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A cosmovisão ocidental tende a separar a luz da escuridão, a matéria do espírito,
a objetividade da subjetividade, a arte da ciência, o instinto do raciocínio e a intuição da
razão. Se eu disser que os lobos são animais altamente sociáveis, amorosos, brincalhões
e, “quase nunca matam nada que não seja para comer” 4, os Humanos autoproclamados
semideuses dirão que é puro instinto. Ao mesmo tempo, se eu disser que tenho
lembranças que não são minhas e, que consigo sentir o medo no peito do filhote de
papagaio contrabandeado em uma caixa minúscula de papelão a 10.000 quilômetros de
mim, dirão que não sou racional e isso não passa de alucinação ou mentira. Isso vem
daquele velho vício em dicotomizar a experiência da vida que, como vimos, vem de um
vício muito mais antigo, aquele de mais de dois mil anos sobre o qual fala Nietzsche
(2016) – o vício cristão em repudiar tudo que é natural, o vício da antinatureza.
Mas Estés (2016) conta que um animal selvagem pego em uma armadilha é
capaz de se libertar, fugir e, mesmo ferido, correr por quilômetros até a caverna mais
próxima, onde se mantém escondido, lambendo e cuidando das próprias feridas até que
estejam curadas. O esforço imperial em exterminar o espírito selvagem das florestas,
rios, montanhas e, dos nossos próprios corpos, não funcionou. O espírito selvagem
correu para as profundezas da nossa psique, para nosso “sertão interior, e é aí que o
lince se encontra agora mesmo e, não me refiro a linces pessoais em psiques pessoais,
mas ao lince que deambula de sonho em sonho [...] Os iconógrafos budistas ocultam um
pequeno rosto de animal nos cabelos humanos para nos recordarem que também nós
vemos com arquetípicos olhos selvagens” 5.
Esse espírito selvagem é a nossa natureza instintiva que, na maioria das culturas
terranas 6, é feminina, como mostra Estés (2016):
Na poesia, pode designar-se pela "Outra", ou os "sete oceanos do universo", ou os "bosques
longínquos". Na psicanálise, e a partir de perspectivas diversas, talvez pudesse designar-se por
id, identidade, o Eu, a natureza medial. Em biologia, poder-se-ia designar por natureza
fundamental ou típica [...] Por vezes, é designada por “mulher que vive no fim do tempo”, ou
“mulher que vive no limiar do mundo [...] Em espanhol, é chamada Rio Abajo Rio, o rio sob o
rio; La Mujer Grande, a mulher grande; Luz del abismo, luz do abismo. No México, ela é La
Loba, a loba, e La Huesera, a mulher dos ossos. Em húngaro é conhecida por ö Erdöben, Aquela
dos Bosques, e Rozsomák, a fêmea carcaju. Em navajo, ela é Na'ashjé'ii Asdzáá, a Mulher
Aranha, que tece o destino dos humanos e dos animais, plantas e rochedos. Na Guatemala, entre
muitos outros nomes, ela é Humana dei Niebla, o Ser de Névoa, a mulher que vive desde sempre
e para sempre. Em japonês é Amaterasu Omikami, Numina, que gera toda a luz e toda a
4 SINGER, 2010 [1975], p. 167.
5 SNYDER, 2018 [1990], p. 27.
6 Inspirada no que Bruno Latour fala sobre os Terranos, pensei no termo culturas terranas para designar
as culturas de Homo sapiens que se localizam foram dos muros do Império da Transcendência, culturas
não-cristãs, que vivem dentro e com a Natureza.