ARMADILHAS DA NOVA ERA
indissociabilidade das dimensões biológica, psíquica e cultural que se fazem presentes no
ritual do parto, mesmo que este parto seja protagonizado de forma solitária por uma mulher,
como em alguns casos na nossa sociedade ou naquelas culturas onde as “índias dão à luz
sozinhas”, em função de seu próprio sistema cosmológico, suas concepções de vida, morte,
natureza, cultura, humanidade e animalidade. As próprias concepções de Natureza e
Cultura devem ser colocadas em perspectiva, uma vez que foram elaboradas a partir de
um sistema de pensamento propriamente ocidental, racionalista e cartesiano, não
compartilhado por todas as culturas. Ainda que seja recorrente em diversas sociedades o
estabelecimento de diferenças ou fronteiras entre mundo dos homens e mundo daqueles
ou daquilo que escapam ao propriamente humano, essas noções e essas fronteiras são
variáveis e cambiantes, e não universais. Mesmo entre as autoras e pessoas identificadas
de forma mais clara com a vertente alternativa, que costumam sublinhar que o parto é um
evento ritual (portanto, social), encontramos imagens semelhantes, sugestivas da mesma
noção de universalidade do comportamento humano e da natureza feminina. O
empoderamento das mulheres passaria pelo resgate dos poderes e saberes femininos que
o processo civilizatório teria eliminado ou submetido. Esses poderes estariam centrados na
condição natural, biológica e instintiva da mulher, ou seja, a sua sexualidade, sua
capacidade reprodutiva, seu instinto maternal. No entanto, há um reconhecimento de
que é preciso aprender a resgatar esses saberes ancestrais, de onde a necessidade da
didática do parir e do maternar.
Esse paradoxo está presente nos manuais de preparação para o parto e
amamentação, que circulam no universo do movimento, nos quais se propugna a
necessidade de aprender a recuperar instintos supostamente perdidos através de técnicas
e exercícios específicos.
Eles apontam para a impossibilidade de pensar o parto como um evento além ou
aquém da cultura, pois, como qualquer ação humana, o parto é também uma construção
social. É preciso, portanto, aprender a parir. Marcel Mauss,15 em um de seus antigos e sugestivos
estudos, reflete sobre as múltiplas dimensões dos fenômenos corporais, a saber, biológica,
psíquica e cultural. Para ele, os usos que fazemos do corpo são fruto da socialização, aliados
às possibilidades propriamente físicas, que se articulam e permitem que seres humanos
produzam técnicas corporais diferenciadas. Ele enumera uma série de técnicas corporais
cotidianas, incluindo nestas as técnicas de parturição, que corresponderiam a diferentes
usos e concepções das diferentes culturas. O autor sugere que as técnicas são incorporadas
nos fazeres habituais, tornando-se espontâneas, aparentemente ‘naturais’, embora sempre
sendo fruto da socialização inconsciente ou mesmo consciente das crianças.
Nesse sentido, podemos pensar que a pedagogia do parto e a didática da gestação,
sugeridas pelos manuais para mulheres grávidas, seriam uma socialização consciente,
necessária para recuperar instintos perdidos, mas para efetivamente aprender e treinar
técnicas corporais que foram desaprendidas na medida em que o parto deixou de ser
assunto de mulheres e passou para o campo médico, tornando-se um saber esotérico, muitas
vezes inacessível à maioria das mulheres. A pedagogia do parto se coloca como uma
tarefa da mulher moderna, que escolhe dar à luz, que é dona de seu corpo e de sua
sexualidade: há um feminismo em todas essas imagens das mulheres cuja singularidade (um
corpo capaz de gestar e parir) é valorizada como um espaço de poder e de saber. As
15 MAUSS, 1984.
16 Esse é um aspecto que também aponta para a chamada mudança de paradigma, termo utilizado pelos nativos,
e que teria a ver com a legitimidade das práticas não-medicalizadas de atenção à saúde em geral e ao parto
especificamente, visto agora como evento não-patológico, mas social, psicológico, existencial.
ESTUDOS FEMINISTAS 489 2/2002