ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE CIDADE SAUDÁVEL
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE CIDADE SAUDÁVEL
José Luiz Riani Costa*
Resumo: É possível ter uma cidade saudável? Esta pergunta é o ponto de partida
para as reflexões desenvolvidas neste texto que foi a base da exposição feita pelo
autor na Oficina de Trabalho sobre Cidade Saudáveis levada a cabo no V Congresso
Brasileiro de Saúde Coletiva. A abordagem concentra-se na análise das relações
que os homens mantêm "com os demais componentes da natureza", especialmente
no espaço urbano, e das relações que os homens mantêm entre si, especialmente
nas grandes cidades. Sendo a cidade uma expressão da sociedade que a produz e
a consome, seria necessário "construir" uma sociedade saudável para que a cidade
também fosse saudável. Finalmente, são analisados os dez requisitos para uma
cidade saudável definidos pela Organização Mundial de Saúde - OMS.
Palavras - chave: Cidade Saudável, Urbanização, Sociedade - Natureza.
* Secretário Municipal de Saúde de Rio Claro/SP
Toda vez que sefeiaem cidade saudável, surge o questionamento: É possível ter uma
cidade saudável? Este artigo, mais uma reflexão que pretende contribuir para a discussão, pretende
identificar com o leitor aspectos históricos, culturais e políticos que interferem na questão.
Talvez, resgatando através da história o surgimento da cidade e a evolução da humanidade,
seja possível entenderos comportamentos humanos que, provavelmente, ainda guardam bastante
semelhança com os nossos ancestrais e não só com o que vivemos hoje. E a gente se esquece
um pouco disso.
O geógrafo Claudio de Mauro, hoje Prefeito Municipal de Rio Claro, que tem procurado
tomar a cidade saudável, costuma definir a relação vida urbana e o meio ambiente da seguinte
forma: "O ambiente é o espaço onde se dão as relações entre o homem e a natureza".
Hoje em dia, esta afirmação já está sendo repensada e redefinida entendendo o homem
como um dos componentes da natureza e na sua relação como os demais: "O meio ambiente
é o espaço onde se dão as relações do homem com os demais componentes da natureza".
A cidade moderna, a cidade contemporânea, entretanto tem esquecido o homem nesta
relação. A pergunta que se faz ao se deparar com um problema é: qual a ligação do homem com
os demais componentes da natureza?
Na verdade, o homem está sempre presente mas como um ator com uma enorme
capacidade para, inclusive, corrigir a natureza (CARVALHO et ai, 1994). Um exemplo, deste tipo
de visão da relação homem natureza é a retinilização dorioTietê. Na opinião do homem, racional,
técnico, em quase todas as cidades há um rio "pouco inteligente" que não sabe caminhar, e vai
tortuoso, com meandros, e aí, o homem que tudo sabe, corrige o rio fazendo com que ele tenha
um caminho reto, mais lógico, mais racional, permitindo uma melhor utilização do espaço. E o rio,
infelizmente, além de "pouco inteligente" é "teimoso", porque quando chove bastante ele volta
para o lugar que ele utilizava antes.
O rio, na opinião do homem é cruel e vingativo, pois conforme dizem as manchetes "O
rio invadiu as casas", ou "O rio invadiu a pista da marginal".
Na maioria das vezes ocorre é exatamente o contrário: "A pista invadiu o rio", "As casas
invadiram o rio", "A cidade invadiu o rio". E ele simplesmente está respondendo à agressão que o
ser humano provocou à natureza.
Assim, muitas intervenções - e as cidades têm permitido aos homens uma intervenção
brutal sobre a natureza - têm sido feitas sem se conhecer muito ou sem se preocupar com as
respostas de médio e longo prazo.
Outra coisa em relação aos rios na área urbana é a tendência de muitas cidades
canalizarem todos os córregos, utilizando as margens para fazer as famosas avenidas de fundo
de vale. "Quando você encontrar uma avenida tortuosa fora do tabuleiro de xadrez pode apostar
que tem um rio embaixo" A hipótese, é uma grande chance ter umriocanalizado. E em Rio Claro
é assim. Certa vez, ao atravessar uma dessas avenidas eu parei com o carro entre as duas
pistas, e falei para as crianças, "Nós estamos em cima do rio". E aí ficamos um pouco parados
ali tentando reconstruir o que teria sido aquela paisagem natural. Imaginamos uma ponte de
madeira, oriopassando com suas águas límpidas, cheio de peixes, as margens com árvores e
pássaros e borboletas, as pessoas caminhando ao longe desserio,respirando ar puro, curtindo
a natureza. Enquanto imaginávamos esta paisagem, os carros passavam apressados nos dois
sentidos da avenida e um dos meus filhos falou assim: "Mas e os carros, onde iriam?".
Então, ele introjetou a lógica de aproveitar os fundos de vale, para cortar a cidade. Eu
falei: "Mas tem tantos outros espaços, por que que a gente teve que destruir o rio para fazer o
traçado das ruas? Se a malha viária foi traçada a muitos anos, porque o rio foi opção para se
eliminar? E casas que foram construídas não podem ser demolidas para abrir uma avenida de
integração, uma avenida de trânsito rápido? Destruir orio,transformar a natureza é mais barato?"
A nossa intervenção sobre a natureza na construção da cidade está chegando a um
ponto de difícil retomo e quase sem solução. Isso normalmente acontece com os resíduos da
cidade; o rio está recebendo grande carga de esgoto, em volume muito maior que os afluentes
naturais, e com isso ele acaba morrendo. E então, como oriojá está morto, você enterra, coloca
uma laje de concreto em cima. As empresas de cimento e as empreiteiras vão agradecer muito.
Aliás, essas empresas conseguiram incluir emendas no orçamento e nos últimos anos o Brasil
todo fez canalização de córregos. E bota uma avenida para andarjunto com orioe o problema do
trânsito está resolvido e não se pensa no transporte coletivo, não se pensa também na proximidade
entre o local de moradia e trabalho, entre moradia e consumo. Só se pensa em facilitar o
deslocamento rápido e não o uso do espaço urbano que prescinda dos grandes deslocamentos.
Nessa perspectiva, é possível ter uma cidade saudável?
Também gostaria de refletir um pouco sobre como é a vida nas nossas cidades. Tem
um documentário produzido pela TV Cultura, "Prisioneiros do medo", em que aparece a estratégia,
a prática de construir condomínios fechados, as crianças indo com motorista e guarda-costas
para a escola, os empresarios indo com carro blindado para o seu trabalho, a família ou os jovens
freqüentando shopping, fechado e com segurança em todas as portas, as pessoas não tendo
mais contato com a cidade, com as demais pessoas. E o psicanalista Jurandir Freire Costa
falava que nesta sociedade em que o homem não reconhece o outro como seu semelhante, é o
estado da barbárie. Então os crimes que estão acontecendo por aí são causa e/ou conseqüência
desse tipo de comportamento. Como falar em construir uma cidade saudável com o medo, com
a violência, com a agressão que existe entre os componentes de uma mesma cidade?
O número de horas que a gente fica fora de casa ou fora do convívio familiar, por exemplo,
preso no trânsito numa grande cidade é outro grande obstáculo a uma cidade saudável. Quem
estuda e discute muito a cidade, analisa que o espaço da cidade antiga tinha uma escala humana,
e que a cidade atual perdeu a escala humana, pelo tamanho dos edifícios, pela extensão das vias
públicas, pelo número de pessoas que você não consegue estabelecer contatos, conhecer
(ENGELS, 1968; VELHO, 1973). Então a cidade perdeu a dimensão humana. Mas eu também
estou preocupado em perder a dimensão humana, não só no espaço mas no tempo também. A
cidade do tudo rápido, do computador, da informação instantânea em qualquer parte do mundo.
No programa esportivo, você vê gols de todos os campeonatos de todos os países, e no noticiário
você vê a guerra de todos os países, ultrapassando a escala humana até para captar informações
e processá-las. "A cidade é a expressão da sociedade que a produz e que a consome" dizem
também os estudiosos da cidade (ROLNIK, 1988; RODRIGUES, 1993). Então, se a cidade é a
expressão da sociedade que a está produzindo, que a está consumindo, essa cidade só será
saudável se a sociedade se organizar de forma diferente. Será que o nosso objetivo não seria
transformar a sociedade, mudar a forma como se organiza a sociedade? E a sociedade ser
saudável e, em conseqüência, a cidade ser saudável? E aí alguém pode falar "Bom, mas isto é
utópico, teríamos que mudar todas as bases do sistema produtivo, da escala de valores..." Talvez
tenhamos que fazer isso mesmo, só que não dá para esperar que isso aconteça para se melhorar
as condições de vida da cidade. Assim, o projeto cidade saudável pode vir para nos ajudar, sem
ser a solução, apontar algumas possibilidades de reorganização da vida na cidade. Para finalizar,
seria oportuno lembrar os dez requisitos para uma cidade saudável definidos pela Organização
Mundial da Saúde - OMS com breves comentários. (OMS, 1995)
"Um ambiente físico limpo e seguro". Para algumas cidades isso é muito difícil conseguir,
especialmente as metrópoles. Para uma cidade média, uma cidade pequena, há uma possibilidade
maior, desde que o desenvolvimento seja planejado, respeitando a relação do homem com os
demais componentes da natureza.
"Um ecossistema estável e sustentável". Este item nos remete à discussão da cidade
sustentável, ou do desenvolvimento sustentável. Ao se falarem desenvolvimento sustentável,
entendido como um processo de desenvolvimento que atenda as necessidades básicas desta e
das futuras gerações, surge a pergunta: "Quem é que define as necessidades fundamentais?"
"Que necessidades nós vamos definir?" Se definirmos o padrão de consumo de alguns países do
assim chamado "primeiro mundo" provavelmente não teremos matéria prima, energia e espaço
para depositar os resíduos, tomando impossível um ecossistema sustentável.
"Alto suporte social, sem exploração". Não é necessário lembrar o quanto estamos longe
deste ponto.
"Alto grau de participação social"; que vem sendo muito enfatizado em nosso país,
especialmente no Sistema Único de Saúde.
"Necessidades básicas satisfeitas". Este item diferencia também um projeto de cidade
saudável para um país subdesenvolvido e de um país desenvolvido. Aqui, para se falar em cidade
saudável seria necessário garantir, a todos, os fatores determinantes e condicionantes da
saúde definidos na legislação, como: alimentação, moradia, trabalho, renda, transporte,
saneamento, etc.
"Acesso a experiências, recursos, contatos, interações e comunicações". Fica difícil
garantir tudo isso se nas grandes cidades as pessoas não conversam, as pessoas não se
reconhecem, como comentado anteriormente.
"Economia local diversificada e inovativa". Todos os problemas que as cidades
"especializadas" em um só setor produtivo têm sofrido neste tempo da globalização.
"Orgulho e respeito pela herança biológica e cultural". É cada vez mais evidente a
necessidade que temos de conhecer nossa origem e respeitara história de nosso povo.
"Serviços de saúde acessíveis a todos".
"Alto nível de saúde".
Portanto, apenas nos dois últimos requisitos de uma cidade saudável apareceu algo mais
diretamente ligado ao setor saúde. Mas muita gente quando fala em cidade saudável liga muito
com serviços de saúde, ou com profissionais de saúde. Talvez essa idéia tenha sido reforçada
porque a discussão tem sido conduzida pela Organização Mundial de Saúde, pela Organização
Pan-Americana de Saúde, pela Secretaria de Saúde, pelo Ministério da Saúde. Na verdade, o
grande volume de ações para um projeto de cidade saudável escapa ao sistema de saúde,
especialmente aos serviços de saúde. O Projeto Cidade Saudável pressupõe, portanto, um novo
projeto de cidade e uma sociedade renovada.
Essas eram algumas questões que a gente tinha pensado em trazer para o debate e eu
aproveito para colocar à disposição dos interessados o texto "Saúde Meio Ambiente Urbano:
processo de urbanização e seus reflexos na saúde" (RIANI COSTA, 1996) que se constitui no
relatório parcial da pesquisa que desenvolvo na universidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, P.F. et al Questão ambiental demandando uma nova ordem mundial. In:SOUZA,M.A
A. et al. Natureza e sociedade de hoje. 1994.
ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, Global Editora, 1968.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Veinte pasos para formular un proyeto de ciudades
sanas. Washington, 1995.
RIANI COSTA, J.L. Saúde e meio ambiente urbano: o processo de urbanização e seus reflexos
na saúde. UNESP, 1996.
RODRIGUES, A M. Movimentos sociais. IFCH/UNICAMP, 1993.
ROLNIK, R. O que é cidade. São Paulo, Brasiliense, 1988.
VELHO, O.G., org. O fenômeno urbano. São Paulo, Zahar Ed., 1973.
Summary: Is it possible to have a healthy city? This question is the starting point for
reflections present in this text that served as basis for the exposition by the author in the
Healthy Cities Workshop at the V Brazilian Congress of Collective Health. The approach
focuses the analysis of the relations of man and "the other elements of nature" especially
in the urban space and the human interrelations, especially in big cities. Having the city as
an expression of society that produces and consumes it would be necessary to "build" a
healthy society form the city to be healthy. Finally the ten requisites for a healthy city defined
by WHO are analyzed.
Key words: healthy city; urbanization; society-nature