosso planejamento a
divulgação de nossas ações com o claro intuito de conquistarmos respeito e reconhecimento
do público, nada é mais óbvio do que nos empenharmos em ganhar credibilidade junto aos
órgãos da mídia em geral, afinal ela é o "MEIO" para comunicarmos nossas intenções e
dificuldades a este público. Sendo assim não consigo enxergar oportunidade maior para
cumprirmos nossas metas nesse planejamento do que aproveitar uma mídia de tamanha
importância e principalmente SEM CUSTOS para a CNRRPN e associações, a não ser que
alguém considere estratégico pagar por (06) seis páginas, não só na Veja, mas aonde for. Não
estamos podendo nos dar ao luxo de perder oportunidades, sejam elas quais forem, desde que
sejam positivas para nosso movimento e creiam elas nunca serão perfeitas. Penso igualmente
e defendo as opiniões de todo nosso movimento, mas precisamos ser mais pragmáticos e
objetivos em nossas relações com a sociedade, tanto quanto o somos com nossos demais
parceiros institucionais. Por fim, resumindo e sendo prático, a Revista Veja tem enorme
importância na mídia nacional, seus leitores são formadores de opinião, a matéria não nos
custou nada, a matéria foi favorável ao nosso movimento e esses fatos vem de encontro com
nossos objetivos estipulados em nosso Planejamento Estratégico, portanto façamos a nossa
parte (LISTA DE DISCUSSÃO SOBRE RPPNs, 2005h).
Em ambas as falas são observadas uma frustração em relação ao desprestígio do tema
RPPNs na Revista Veja. A publicização das RPPNs não é desconsiderada. Pelo contrário,
acredita-se que é tornando públicas as ações dos Rppnistas que se fortalece essa causa e se
sensibiliza a sociedade. Ressalta-se que não se fala em honrarias individuais (apesar de se
destacar o altruísmo dos proprietários das RPPNs), mas busca-se a valorização das ações dos
Rppnistas em geral.
4.7 Os três momentos da propriedade privada
A partir do que já foi dito é possível se afirmar que a instauração de um circuito do
dom, através das RPPNs, transformou o caráter das terras particulares. De fato, a
patrimonialização da propriedade rural particular criou a possibilidade de se pensar no
privado sob outras perspectivas. Gostaria de fazer agora uma pequena digressão, refletindo
sobre o que considero serem os três momentos da propriedade privada, desde a sua
sacralização, com o ideal iluminista do indivíduo e seu poder supremo sobre si mesmo e sobre
139
suas posses, passando pela dessacralização da propriedade, através da função social da terra,
até sua redenção com a RPPN.
A consagração da propriedade privada
Observa-se que o status que a propriedade privada sobre as terras possui para os
Rppnistas, como direito inquestionável do indivíduo, nos remete à noção de individualismo
possessivo, particularmente, à doutrina da propriedade desenvolvida pelo filósofo
contratualista John Locke em sua obra “Segundo tratado sobre o governo”. Sob a perspectiva
do individualismo possessivo o indivíduo é percebido como proprietário de sua própria pessoa
e de suas capacidades, só se realizando como pessoa na medida em que é livre para o
exercício da propriedade (MACPHERSON, 1979).
De fato, Locke considera a propriedade um direito natural do indivíduo, que antecede
qualquer forma de contrato social. Caberia ao Estado assegurar este direito. Afinal, a
propriedade é um dos meios para se garantir a sobrevivência do indivíduo. Na verdade,
segundo Locke, os governos teriam sido instituídos com este fim: preservar os bens dos
homens.
A propriedade, em especial a terra, é compreendida por Locke como uma dádiva
divina:
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão para que se
servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo que
ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência (LOCKE,
2002, p.97).
É através do trabalho que o homem obteria legitimamente o direito de se apropriar
desse “dom”.
Haveria, contudo, limites nesta apropriação:
Deus nos deu em abundância e a inspiração confirma a voz da razão. Mas até que ponto ele
nos fez a doação? Para usufruirmos dela. Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a
retirar uma vantagem qualquer e sem desperdício, eis o que o seu trabalho pode fixar como
sua propriedade. Tudo o que excede este limite é mais que sua parte e pertence aos outros
(LOCKE, 2002, p.100).
Desse modo, Locke afirma que nenhum bem poderia ser acumulado por um indivíduo
ao ponto de tirar do outro a possibilidade de, igualmente, garantir seu sustento. Macpherson
destaca que, se Locke tivesse parado por aí teria defendido a propriedade individual limitada.
140
Mas não se trata disso. Para Locke, a introdução do uso do dinheiro teria removido as
limitações naturais à apropriação legítima, quais sejam o perecimento dos bens e o
desperdício. Ora, se a produção da terra fosse maior do que o proprietário pudesse consumir,
esse poderia trocar o excedente por dinheiro. Além disso, o proprietário poderia aproveitar o
dinheiro adquirido para comprar mais terras, produzir mais e vender mais (FAVETTI, 2009).
Para Locke o fim não era a acumulação em si, mas a aceleração do comércio. Assim, a
finalidade do dinheiro e da própria terra era servir como capital. Portanto, Locke demonstrou
que “o dinheiro torna possível e justo um homem acumular mais terras cujos frutos poderá
utilizar antes que se desperdicem” (p.220). Dessa forma, Locke forneceu uma base moral para
a apropriação capitalista da terra e do dinheiro. (MACPHERSON, 1979).
A maior produtividade da terra apropriada compensaria, portanto, a falta de terras
disponíveis para os outros, supondo-se que, com o aumento da produção total, o benefício
seria distribuído entre os que ficaram sem terra suficiente. Da mesma forma, seria possível se
estabelecerem arranjos que possibilitassem àqueles que ficaram sem terra obter sua
subsistência através do seu trabalho, o que tornaria legítima a desigual apropriação das terras.
A consagração da propriedade privada como um direito fundamental do indivíduo é
inspiradora da cultura jurídica moderna, solidificada no século XIX. Tributária do pensamento
de Locke, construiu um sistema de garantias de direitos individuais relacionados aos bens
patrimoniais.
O ordenamento jurídico brasileiro bebeu nesta fonte. É o que se observa no Código
Civil Brasileiro de 1916, que estabeleceu um direito pleno e geral de possuir a terra. Tal
direito irrestrito foi levado ao extremo, de forma que seria possível até não produzir na terra
que se possuía. (MARÉS, 2003).
A dessacralização da propriedade privada
A idéia de que “o direito individual de apropriação sobrepuja quaisquer reivindicações
morais da sociedade” (MACPHERSON, 1979, p. 233) foi solapada pela noção de “função
social da propriedade”, da qual lança mão a Constituição de 88.
Entretanto, como já foi dito, paradoxalmente, os mecanismos de limitação dos direitos
individuais em favor dos direitos coletivos convivem na Constituição Brasileira com a
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ortodoxia liberal, que prevê a ampla e total liberdade do indivíduo, inclusive em relação à
propriedade. Vejamos o Artigo 5 da Carta:
Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 2009c).
Observa-se que o direito à propriedade é colocado no mesmo patamar da vida e da
liberdade considerado, à semelhança da teoria de Locke, um dos direitos fundamentais do
homem (FAVETTI, 2009).
Para Locke, a propriedade seria a condição primeira para se formar um capital político
e defender posições nas esferas de discussão institucionalizadas. Dessa forma, só poderiam
gozar dos mesmos direitos e deveres e ser considerados cidadãos aqueles que tivessem
condições de garantir seu próprio sustento e o de seus dependentes (FAVETTI, 2009).
De maneira semelhante, embora a Constituição Brasileira garanta a todos o acesso à
justiça, segundo o Código de Processo Civil, para pedir a tutela estatal nas questões civis é
necessário que o indivíduo apresente os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e
residência do autor e do réu. A partir dessa constatação Favetti afirma:
o pleno gozo da cidadania no Brasil exige uma posse ou propriedade de algum lugar, exige-se
o domicílio ou a residência. Dessa forma, os não possuidores (como os andarilhos) ficam
tolhidos, pelo menos nesse raciocínio especulativo radical, por uma interpretação exegética da
lei, da participação no sistema jurídico civil. São relegados à situação de cidadãos de segunda
classe (p. 26-27).
Como não nos lembrarmos do episódio relatado na lista de discussão e discutido
anteriormente, em que se questionavam os direitos de um casal de posseiros que não possuía
documentação pessoal nem da terra que ocupavam?
Entretanto, a discussão da teoria jurídica sobre o direito de propriedade, associada à
pressão dos movimentos sociais, tiveram um impacto decisivo na incorporação dos direitos
coletivos na Constituição de 88, promovendo uma revisão dos conceitos basilares do direito
ocidental contemporâneo (MARÉS, 2002, 2003).
A Constituição de 88 colocou em xeque o caráter absoluto do direito de propriedade.
Esta é dessacralizada: não seria mais possível a propriedade latifundiária, improdutiva,
guardada como reserva de valor; era preciso que desempenhasse sua “função social”, ou seja,
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teria que atender aos seguintes critérios: (1) aproveitamento racional do solo; (2) utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (3) observação
das disposições que regulam as relações de trabalho; (4) exploração que favoreça o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores (MARÈS, 2003).
A redenção da propriedade privada
A Constituição de 88, na medida em que estabelece que a propriedade não possa mais
ser um fim em si mesma, devendo exercer uma função social, colabora com a visibilização
dos direitos coletivos, dentre eles, a proteção ambiental, que é explicitamente colocada como
um dos deveres do proprietário rural.
Embora a Constituição de 88, notadamente, estabeleça limitações para a propriedade
privada, a regulação e as restrições aos usos dos bens naturais já vêm sendo estabelecidas
desde o Código Florestal de 1965, que lançou as figuras da Reserva Legal e das Áreas de
Preservação Permanente, como colocado a seguir.
De acordo com o Artigo 16 do Código Florestal os proprietários rurais devem manter
uma determinada parcela de área florestada em suas terras, dependendo de onde essas estejam
localizadas:
I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia
Legal;
II - trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na
Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento na
forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e
seja averbada nos termos do § 7º deste artigo;
III - vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de
vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e
IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer
região do País (BRASIL, 2009d).
Embora não possam ser suprimidas, as matas da Reserva Legal podem “apenas ser
utilizadas sob regime de manejo florestal sustentável, de acordo com princípios e critérios
técnicos e científicos estabelecidos no regulamento” (BRASIL, 2009b).
O Código Florestal também interdita as chamadas Áreas de Preservação Permanentes
(APPs), ou a vegetação presente em locais de relevo acentuado, ao longo dos cursos d’água,
nascentes e em topos e encostas de morros.
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Tanto a Reserva Legal quanto a APP são formas de ordenamento territorial reguladas
pelo Estado e que interferem diretamente na liberdade do proprietário.
Mesmo aqueles que criam as RPPNs têm que ter averbado em sua propriedade a
Reserva Legal e não podem utilizar as APPs para qualquer atividade econômica.
Quem cria uma RPPN, ainda assim, tem que averbar a Reserva Legal, uma ação não
substitui a outra. Entretanto, é possível se sobrepor a RPPN à Reserva Legal.
Já que de uma forma ou de outra o proprietário rural irá destinar uma parcela de suas
terras para a conservação ambiental, porque ainda assim criar a RPPN? Não há uma resposta
única, isso ficou evidente nesta pesquisa. Porém observa-se que o elemento “gratuidade” tem
um grande peso em todos os relatos. Isto é, a afirmação da reserva como “dom” é a marca
fundamental dos discursos.
Para a advogada Sônia Wiedmann é o caráter voluntário da RPPN traduzido no ato
espontâneo do indivíduo que cria a reserva, que faz com que esta unidade de conservação
tenha um maior valor que a Reserva Legal. É o que afirma em seu depoimento:
Eu tenho muita vontade de que isso deslanche. Seja uma coisa totalmente independente. Cada
pessoa entenda que preservar não é um mandamento constitucional gratuito não. Não tá na
constituição de graça não. A gente tá sentindo aí a necessidade de que a gente tem que
contribuir de alguma forma. E se você tem um patrimônio, uma área natural, uma floresta, que
não vai fazer falta pra você deixar aquilo preservado e que aquilo pode ser um corredor
ecológico de extrema importância, que aquilo é um fragmento, que aquilo pode ser uma zona
de amortecimento. E você pode contribuir de alguma forma com isso. A Reserva Legal não é
uma obrigação? E não é muito bom, que ao invés de ser uma obrigação você tenha
consciência da coisa e faça a coisa espontaneamente. Muito mais saudável. São
questionamentos que a gente se coloca (WIEDMANN , 2008).
Percebo que o poder da dádiva na instituição de RPPNs está justamente em exercer o
que Bourdieu chama de “alquimia simbólica” (BOURDIEU, 1997). A transfiguração da
propriedade privada rural em patrimônio da humanidade acaba por redimi-la das acusações de
apropriação indevida, egoísta e injusta. Observei entre os sujeitos da minha pesquisa que a
função social da terra parece ter instaurado um “mal-estar”. É clara a necessidade de legitimar
a propriedade, seja mencionando os direitos assegurados pela Constituição Federal, seja
destacando o altruísmo na criação da RPPN. A propriedade privada ressurge, purificada de
tal forma, que, privatizar as áreas naturais passa a ser considerada no universo
conservacionista uma eficiente solução para a degradação ambiental.
Segundo Wiedmann, a concepção legal das RPPNs foi influenciada pela perspectiva
analítica desenvolvida por Hardin (1997) em relação à problemática conhecida como
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“tragédia dos comuns”. A tragédia dos comuns, obra publicada em 1968, se tornou um marco
para os estudos ambientais, bem como é tida como importante referência na formulação de
políticas de manejo de recursos de uso comum.
Hardin (1997) criou uma parábola sobre uma comunidade de pastores que
compartilhavam um mesmo espaço. Supondo que cada um dos pastores adicionasse animais
ao seu rebanho, preocupando-se apenas com o lucro que poderia obter, levando em
consideração que iria arcar apenas com uma fração dos custos decorrentes da
sobreexploração, os resultados seriam catastróficos, a maciça degradação dos recursos. A
“tragédia dos comuns” é, portanto, uma visão fatalista sobre os efeitos da superpopulação
sobre os recursos de uso comum.
A proposta de criar unidades de conservação privadas se fundamenta no pressuposto,
trabalhado por Hardin, que “os atores individuais querem obter o máximo de benefícios
proporcionados pelo bem ambiental e repartindo os custos de sua exploração abusiva com os
demais” (WIEDMANN, 2002, p.2). Estaria aí a raiz dos problemas ecológicos: os bens
naturais corriam o risco de serem sobreexplorados, caso fossem manejados de forma comunal.
Contudo, a propriedade privada sobre as terras (e sobre a “natureza”) criaria um vínculo e
uma responsabilidade dos donos com estes espaços que os levaria a ter um “interesse pessoal”
na sua conservação, uma vez que desejariam preservar o que lhes poderia dar lucro sustentado
a longo prazo. Porém, conforme pudemos verificar através dos argumentos desenvolvidos
pelos Rppnistas este “interesse” pessoal não estaria relacionado à busca de um retorno
econômico, pelo contrário, mas a interesses/ desinteresses de outras ordens.
Segundo Hardin, haveria duas alternativas para se evitar a tragédia dos comuns: a
privatização dos recursos comuns ou a sua regulação pelo Estado.
Observa-se que a RPPN contempla essas duas possibilidades: ao mesmo tempo em
que coloca sob o controle de um proprietário particular a gestão dos bens naturais, o cerceia
de uma livre utilização, através das limitações impostas por essa categoria de UC.
As RPPNs, inegavelmente, são uma forma de reafirmação da propriedade privada.
Porém, entendo que este direito tem sido “ambientalizado”, ou seja, discursivamente
reelaborado sobre as bases do código ecológico, através da atribuição ao proprietário das
terras do papel de guardião.
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O paradigma da dádiva, através do qual se sustenta a argumentação dos Rppnistas tem
um importante papel nesta verdadeira metamorfose por que passa a propriedade rural
particular.
No capítulo 5 ficará mais evidente como a instituição de RPPNs nas propriedades
rurais participa da reconstrução significativa destes espaços. Tentarei explicitar, através das
histórias de vida que me foram relatadas, como o discurso ecológico permite a releitura da
noção do “privado” e, ainda, como o próprio discurso ecológico é reapropriado a partir dos
códigos de honra familiar, do afeto e da espiritualidade.